quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

3072) O rio de Heráclito (2.1.2013)





O filósofo Heráclito disse que “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Ele era um desses pré-socráticos cuja filosofia surgiu da observação constante da natureza e dos homens. Bons tempos em que era possível ser filósofo amador, sem ter que estudar Heidegger ou Wittgenstein. Heráclito era uma espécie de Manuel Xudu ou João Paraibano, compondo sextilhas em que pequenos aspectos da Natureza servem de ponto de partida para generalizações abstratas sobre o Universo. Ao que parece não deixou livros; o que escreveu sobrevive apenas em fragmentos citados nas obras dos que vieram depois. Tal como a maioria dos cantadores.

Heráclito queria registrar a mudança constante das coisas, e o rio lhe serviu como imagem perfeita. Ao longe parece estar paradão, imóvel, mas quando o vemos de perto percebemos que ele é uma coluna horizontal de água em deslocamento constante. As águas que nos tocam, quando entramos nele, vão embora para sempre, um instante depois.  Jorge Luís Borges não deve ter sido o primeiro a comentar que a frase de Heráclito nos sugere, como primeira generalização, que “o rio muda o tempo inteiro”, e a maioria das pessoas se detém aí. Mas, se continuarmos pensando, perceberemos que nós, também, mudamos tanto quanto o rio. O homem que entra no rio pela segunda vez também já é outro.

Isso certamente marcou a filosofia grega com esse conceito da diversidade (ou mudança) entrelaçada à identidade (ou permanência). Mas é bom examinar melhor esse aspecto. Ao descobrir ou intuir o conceito de mudança permanente, Heráclito não estava negando a identidade. Ele era filósofo mas não era doido. Sabia que o rio era o mesmo, sim, e sabia que ele também, mesmo mais limpo devido ao banho da véspera, era o mesmo. Sabia que era Heráclito banhando-se de novo naquele rio de Éfeso, não era Jackson do Pandeiro banhando-se no açude de Bodocongó.  Ele percebeu que todas as coisas têm identidade e mudança. São sempre as mesmas, e não-são-mais-exatamente-as-mesmas a cada segundo. Se o sujeito só enxergar a identidade, vai entrar em parafuso cada vez que o mundo botar uma transformação na sua frente; se só enxergar a mudança, corre o risco de não saber que nome assinar no cheque, ou para que casa deve voltar depois da farra.

A ênfase de Heráclito na mudança veio talvez para dar uma sacudida nos seus contemporâneos muito ceguetas, muito presos a uma noção da identidade permanente de todas as coisas. Para nós, ele não é o mero filósofo da mudança. É o filósofo que nos fez enxergar a identidade como um “Algo” que inclui em si todas as suas próprias mudanças concretas e sucessivas. Sem esses dois conceitos, é impossível pensar.