domingo, 29 de setembro de 2013

3304) Ozymandias (29.9.2013)




A reta final do seriado Breaking Bad (cujo último episódio será exibido hoje à noite) foi uma porrada atrás da outra. Estes últimos capítulos têm trazido um bombardeio. Mortes cruéis de gente inocente. Atos de coragem espantosa e de covardia repugnante. Momentos dolorosos de revolta de quem percebeu ter sido enganado a vida inteira por alguém em quem confiava...

A série (para quem não sabe) conta a transformação do tímido professor de química Walter White num fabricante e traficante de metanfetamina, passando por cima de tudo e de todos, praticando assassinatos, tortura, chacinas, o escambau. Ao saber que tem câncer, ele decide enriquecer para garantir o futuro da família. Numa narrativa quase do tipo “o médico e o monstro” (com grande atuação de Bryan Cranston no papel), ele tem momentos em que é o marido leal e o pai carinhoso que foi em outros tempos, e segundos depois se transforma no cruel e implacável “Heisenberg”, o pseudônimo que adotou no mundo do crime.

Esse nome remete ao princípio célebre da Física, o “Princípio da Incerteza” formulado por Werner Heisenberg. Pode ter sido adotado por mero despiste (Walter pode ter pensado em usar como pseudônimo o nome de um químico, pode ter achado que era bandeiroso demais, e em vez disso escolheu um físico que todo mundo conhece). Mas pode ter um significado simbólico. O Princípio de Heisenberg diz que não podemos calcular ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula sub-atômica. Ora, se determinamos sua posição, não podemos saber com que velocidade estava se movendo: é como a foto de um carro ou de um avião. Se calculamos sua velocidade, isso implica em considerar seu movimento ao longo de um certo trecho de espaço, e assim não podemos apontar uma única posição, pois há uma sucessão delas.

A certa altura, Heisenberg diz: “ Meu negócio não é a droga, nem o dinheiro. Meu negócio é o império”. Outros nome famoso associado à série é “Ozymandias”, título do antepenúltimo episódio. Ele se refere ao poema de Percy B. Shelley sobre a estátua de um rei antigo, tombada no chão do deserto. É no deserto de Albuquerque, Novo México (onde transcorre a ação) que Walter começa a fabricação de sua droga (num furgão), é lá que enterra seu dinheiro, que despacha seus inimigos. Ali, duas elevações rochosas se erguem como os pés da estátua do rei descrito por Shelley. De todo o poder, resta somente o pó. De todo o ouro e de todos os santuários, resta somente o chão. Da família, em nome de quem tudo aquilo aconteceu, e que Walter White afirma proteger acima de tudo, ninguém sabe o que restará quando o último tiro for disparado.


sábado, 28 de setembro de 2013

3303) "The Act of Killing" (28.9.2013)




Por volta de 2005, o cineasta Joshua Oppenheimer viajou para a Indonésia pensando em documentar os crimes de guerra cometidos pelo regime que, em 1965, tomou o poder e promoveu um verdadeiro genocídio em seus inimigos políticos, principalmente comunistas e chineses. A certa altura, começou a entrevistar os carrascos propriamente ditos e se espantou ao ver como eles não apenas não negavam os massacres cometidos, mas se orgulhavam deles (“mostram que somos ferozes, e isso amedronta nossos inimigos”) e faziam questão de contá-los em detalhe.

Oppenheimer chamou o principal deles, Anwar Congo, um negro de seus 70 anos, e lhe pediu que co-dirigisse o filme, recriando as cenas das execuções. O que se segue é uma experiência–limite de cinema documentário. Anwar convoca ex-colegas e amigos para fazer o papel de torturadores e de torturados; mostra como matou mais de mil pessoas estrangulando-as com arame (“porque o sangue sujava nossas calças”); e produz, para deleite próprio e louvor de sua pessoa, números musicais de uma natureza espantosamente “kitsch”, uma mistura entre o cinema “naïf” e os espetáculos indianos de Bollywood.

O filme The Act of Killing (lançado em 2012) nos propõe uma situação quase surreal, porque o diretor adquire a confiança do entrevistado e o leva a pagar um mico de proporções globais, bem como confessar crimes que poderiam levá-lo ao Tribunal de Haia. Mas Anwar vê o filme na versão pronta, mostra-a aos amigos e à família, e diz estar orgulhoso do que fez. Outro torturador diz para a câmara que não tem medo das cortes internacionais: “Quem define o que é crime de guerra são os vencedores, e nós vencemos”. Eles se orgulham da impunidade, num regime baseado na corrupção, na intimidação em troca de dinheiro, e na existência de milícias violentas que têm Anwar Congo como um dos seus ídolos.

Neste link (http://bit.ly/15S0RqH), o co-produtor Werner Herzog diz que o filme é uma das mais radicais experiências em documentário que ele já assistiu; e esta matéria (http://bit.ly/13pW54k) no Guardian também traz pequenos trechos do filme, que aliás será lançado no Brasil em breve, no Festival de Cinema do Rio. The Act of Killing não é apenas a denúncia da violência, mas mostra a maneira como a “sensação de estar trabalhando num filme” transpõe certos entrevistados para um estado alterado de consciência em que ele passa a representar-a-si-mesmo para a câmera, com resultados imprevisíveis. Todo curso ou oficina de documentário deveria discutir este filme em sala de aula. Além de ser um mergulho na violência humana, é outro mergulho na nossa sede do simbólico e da representação.


