sexta-feira, 2 de março de 2012

2807) O isto e o aquilo (2.3.2012)




Gilbert Adair tem um pequeno e divertido texto (em seu livro de ensaios The Postmodernist always rings twice, 1992) sobre a presença ou não do artigo “the” em títulos de livros. Diz ele que estava lendo Orgulho e Preconceito de Jane Austen e um amigo brincou: “Puxa, isso deve ser um best-seller erótico sobre um fazendeiro de algodão que se apaixona por uma escrava mulata no Sul, antes da Guerra da Secessão”. E ele disse: “Não, porque se fosse isso o livro se chamaria ‘O Orgulho e o Preconceito’”. Adair parte disso para enumerar uma porção de filmes famosos que usam e banalizam essa fórmula, muitas vezes forçando uma antítese por aliteração: The High and the Mighty, The Bad and the Beautiful, The Proud and the Profane, The Pride and the Passion. Adair comenta a certa altura que a presença do “the” nesse tipo de título exprime “uma espécie de ideal pseudo-Platônico em sua pretensão, o qual no entanto é rebaixado e trivializado pela expressão”.

O nome Orgulho e Preconceito sugere que se trata de um romance sobre casos específicos, exemplos humanos dessas duas situações mentais; O Orgulho e o Preconceito, no entanto, é algo mais pomposo, mais armado em definição definitiva, como se o autor, num tom meio professoral, estivesse nos exibindo uma explicação que esgota o assunto. Se lemos um livro chamado Crime e Castigo, estamos acompanhando uma história humana, e qualquer sentido metafísico dessa história irá emergir lentamente ao longo da leitura, com suas camadas sucessivas de implicações morais e culturais; mas se o nome fosse O Crime e o Castigo, seria como se o autor estivesse nos oferecendo logo de cara dois verbetes do Dicionário Metafísico.

Será sempre assim? Não. Quando falamos de coisas demasiado concretas o artigo é inevitável; o livro de Hemingway não poderia ser intitulado Velho e Mar. Um exemplo interessante é o grande livro de estréia de Norman Mailer sobre a II Guerra Mundial, The Naked and the Dead. São dois adjetivos, ao invés de dois substantivos; e adjetivos que exprimem uma idéia de apequenamento e derrota. Neste caso, o uso do artigo amplia estes sintomas de irrisão e lhes dá uma redenção simbólica, uma dimensão grandiosa. Chamar o romance Nus e Mortos equivaleria a deixar os cadáveres dos soldados ali mesmo onde morreram, jogados na trincheira alagada onde apodrecem; chamá-lo Os Nus e os Mortos equivale a extrair desses corpos um espírito, um sentido coletivo e redentor, e projetá-lo no ar diante da multidão de milhões de leitores. Por esta mesma lógica, Dostoiévski poderia ter, sem grande perda, intitulado seu livro Os Humilhados e os Ofendidos.