quinta-feira, 2 de agosto de 2012

2939) Escher-Lovecraft-Borges (2.8.2012)




A primeira obra de M. C. Escher que vi na vida, com uns 12 anos, foi a gravura “Escadaria” (1951), reproduzida numa revista, e que ocupou meu juízo por muito tempo. É um labirinto de escadarias verticais, horizontais e oblíquas, pelas quais se arrastam lagartos mecânicos feitos de partes articuladas (que ele chamava “wentelteefjees”, “bichos rolapé”). 

O que me fascinou primeiro foram esses monstrinhos articulados. Todo garoto adora monstros.  Um dia, depois de olhar muito para os  monstros, tentei entender o labirinto que eles percorriam, e fiz a pergunta fatal: “Peraí... onde é o chão?”.  Perdi o chão e não o achei de volta até hoje.  

Para Escher, aquelas centopéias-robô são apenas um ponto de referência de movimento, direção, orientação visual. O monstro é o espaço absurdo.

Nos contos de H. P. Lovecraft, o monstro surge como protagonista. Seu mundo é um mundo organizado e racional no qual irrompe de repente a presença maligna de algo impossível. É o mundo em que ele acreditava: um mundo com as obrigatórias três (ou quatro) dimensões, onde o Tempo se organiza em passado-presente-futuro e o espaço em norte-sul-leste-oeste. Um mundo onde existem os reinos animal-vegetal-mineral; os cinco sentidos; os elementos químicos.  

E nesse mundo geométrico, racional, brota alguma coisa disforme, glóbulos de caos, tumor de formas, uma presença maligna cuja existência põe em perigo todo o resto. Como numa teia de aranha, o universo de Lovecraft é um desenho de Ordem que tem no seu centro um Monstro.

Nos contos de Jorge Luís Borges (os contos de FC-metafísica de Borges, cuja obra é bem mais variada que a de Lovecraft) não aparecem muitos monstros. (O mais notável deles é o de sua homenagem a Lovecraft, “There are more things”, em O Aleph.)  

Borges vai mais fundo e, como Escher, interfere no software conceitual que nos orienta no mundo físico. Seu espaço é múltiplo (Babel: hexágonos infinitamente ladrilhados como num papel-de-parede) e desconexo (Tlon: produzido aleatoriamente pelas mentes que o habitam). 

Seu tempo não parece uma linha de metrô como o daquelas FCs onde se vai e se volta num “tubo” inalterável; é um torvelinho browniano onde não se cruza duas vezes o mesmo local. Cada ponto é ao mesmo tempo zero-cartesiano, zênite, nadir, ponto-de-fuga no horizonte...  Cada vez que os reinterpretamos assim, o sentido da história muda. 

Borges, Escher e Lovecraft eram três racionalistas empedernidos que intuíram, cada qual ao seu modo, que a racionalidade não esgota o mundo.  A racionalidade é uma simples grade métrica aplicada ao caos.  Pisamos com cuidado nela, e fingimos não ver os espaços vazios que ela nos oferece.