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

3302) VII Fantasticon (27.9.2013)




(Prêmio Argos)


No fim de semana passado fui a São Paulo para o VII Fantasticon, o evento anual de literatura fantástica organizado por Sílvio Alexandre na Biblioteca Viriato Corrêa (em Vila Mariana), a biblioteca municipal dedicada ao gênero. Participei de dois debates: sobre Julio Cortázar, na companhia de Marcelino Freire, e sobre cyborgs, junto com Luiz Bras. Recebi o Prêmio Argos, concedido pelo CLFC (Clube de Leitores de Ficção Científica), pelo “Conjunto da Obra”. Agradeci ao clube, sem o qual não teria jamais me animado a escrever e publicar contos do gênero. E dediquei o prêmio a dois dos meus primeiros editores na FC: Sérgio Fonseca de Castro (que me publicou na antologia Verde... Verde..., 1988) e Roberto Nascimento, que publicou no fanzine Somnium os primeiros contos que iriam constituir meu livro A Espinha Dorsal da Memória, de 1989.

O mais interessante para mim, este ano, foi ver que o evento está ampliando as áreas de contato entre os três gêneros que geralmente aparecem juntos nos critérios de classificação dos países de língua inglesa (FC, fantasia e horror) e o fantástico considerado do ponto de vista da literatura “mainstream”. Eu já fiz palestras no Fantasticon sobre o fantástico em Guimarães Rosa e em Ariano Suassuna, e sobre a FC de William Burroughs; este ano, vi (entre outras mesas) Ignácio de Loyola Brandão e Manuel da Costa Pinto comentando o realismo fantástico da revista Planeta, e Jorge Schwarz e Andréa del Fuego discutindo a obra de Murilo Rubião.

Acho que este é um estímulo importante para contrabalançar as pesadas doses de literatura-de-gênero em língua inglesa que são a principal leitura do fã e pretendente a escritor do gênero no Brasil. Vejo jovens que leem centenas de contos de FC/fantasia/horror em inglês e não têm idéia de que são Guy de Maupassant, José J. Veiga, Hoffmann, Borges, Ítalo Calvino, Stanislaw Lem, Garcia Márquez, e tantos outros. Correm o risco de, mais do que leitores de um gênero, tornarem-se leitores de meia dúzia de fórmulas. E quando começam a escrever, reproduzem essas fórmulas, que já eram velhas quando eles nasceram, e onde é preciso ser muito sagaz e experiente para inventar uma variante realmente nova.

O Fantasticon é uma tribuna em que autores, críticos e editores se encontram para conversar. Senti falta, este ano, da tradicional “Mesa dos Editores”, em que eles avaliam o mercado e falam dos seus projetos. Mas a discussão propriamente literária é sempre de alto nível, sem pedantismo, sem jargão. Autores e leitores conversam sobre a experiência profunda de ler e de escrever ficção fantástica, e isto é o mais importante.


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

3301) O velho matador (26.9.2013)




Foi num churrasco na casa do marido da minha sobrinha que eles se chegaram a mim. Vi logo que eram estrangeiros, pela roupa, depois pelo modo como se fechavam num canto, falando baixo, e logo depois iam em diferentes direções, abordando diferentes pessoas. Chegaram até mim, e eu sou um homem que todo mundo chama o Rei da Simpatia. Apertei suas mãos, aprendi seus nomes, ofereci bebidas e assentos, desejei que se divertissem; e me afastei. Era a festa dos meus 75 anos, eu não podia parar num só lugar a noite inteira.

Marcamos reunião para o dia seguinte, e eles voltaram. Queriam fazer um documentário para passar lá na Europa, sobre minha atividade nas milícias. Eu disse a eles que foram as milícias que livraram nossa pátria do comunismo, da corrupção e do voto. Desdobrei exemplos. Eles perguntaram se eu repetiria tudo para eles, com as câmeras, e eu disse que sim, que claro. Falei do meu orgulho em ter executado com minhas mãos mais de mil criminosos políticos que tinham tentado aplicar idéias estrangeiras sobre o nosso povo. Expliquei a eles que todo mês alguém da TV estatal mandava me convidar para um programa para que eu explicasse isto aos jovens.

Trouxeram as máquinas de filmar, viajaram comigo cruzando o país, ficamos companheiros. Eles eram muito concentrados no que faziam, mas sorriam nos intervalos. Só pareceram meio chocados quando re-encenei algumas cenas de interrogatório ou de execução, quando supervisionei a reconstituição de aparelhos especiais, quando mostrei alguns dos souvenirs que preservara.

Fomos a todos os lugares de despejo: à Lagoa dos Patos, ao Brejo da Capelinha, ao Paul Turfoso. Fiz um histórico de todas as execuções heróicas que tinham ocorrido em cada local, e em cada gravação senti, enquanto mostrava tudo com gestos largos e explicava com voz sadia, uma estranha comoção se apossar de mim, como se todas as almas dos corpos que eu executara naqueles locais estivessem ali, à minha volta, esperando somente uma palavra minha para poderem ficar livres para sempre.

Despedimo-nos entre malas e abraços. Voltei às minhas atividades, ao meu gamão, à minha piscina, aos meus churrascos. Então veio a fama, a invasão da imprensa. Atribuíam-me frases que eu talvez tivesse dito, sim, mas talvez não. Fui notícia e fui especial de horário nobre por toda parte. Meus netos, trêmulos de indignação, me mostravam nos iPhones as capas de revistas estrangeiras onde eu era chamado de carrasco e de assassino. Mas da minha varanda, do alto dos meus cabelos brancos, eu olho a cidade, em todas as direções, como que esperando que um inimigo qualquer se erga. Nenhum se ergueu. Nenhum se erguerá.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

3300) Narrativa e games (25.9.2013)






Às vezes, num videogame, exige-se do herói uma série de aventuras, como ocorre com os “doze trabalhos de Hércules”. Tais aventuras não têm necessariamente que se dar nesta ou naquela ordem, a menos que nos convenha. São pedaços de história separados do restante do fluxo de tempo. Se é de Hércules que estamos falando, pode ser que quando o herói limpa as estrebarias do Rei Augias ainda não tenha cortado as cabeças da Hidra de Lerna, ou pode ser que sim. No jogo, como no mito, esses episódios têm autonomia – como um quadro que, dentro de um museu, conta somente sua própria história. Eles pertencem à história principal (das servidões impostas a Hércules) mas cada um deles conta sua história única e irredutível às outras. Isso pode contar a favor de quem escreve uma variante qualquer desse mito.

