sábado, 15 de setembro de 2012

2977) Na festa do mundo (15.9.2012)




(foto: "Paris, 1924", Henri Manuel)

"O mundo era uma festa, uma noite estrelada, o terraço de uma cobertura aberta para o oceano, a avenida da praia percorrida por pares de faróis em trânsito incessante, os edifícios com janelas iluminadas e terraços onde pessoas dançavam, gritavam rindo para nós, erguiam o copo numa saudação alegre à distância, sem nem saber que éramos. 

"Nós mesmos não sabíamos quem éramos, e isso não tinha importância; a vida era uma coisa tão boa que nos poupava de ser bons, era tão acelerada que nos poupava da menor iniciativa.  Erguíamos os braços com as taças se derramando, ouviam-se gritinhos femininos de prazer, e nos saudávamos como se toda noite fosse uma festa de reveillon, como se no futuro alguém fosse ler em todas as lápides: “Eles viveram como se toda noite fosse um reveillon”.  

"Isso éramos nós, na pedra, no mármore e no bronze. A vida era uma comemoração do mero fato de haver a vida.  Uma celebração abstrata, um brinde e um beijo a toda e qualquer coisa, fosse um aniversário, um casamento, uma vitória, um festejo em comum. Os seres humanos do nosso mundo não perguntavam o  antigo “quem somos, de onde viemos e para onde vamos”.  Perguntavam: Como foi a festa de ontem? Como vamos nos preparar para a festa de hoje?  Alguém sabe onde tem festa amanhã?  

"Vivíamos erguendo os copos, arremessando serpentinas do nosso balcão ao balcão do sobrado em frente, vendo a rua fervilhar de dançarinos, o mundo era uma festa, e estávamos celebrando.  As águas subiam, e estávamos celebrando. As luzes falhavam, a comida acabava, a bebida estava quente, mas tudo era motivo para novos risos, novos gracejos, e celebração. 

"Onde havia uma avenida era agora correnteza; passavam boiando reses, carros, pessoas. Tudo era espetáculo para nossos comentários espirituosos, nossas apostas repentinas, nossos brindes.  Entrava noite e saía noite, nascia manhã e findava tarde, e íamos de lancha ao clube para onde antes íamos de carro, e onde os salões superiores estavam sempre apinhados de multidão e música, mesmo que lá embaixo a piscina estivesse submersa no lamaçal. Subiam colunas de fumaça, e apostávamos se o vento as empurraria para o nascente ou o poente. Prédios ardiam, e alguém murmurava um verso sobre “a beleza ancestral do fogo”.  As tropas chacinavam multidões famintas e tudo parecia um videogame.  Da vida só entendíamos o que ela tinha de festa, e é no espírito de festa que hoje, entre as ruínas, tomamos a sopa rude dos desabrigados que nos acolheram em seus barracos, e brindamos, com estes canecos enferrujados e esta cachaça impura, ao mundo que deixou de existir."