quinta-feira, 5 de julho de 2012

2914) Biografia romanceada (5.7.2012)





A biografia romanceada é um gênero literário de alto risco. Como toda tentativa de juntar duas coisas diferentes, na esperança de agradar a dois públicos, corre o risco de desagradar a ambos. O leitor de romances preferiria, às vezes, que a história seguisse um caminho que lhe parece dramaturgicamente mais promissor, mas a história não pode fazer isto, porque o autor precisa se ater aos fatos. (Ainda escreverei uma biografia de Bob Dylan em que ele morre naquele acidente de moto em 1966, e uma de Augusto dos Anjos em que ele vive e escreve até os 80 anos.)  Já o leitor que tem um apego técnico às leis e regras da atividade biográfica sente-se incomodado o tempo inteiro por certas liberdades imaginativas do biógrafo.  Inventar cenas, diálogos e pensamentos e atribuí-las a uma vida que de fato aconteceu parece uma coisa meio desonesta. É como retocar uma foto no Photoshop incluindo objetos que não estavam lá.

Isto me volta à mente com o lançamento recente de Edgar Allan Poe, o Mago do Terror de Jeanette Rozsas (Melhoramentos). É um livro agradável, muito ilustrado, com cronologia e bibliografia, e, até onde pude ver (não li o livro todo), dramatiza de maneira não-invasiva os fatos conhecidos da vida de Poe, um dos escritores mais biografados e mais estudados do mundo (até eu já fiz um livro sobre ele). Poe se relacionou e se correspondeu com centenas de pessoas que deixaram testemunhos escritos sobre sua convivência. É possível reconstituir encontros que teve com A ou B, diálogos, reuniões, conferências que proferiu, fatos da sua vida pessoal, etc.  O biógrafo-romancista tem em mãos duas ou três versões incompletas de uma briga de Poe com Fulano, por exemplo; cabe a ele escrever a cena como se a tivesse presenciado, tentando manter-se fiel aos documentos que são de conhecimento público, e usando sua “licença para mentir”, mas mentir no bom sentido – preencher com material “neutro” os trechos que ninguém sabe como aconteceram.

Ruy Castro, um biógrafo experiente, já disse: “Quando eu falo que no dia tal Fulano chegou à casa de Sicrano vestindo uma camisa azul, é porque perguntei a Sicrano qual era a cor da camisa. Não invento nada”. Ruy Castro não chama (pelo que eu saiba) seus livros de biografias romanceadas, mas de biografias mesmo, afirmando que cada detalhe ali está documentado. É a vantagem de quem escreve sobre pessoas e fatos relativamente recentes (Garrincha, a Bossa Nova, Carmen Miranda, etc.). Mais difícil é escrever sobre quem viveu há mais de 150 anos, pois não é mais possível entrevistar testemunhas. Temos o que ficou registrado no papel, mas não podemos fazer perguntas específicas.