Na maioria dos jogos é possível estabelecer parâmetros, numa escala de mais e menos, para aspectos como “ação”, “violência”, “enigma”, “habilidade”, etc.  As principais recompensas de um videogame são de ordem emocional, embora as emoções sejam manipuladas o tempo inteiro, e intelectuais. Um game não nos satisfaz fisicamente, porque envolve menos do nosso corpo. Uma atividade física real, que exige todos os nossos recursos, produz uma adrenalina maior do que a do game mais alucinado. Mas as recompensas maiores do game são intelectuais, porque quando resolvemos um enigma isso é uma vitória completa e verdadeira do intelecto, mas quando derrubamos a socos meia dúzia de leões-de-chácara isso não significa nada em termos de nossa invulnerabilidade bélica. É uma vitória ilusória. Nada aconteceu ao nosso corpo, nada dependeu dele. No caso da vitória do intelecto, ele fez o que se esperava que fizesse. Os videogames, pelo menos por enquanto, dirigem-se ao nosso cérebro antediluviano ou reptiliano, em primeiro lugar, através de sua mecânica da atividade física insetóide, incessante. E depois à nossa mente estrategista, capaz de encontrar soluções, de perceber padrões de recorrência nos fenômenos e aproveitar-se disto.

Tudo que se refere ao corpo num videogame (natação, esgrima, dança, artes marciais, pilotagem, parcours, etc.) é ilusão, é mera transferência pseudo-sensorial, comercialmente acessível a qualquer um. É possível viver ali experiências (escalar o Everest, descer em corredeiras, boxear com cangurus) que seria imprudente tentar na vida real. Mas quando é necessário perceber uma pista através de um anagrama ou de uma citação disfarçada, esse pequeno triunfo intelectual de quem decifra corretamente é o mesmo que ocorreria num livro ou num filme. Um videogame não enche a cisterna do corpo, mas enche o dedal da mente.


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

3299) O violão (24.9.2013)






Quem me contou essa foi Éder, um cara que trabalhou comigo quando eu morava na Bahia. Éder era um compositor veterano, também cantava de vez em quando, fez parte de algumas bandas, tinha gravado disco solo. Ele disse que certa vez estava em São Paulo numa espécie de festival de artes, meio chic, meio alternativo, numa galeria de arte. A galeria tinha um porão que eles transformaram numa adega com recitais de poesia e pocket shows.



Ele estava lá, na platéia, tinha ido ver a apresentação de uma banda de amigos dele, uma turma jovem. Depois do bis de encerramento, o pessoal chamou Éder ao palco, porque ele era uma espécie de padrinho da banda. Começou aquele “can-ta! can-ta!”  Ele disse que ficava muito honrado e que cantaria, se houvesse um violão, porque infelizmente, apesar de ser admirador de Jimi Hendrix, não tocava guitarra. Diz Éder que um violão rapidamente apareceu, era satisfatório, a banda se retirou deixando-o à vontade no palco para fazer um ou dois números. Ele ajustou a correia, calibrou os botões, deu uma checada na afinação, que estava OK. E começou.



Éder diz que o violão tinha uma tensão ideal de cordas, uma ótima sonoridade de bojo nos graves, e uns agudos cristalinos. E nas posições em pestana produzia uma sacudidela e um balanço que botaram todo mundo pra dançar. Pode-se checar isto nas postagens posteriores no YouTube ou nos blogs.  (Verdade seja dita, não existe música tão dançante que não haja alguém, em vez de dançar, filmando).



Durante cerca de quarenta minutos (a captação em vídeo mais longa tem 37 e meio), Éder tocou algumas de suas músicas mais conhecidas, e uma ou duas novas. “As músicas eram outras coisas,” disse ele. “Não eram o que eu pensava, ritmicamente; e estavam cheias de notas e de detalhes que eu não sabia mas que o violão parecia saber por mim. Meus dedos iam direto, como quem já fez aquilo mil vezes, mas para minha mente, que de um certo ângulo afastado contemplava tudo, era a primeira vez”.


“E depois?” perguntei. Ele disse: “Encerrei, a banda voltou ao palco, nos despedimos, ficamos naquela onda de camarim, de tomar cerveja e comentar detalhes. Mais de uma hora depois, quando saiu a última foto com os últimos autógrafos, olhei em redor e perguntei pelo violão. ‘Que violão?’, disseram. ‘O que eu toquei, quero botar preço nele.’ ‘O violão não era seu?’ perguntaram. ‘Vi esse violão hoje pela primeira vez’, disse eu. E os outros: ‘Gozado, estava aqui num case, que por sinal ainda há pouco alguém veio buscar. Tinha seu nome escrito num adesivo, e como nós vimos você na platéia, achamos que estava a fim de tocar, e puxa, cara, valeu, valeu demais, noite pra entrar na história.’


domingo, 22 de setembro de 2013

3298) Naquele tempo (22.9.2013)



(by Jacob Sutton)

Naquele tempo a gente tinha o costume de assistir séries de TV. Toda semana passava uma história. Quer dizer, a história era uma só, com muita gente, e cada semana passava um pedaço mostrando o que tinha acontecido com uns aqui, outros acolá. O país inteiro parava várias vezes por dia para que as balconistas de lanchonete mordessem os nós dos dedos e gemessem de aflição, ou ficassem com a mão no seio e o beiço tremendo.  Claro que também havia as séries reconfortantemente destinadas às mutilações, decapitações e punhaladas em que os homens se espelhavam.

Numa delas um homem descobre que está vivendo num universo paralelo na noite em que, na Copa de 2010, ele está vendo um jogo da Seleção diante de uma TV quando ouve, no rádiozinho de pilha do guarda na guarita em frente ao seu prédio (ele mora no primeiro andar) o habitual grito de gol antecipado. Mas na sua TV de plasma o chute brasileiro vai para fora. Ele se rebela, não crê, vai checar o detalhe à janela. Gol, sim, diz o vigia, estamos ganhando de 1x0. 0x0 é o placar que ele vê na tela, onde o jogo continua a acontecer como se não soubesse da existência dele.

Foi naquele tempo que um cara imaginou, certa madrugada, comendo iscas de fígado e tomando Itaipava em lata, a verdadeira necessidade de coisas como jornal, rádio, TV e Internet. As quatro coisas são projetos tocados à custa de fortunas mirabolantes para permitir à humanidade chegar mais rápido ao seu destino e finalidade: a criação de um mundo onde tudo é filmado e tudo é assistido, não importa se por todos, mas ser assistido por alguém é sinal de força política, de formação de opinião.

Nada sabemos do mundo, a não ser o que nos é contado em nossos contatos face a face, em carne e osso. Ou então... no que vemos impresso, transmitido, mandado ao ar e compartilhado on-line. Esse é o mundo em que vivemos.

E naquela noite uma série de sucesso botou no ar um episódio arrasador, devastante, lacrimogenial. O país parou e tremeu na base. Logo após, uma enxurrada de subtremores nas redes sociais. E logo alguém anunciou que num famoso saite de rateamento e estatísticas, aquele episódio específico estava merecendo agora, com uma votação que subia em milhares por minuto, uma inédita média 10 na história daquela pesquisa.

Ele acessou o saite e imediatamente votou um 9. “Por que?”, perguntou o terapeuta, logo que entendeu ser aquela a senha. E ele confessou que tem gente que é assim, que quebra vidraça, bate carteira e joga fora sem olhar, apaga fogueira de sem-teto, não pode ouvir falar em nada muito limpo sem querer mijar na sua borda. Quebrando o cristal daquele 10 ele reafirmou que existia.

sábado, 21 de setembro de 2013

3297) 16 bandas (21.9.2013)



("Orchestre de Mystère" de Alexander J
ansson)


“Luz de Mil Velas”: duas cítaras, um pandeiro, uma rabeca, um theremin, e um repertório de fugas escherianas por espaçotempos ortogonais e transdimensiomísticos, e letras em forma de sestina. 

“Duas Bandas”: dois guitarristas e duas tecladistas, de formação erudita e com mão leve e ágil para canções de amor urbanoides e balançadinhas, um tilenol contra o tédio.  

“Motomonstros”: seis sujeitos gordos, musculosos, hirsutos, ferozes, mas extremamente cientes dos seus direitos civis e se equilibrando em cima do fio-de-aranha da lei.  

“Pump Malfunction”: três cavalheiros e duas senhoras da melhor idade que se reúnem para improvisar juntos sobre temas da música do último século, e vendem ingressos a rodo.

“Another Job For My Uncle”: os ternos impecáveis e a instrumentação “big band” atenuam e com isso deixam mais sutis as letras cruéis e violentas da dupla de compositores da maioria do repertório, o vocalista Naitendey e o iluminador Gontijo. 

“Faça Isso Com Eu Não”: banda com instrumental meio forró meio chorinho, somente as variadas cordas, com quase nenhuma percussão.  

“Range Rede”: um sintetizador e um violino dialogando com o carreirão de dez, com o oitavão rebatido, com o aboio pré-verbal. 

“Cast of Characters”: roquezinho praieiro, “repleto de levadas contagiantes”, pré-verbal, pós-fatal, costurado com guitarrinhas plangentes e um chacundun de bom motor.

“Soul Blue”: três dúzias de formandos em Música Folclórica, razoavelmente afinados, encarando a gravação do disco como um trabalho de conclusão de curso, com evidentes reflexos no aspecto organizacional e nas escolhas estéticas ao longo do projeto. 

“Sambarroco”: um piano, uma voz e cem mil percussões “trazendo consigo todo o mistério, a sensualidade e o romantismo do jazz tradicional e da irresistível dança caribenha”, segundo o relise. 

“La Machine à Pleurer”: dois atores, um DJ e uma malabarista; nonsense cênico remetendo ao teatro de Jarry, ao cinema de Tati, e ao romance de Queneau. 

“Sigilo Aberto”: dois violões, um piano, releituras de polcas clássicas, muzaks irreconhecíveis.

“Lock the House and Run to the Woods”: banda de survival metal, com spin-offs de enduro de motos e de propagandas de cigarro. 

“Chave Mestra”: guitarra, alfaias, marimbas eletrônicas, e duas meninas de cabelo cacheado cantando em romaní. 

“Innocent Bystanders”: três rapazes e duas moças de queixo resoluto, olhar concentrado, roupas ferozmente de griffe, letras pulverizando o status-quo. 

“Bruxa Gasolina e os Isqueiros”: três guitarras, quatro sopros, frevo eletrificado com letras concretistas, com viés neo-anarquista e transgressões lacanianas.










sexta-feira, 20 de setembro de 2013

3296) Escrever todo dia (20.9.2013)





Frederik Pohl, falecido no início deste mês (setembro de 2013), foi um dos mais ativos autores da FC norte-americana: escreveu dezenas de livros, editou algumas das mais importantes revistas do gênero (como a Galaxy, entre 1961 e 1969), foi agente literário para inúmeros amigos. Trabalhou incansavelmente até sua morte aos 94 anos. 

Seu conto “The Tunnel under the world” (1955) é uma das primeiras especulações sérias da FC sobre o tema do “mundo artificial” cujos habitantes, que são meras simulações eletrônicas, como personagens de videogame, imaginam que são pessoas de verdade. A primeira versão da Matrix.

Em seu livro de memórias, The Way the Future Was, Pohl reflete sobre a profissão do escritor. 

“Há momentos,” diz ele, “em que você está enchendo de palavras aquelas folhas de papel branco, e alegremente pagaria qualquer preço só para que um profissional competente lhe dissesse se aquilo presta ou não presta”. 

Pohl observa que cada escritor tem seus próprios hábitos. Hospedado na casa de Fletcher Pratt, ele comenta: 

“Fletcher costumava instalar a máquina da escrever na sala de bilhar. Escrevia algumas linhas, fazia uma pausa para conversar, tomava um drinque, alimentava os bichos, depois voltava e escrevia mais um pouco. Nunca entendi como alguém, escrevendo naquelas condições, era capaz de enfileirar frases que fizessem sentido, mas o seu exemplo nos encorajava”.


Pohl tem uma lição sobre a profissão da escrita. Lição que, é claro, não serve para todo mundo, mas para alguns há de servir. Diz ele: 

“O que eu fiz foi estabelecer para mim uma cota diária de quatro páginas. Nem mais, nem menos. E escrevo essas páginas todo dia, não importa onde eu esteja, nem quanto tempo leve, nem que eu morra tentando. Às vezes elas me exigem 45 minutos, às vezes dezoito horas.” 

E numa nota de pé de página explica: 

“Estas páginas aqui, por exemplo, foram escritas numa manhã de sábado num hotel em Cleveland, quando todos os meus amigos estavam a poucas portas de distância, preparando-se para um belo café da manhã, rindo, conversando, divertindo-se a valer, enquanto eu batucava na minha máquina portátil francesa. Mas eu me mantive firme, e evitei desmoronar.”


Pohl afirma: 

“Faço isso todo dia, porque se falhar um dia apenas o ritmo será quebrado e o edifício inteiro desabará em minha cabeça. Escrever todo dia significa escrever no sábado, no domingo, no dia de Natal, no meu aniversário, no dia em que faço tratamento de canal, no dia em que voo para Londres. Cumpro minha cota em aeroportos, em balcões, em trens. Escrever todo dia significa escrever todo dia mesmo, sem exceção, e esta é, para mim, a regra número 1 de um escritor profissional”.






quinta-feira, 19 de setembro de 2013

3295) Marte sem volta 2 (19.9.2013)






Alguns milhares de pessoas já se inscreveram no projeto que pretende mandar, daqui a mais uns anos, uma equipe de astronautas para Marte. Lá, eles terão como manter-se vivos, mas sabendo que jamais poderão voltar à Terra. Uma espécie de kamikazes em câmara lenta, viajando milhões de quilômetros e sabendo o tempo inteiro que a humanidade capaz de mandá-los para aquele abismo se recusaria, alegando razões de orçamento, a trazê-los de volta.

Por que vão? Vão pela aventura, em muitos casos, e eu imagino que esses caras que gostam de participar do Camel Trophy ou do Rally Paris-Dakar iria para Marte sem nem bater a pestana, pelo perigo da coisa, pela incerteza da coisa, e pela beleza da coisa. Volto à minha habitual comparação entre astronautas e navegantes: quem embarcou na viagem de Fernão de Magalhães tinha muita esperança de voltar? Alguns voltaram, é verdade, mas é diferente partir numa aventura da qual, por definição, não se volta. 

Isto não deveria nos parecer tão irremediável (ir para Marte e nunca mais poder voltar), porque muitas vezes vamos na esquina comprar o jornal e o enfarte nos talha a vida em diagonal através do peito. Nossos aventureiros marcianos vão morrer lá? Nós vamos morrer aqui, e, como dizia aquele personagem dum filme de guerra, ao recruta que lhe perguntara a diferença entre uma granada e um obus: “Se cair em cima de você, não faz diferença nenhuma.”  Pode-se imaginar que eles venham a sofrer algum acidente e morram uma morte terrível lá. Estariam 100% seguros de não morrer uma morte terrível, estando aqui?

É a situação Blade Runner. Os andróides têm um tempo de vida limitado? Nós também. Nossos astronautas estão  uma viagem sem volta? Nós também. Eu já sonhei com a possibilidade de existência de um túnel linear de portais, em forma de estações sucessivas, em sucessivos planetas capazes de abrigar os humanos da Terra. Hoje, pode ser que Marte se torne o primeiro degrau de uma expansão humana pelo sistema solar. A FC já sonhou tanto com isso que é quase moralmente imperioso testar para ver se dá certo.

Na minha opinião, o senso de verossimilhança da conquista do espaço pelo homem vem se diluindo ou esboroando a cada década que se passa. Não parece provável a “galáxia 100% humana” que Asimov imaginou. Duvido que conseguíssemos colonizar populacionalmente alguma coisa fora do nosso Sistema Solar. Mas o projeto Marte não está no diapasão das tecno-fantasias de Arthur C. Clarke, e sim no dos programas de aventuras e endurância como “Survivor”, “No Limite”, etc. É o teste supremo de coragem, a partida para a batalha de quem tem certeza absoluta de que não voltará vivo.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

3294) Os monotemáticos (18.9.2013)




(by Juan Muñoz)


A noite de lua cheia derramava vias-lácteas pelo Cariri. Silêncio na fazenda Vem-Vem. Seu Dô estava sem sono e saiu para fumar um pouco no terreiro. Viu luz lá longe na casa do primo, Marcão. Foi se chegando devagarinho e mal tinha dado o boa-noite e puxado um tamborete para a calçada apareceu o Dr. Edson, que estava hospedado ali. Ele trazia uma garrafa de Brejeira e um copinho, que logo entrou na roda.

“É impressionante o Universo”, disse o Dr. Edson. “E na cidade a gente não pode ver o céu, por causa das luzes! A gente chega no Cariri e fica tonto de tanta estrela.” Seu Dô se recostou na parede e aduziu: “Impressionante é como o Governo gasta energia e não toma providências. Quando vou na capital vejo de madrugada os prédios públicos, tudo aceso. Aí, quando dá um apagão, eles se queixam de que falta energia, e aumentam os impostos! É só o que sabem fazer.” Marcão deu uma risada e disse: “Isso só me lembra um verso de Joãozim Pantoja: ‘Prefiro morrer de frio / embaixo dum viaduto’”.

O Dr. Edson virou uma dose e veio: “De fato, a cidade está cheia de gente sem teto, mas não são somente os mendigos. O Universo inteiro vai morrer de frio. Um dia ele vai consumir toda a energia de que dispõe, e se transformará numa fornalha fria.”  “Exatamente,” disse Seu Dô; “mas por incrível que pareça é proibido questionar o nível de desperdício dos Governos e das indústrias. Temos energia solar, eólia... mas o Congresso e o Executivo estão sequestrados pelos ticões do petróleo.”  Marcão virou sua dose, limpou a boca e trouxe: “Como disse o poeta: Sou incêndio num poço de petróleo, arrasando o orçamento da nação!”

Houve uma pausa filosófica. Dr. Edson, ergueu o dedo, apontou: “Olha só, o Cruzeiro do Sul. Os navegadores católicos, ao cruzar o Equador rumo ao sul, devem ter considerado essa cruz no céu como um sinal verde, um sinal boas-vindas.” “Que aliás nunca foram escassos,” disse Seu Dô sem perder uma batida, um respiro; “os portugueses sempre agiram como se isto aqui fosse a casa deles, e o Cruzeiro não existe, é apenas a impressão visual produzida, sobre nosso ângulo de visão, por estrelas que na verdade não formam cruz alguma, estão muito distantes entre si.”  Marcão deu um trago e concordou: “Tem um verso de Jó Patriota lindo, sobre o luar, mas está me escapando agora”.

E prosseguiram assim. O Dr. Edson lembrou o projeto de colonização do planeta Marte, Seu Dô concordou que projetos colonialistas eram típicos de impérios decadentes, e Marcão relembrou uma sextilha de Pinto. Então uma nuvem cobriu a lua, e começou a neblinar. Os três bocejaram, despediram-se, recolheram-se, e dormiram em paz.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

3293) "Baque Solto" (17.9.2013)






“Um reencontro de meninos grisalhos”: é uma das maneiras de descrever o show Baque Solto, de Lenine e Lula Queiroga, no Baile Perfumado, casa noturna no Recife, no fim de semana passado. O pretexto do show era a comemoração dos 30 anos da gravação (em 1983) do álbum Baque Solto, gravado pelos dois após o sucesso do show Trem Fantasma, o primeiro em que dividiram o palco. O disco foi feito, passou despercebido, mas virou um ponto de referência para muita gente, para mim inclusive, sobre os futuros caminhos da música nordestina. Era um disco ousado, cheio de referências jazzísticas, de um grupo de músicos de 20-25 anos, talentosos, e, como se diz na Paraíba, “doidos pra se amostrar”.



Isso pode ser bonito, mas mais bonito ainda é ver 30 anos depois todos se reunirem e reproduzirem durante duas horas o repertório completo do disco, com canjas de quatro convidados especiais (eu, Ivan Santos, Tadeu Mathias e Zé Rocha). Foi uma alegria reencontrar os músicos do disco e do show original, alguns já afastados dos palcos, vários deles trazendo ao Recife suas famílias. E ouvir as guitarras de Alex Madureira, Paulinho Muylaert e Caxa Aragão; os teclados de Márcio Brandão e Alberto Rosenblit; a percussão de Durval; a bateria de Cláudio Wilner; o baixo de Fábio Girão; os sopros de Marcelo Bernardes. 



Baque Solto tem alguns momentos de quebra-quebra rítmico, de convenções ziguezagueantes que exigem atenção total e destreza em dia. Maracatus como “Auto dos Congos” (Lenine & Pedro Osmar) ou “Maracatu Silêncio” (Zé Rocha & Erasto Vasconcelos) continuam tão novos e inclassificáveis como em 1983. “Girassol da Caverna” (Lula) passeia pelo martelo agalopado e pela marcha-quadrilha. “Mote do Navio” (Pedro Osmar) continua sendo de uma euforia capaz de arrastar multidões. “Trem Fantasma” (Lenine & Lula), primeira composição conjunta dos dois, já tem algo do espírito de “A Ponte”. Se não fosse “Prova de Fogo” (Lenine & Zé Rocha) eu teria tido mais dificuldades em aceitar o System of a Down que vi no Rock in Rio do ano passado. É uma performance meio Gurdjieff, envolvendo quase uma mecanização perfeita de uma série de ações complexas. 


É um disco composto, arranjado e tocado por quem ouvia maracatus e Weather Report, cantadores e Clube da Esquina. Seu lançamento coincidiu com a explosão do Rock-BR e isto o eclipsou diante de parte de um público que talvez fosse seu, talvez pudesse aceitar e assimilar suas quebras rítmicas e fraseados melódicos complexos. O lado bom é que é um disco de estréia de um grupo de jovens, que sobreviveu justamente pela ousadia criativa que teve. O que é bom, fica.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

3292) A crítica literária (15.9.2013)






Antonio Cândido já esboçou mais de uma vez a diferença entre o crítico literário acadêmico, que praticamente só lida com os nomes consagrados, e o crítico de jornal, que recebe os livros recém-lançados pelas editoras e tem apenas alguns dias para ler o texto e formar opinião a respeito. 

Essa crítica diária, enfrentando textos de autores novos e ainda desconhecidos, envolve o risco de quem salta no trapézio sem ter por baixo a rede de proteção.



Diz Cândido: 

“Não é fácil escrever todas as semanas sobre livros do dia, feitos muitas vezes por autores desconhecidos, a respeito dos quais não se tem a menor referência. Por isso digo que um crítico como Álvaro Lins, que acertava sempre e produzia artigos bem escritos, de grande densidade e destemor, enfrentava dificuldades maiores do que, por exemplo, Augusto Meyer, que escrevia não sobre o livro da semana, de autor frequentemente desconhecido, mas sobre Camões, Cervantes, Machado de Assis, Dostoiévski, Pirandello, Rimbaud.”  

Escrever sobre os clássicos é mais cômodo, mesmo quando o crítico traz uma visão nova, emite um juízo arriscado, ou se envolve numa polêmica. O clássico todo mundo já sabe do que se trata. É território ainda não totalmente desbravado, mas território conhecido.



O difícil é receber um livro de alguém sobre quem não se tem muita informação – um autor estreante, por exemplo – e se deparar com um texto inquietante, desconcertante, cheio de coisas novas e inesperadas que tanto podem refletir genialidade quanto maluquice. O risco de emitir uma opinião errada é grande. O crítico não sabe como aquele livro vai ser avaliado pelos seus colegas, ou pelo público. Precisa se manifestar. 

Ainda hoje são conhecidos os casos de críticos que num primeiro momento reduziram a pó a obra de Carlos Drummond ou de Guimarães Rosa, e que depois ou se retrataram ou se encarniçaram, por auto-defesa, nessa recusa teimosa.


“O jornalismo crítico é uma grande escola e, de certo modo, um teste importante, requerendo intuição certeira, rapidez de apreensão, capacidade de decidir e clareza de escrita,” diz Antonio Cândido, e continua: “Reconheço em mim um pouco dos requisitos mencionados, que me permitiram, por exemplo, reconhecer imediatamente o valor de três estreantes desconhecidos: João Cabral, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Cometi erros paralelos, dando importância a autores que não a tinham, supervalorizando livros fracos de autores famosos; mas não me lembro de nenhum erro calamitoso, isto é, considerar de primeira plana quem não era ou desqualificar alguém de alto nível. Mas talvez a memória esteja manobrando a meu favor…”






sábado, 14 de setembro de 2013

3291) "Riverão Sussuarana" (14.9.2013)




Viajando a Minas para participar do VI Festival Sagarana, tive um sobressalto quando a nossa van, num trecho estreito da estrada, sombreado de perto por folhagens, cruzou uma pontezinha e junto dela vi a placa discreta: 

Ribeirão Suçuarana. 

Não tinha como não lembrar imediatamente do único romance publicado por Glauber Rocha, que eu não sabia ter o seu título inspirado num lugar de verdade. 

Riverão Sussuarana saiu pela Record em 1978, e teve uma reedição em 2012 pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi mais um desses “romances experimentais” que explodem a linguagem narrativa, e eu o colocaria na mesma prateleira do Catatau de Paulo Leminski, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros de Gramiro de Mattos, Me segura que eu vou dar um troço de Waly Salomão, etc. 

Livros fortemente marcados pela contracultura dos anos 1970, e por experiências com a linguagem que remetem tanto a James Joyce quanto aos autores “beat” norte-americanos (William Burroughs, Jack Kerouac, etc.).


Já o livro de Glauber remete a Guimarães Rosa; na verdade é uma extensa glosa aos temas do autor mineiro, que inclusive é personagem nos trechos iniciais. Glauber (narrando na primeira pessoa) e Rosa juntam-se à tropa que está tangendo uma boiada, e vão ao encontro de Riverão Sussuarana, cuja trajetória de vida ele descreve assim: 

“O pai do Riverão roubou o cavalo Joaquim dum cigano. Deu em fogo. Mataram o cigano e o pai de Riverão perdeu os ovos. Foi decapitado. Riverão criou-se pelo tio Ernesto Galvão que lhe cortou o dedo mindim. Lhe fez jurar vingança. Crescido Riverão foi discípulo de Peralva, um pistoleiro gaúcho. Entrou na Pensão Pedroza e matou os assassinos do pai. Preso, tocou fogo na cadeia e fugiu pra Bahya”.


O livro mistura pastiches bem feitos do Grande Sertão com as teorias conspiratórias e messiânicas de Glauber em seus últimos anos. Conforme era seu estilo na época, as letras K, W, Y e Z são usadas fartamente. Glauber escreve “Cachoeyraz”, “Tyradentes Kryszto”, “Komunysmo”, etc. 

Há trechos quase concretistas, outros que lembram roteiros de filme. 

Na página 214, surge do nada um parágrafo desconcertante: “A morte de minha irmã Anecy Rocha, no Marçabril carioca de 1977, arrebentou a estrutura de Riverão Sussuarana, e é o que acontece: várias páginas são dedicadas às discussões sobre a morte da atriz, que caiu no poço de um elevador. (Glauber inclui no livro dois contos escritos pela irmã.) 

Uma obra excêntrica, com lampejos da grande vigor literário aqui e ali, que precisa ser lida por quem se interessa por Glauber e por Guimarães Rosa.









sexta-feira, 13 de setembro de 2013

3290) Frederik Pohl (13.9.2013)








No dia do meu aniversário a ficção científica perdeu Frederik Pohl, aos 94 anos. Li poucos livros dele (que é um autor muito prolífico) mas talvez seja um dos que mais me influenciaram. Na adolescência li a tradução de Os Mercadores do Espaço, escrito em parceria com Cyril M. Kornbluth, uma das sátiras mais devastadoras do gênero. Um mundo futuro que é caótico, miserável, explorado, mas onde todo mundo é feliz, devido à publicidade. Ela convence a todos de que estão bem, mas tudo que é descrito horroriza o leitor ou lhe provoca gargalhadas sádicas. O livro acompanha as aventuras de um publicitário que cai em desgraça e é “apagado” da realidade (à maneira de Philip K. Dick). Acho que influenciou, logo cedo, minha desconfiança em relação a essa ilustre atividade profissional. (Um amigo me disse uma vez: “Se você entrasse para a publicidade ficaria rico”, e eu disse: “Prefiro morrer de frio embaixo dum viaduto”, o que ainda não é impossível que aconteça.)

O livro de Pohl que me conquistou foi sua autobiografia The Way the Future Was (1978). Pohl, nascido em 1919, tornou-se leitor e fã de FC muito cedo, e com menos de 20 anos já era tudo: autor, editor, agente. Ocupou todas as funções nesse mercado que cresceu junto com ele. Era de um otimismo cético como poucos, bem-humorado, crítico, tinha uma mentalidade atenta e pragmática que não o impedia de embarcar em projetos quixotescos que davam com os burros nágua e dos quais ele saía endividado e gargalhando. Não cheguei a ler alguns dos seus livros mais elogiados, como a série “Gateway”. Lembro sua vinda ao Brasil em 1990, com a esposa Elizabeth Anne Hull (que ele chamava “Bettyann”, aludindo ao livro de Kris Neville) e Charles N. Brown (editor da Locus). O CLFC-Rio organizou uma recepção no salão de festas onde morava Rubenildo Barros, na Praia Vermelha. Nessa noite ele autografou meu exemplar de The Way..., e Brown tirou minha foto com Gumercindo Dórea, publicando-a depois na Locus.

Pohl, voltando de um dia estafante em São Paulo, teve disposição para conversar comigo e com José Fernandes durante mais de uma hora, ao anoitecer, em seu hotel. Por algo que comentei ele me aconselhou a leitura de um conto de R. A. Lafferty, que eu nunca lera e desde então tornou-se um dos meus contistas preferidos. Sua esposa me filiou à SFRA (Science Fiction Research Association), da qual depois vieram a fazer parte Jesus de Paula Assis, Roberto Causo e (atualmente) Alfredo Suppia. Seu blog The way the future blogs é cheio de vívidas memórias pessoais e de comentários rápidos e certeiros sobre mercado editorial, literatura de FC e o futuro da humanidade.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

3289) Eu me lembro 2 (12.9.2013)




Eu me lembro dos chaveirinhos com uma imagem de linhas horizontais, que a gente mexia o chaveirinho e a imagem se movia. 

Eu me lembro de filmes intitulados “Tanganica, o inferno na selva”, “Ao sul de Sumatra”, “Curuçu, a besta do Amazonas”. 

Eu me lembro de vestir e calçar coisas com o nome de Topeka, Sete Vidas, Bamba, Samelo, Volta ao Mundo, BanLon. 

Eu me lembro de meu pai jogando no Presidente Vargas à noite, numa preliminar qualquer entre Gordos x Magros. 

Eu me lembro dos candeeiros do quarto de dormir, e da sensação de triunfo de quando me pediam para aumentar ou diminuir a chama, o que se conseguia girando uma rodinha de borda serrilhada. 

Eu me lembro das espirais Sentinela, que vinham duas a duas, encaixadas como um yin-yang, verdes, quebradiças, e do suportezinho metálico onde eram fixadas, e da espiral de cinzas partidas que deixavam no chão.  

Eu me lembro do gato que caiu dentro de um dos tonéis de água que havia em nosso quintal, e destruiu as unhas nas paredes internas tentando escapar, e não conseguiu. 

Eu me lembro de ficar parado olhando as mil variações de cores da fonte luminosa da praça, segurando a mão de minha mãe. 

Eu me lembro de um carrinho de empurrar que meu pai fez para mim aos oito anos com latas de goiabada como rodas, e que eu depois usei como bateria, empunhando duas colheres-de-pau da cozinha.

Eu me lembro do dia em que eu vi na estante de livros uma lagartixa morta, ressequida, presa embaixo de um livro sob o qual tentara passar e ficara presa, e o livro era a Bíblia. 

Eu me lembro da gemada com gema de ovo, açúcar e farinha. 

Eu me lembro da girafa em tamanho quase natural na calçada das Casas José Araújo, e lembro que sonhava em roubá-la para filmar o poema de Buñuel. 

Eu me lembro  do nosso conjunto “pé de palito” de móveis de sala, o sofá coberto de plástico azul, as poltronas amarela e laranja, e que o plástico do sofá se rasgou e minha mãe disse que foi porque eu ficava lendo e passando a unha no plástico até cortar, mas não foi.

Eu me lembro dos meninos andando de barco, num domingo de sol, nas águas do Açude Novo.  

Eu me lembro de que quando minha mãe chegou gritando que Jânio tinha renunciado eu estava lendo “A cidade submarina” de Conan Doyle.  

Eu me lembro dos picolés enrolados em papel, e de que eu não gostava do de rainha (castanha) porque os farelos se acumulavam na ponta. 

Eu me lembro de ficar olhando as meninas sendo barradas no colégio quando iam usando sutiã preto por baixo da blusa branca (não podia). 

Eu me lembro de ter usado sapatos de meu pai com enchimento de algodão no bico, porque meu pé era menor, e pedaços de papelão dentro, quando estavam furados na sola.