domingo, 30 de dezembro de 2012

3070) A FC de Pasárgada (30.12.2012)






Uma utopia é um lugar onde tudo acontece do jeito que a gente gostaria que acontecesse.  A utopia dos vegetarianos fecha os açougues, a dos dorminhocos multiplica os feriados. O Paraíso de algumas religiões, por exemplo, é uma variante da utopia. Não sei o que se passava na cabeça dos teólogos medievais que garantiam a existência, no céu cristão, de onze mil virgens. Para quê mesmo?... Atos falhos da psique, de que nem os eremitas do mosteiro estão a salvo.

A utopia de Manuel Bandeira tinha nome: “Vou-me embora pra Pasárgada...”. Bandeira quer ir para esse país imaginário (na antiga Pérsia, ao que parece) onde, ele garante, é “amigo do rei”. (É jeitinho brasileiro dando-se bem em qualquer lugar: “Eu sou ‘assim’ com os home”).  A ironia infantil do poeta denuncia logo de cara esse reinado impossível onde tudo é somente o desejo, desejo atendido no erguer de um dedo.

Os críticos destacam, nesse poema, a nostalgia do rapazinho tímido, fraco, assolado pela tuberculose. Ele anuncia a transformação miraculosa que sofrerá: “E como farei ginástica / andarei de bicicleta / montarei em burro brabo / subirei em pau de sebo / tomarei banhos de mar!”.  Tudo que lhe era proibido na vida real será possível nesse mundo.

Mas aí Bandeira nos vem com um trecho não muito distante da ficção científica futurista: “Em Pasárgada tem tudo / é outra civilização / tem um processo seguro / de impedir a concepção / tem telefone automático / tem alcalóide à vontade / tem prostitutas bonitas / para a gente namorar”. Parece com aquelas utopias urbanas meio dark de Robert Silverberg ou de Samuel R. Delany. Uma cidade cheia de gadgets para nos facilitar a vida, e só faltou dizer que as “prostitutas bonitas” são andróides, como as replicantes de Blade Runner ou as esposas-troféu de The Stepford Wives.

Utopias mecanizadas, como os eletrodomésticos inteligentes de The Jetsons. Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, dizia: “Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?”.  

O mundo automático é um sonho antigo, sonho de lavradores rudes: uma utopia onde os objetos trabalham sem nossa intervenção, como a bolsa que se enche inesgotavelmente de moedas nos contos de fadas, ou a toalha que ao ser estendida põe a mesa completa, no cordel. Essa utopia rural resultou no mundo urbano, moderno, high-tech.  Como todo sonho utópico que acaba se realizando, “deu no que deu”.


sábado, 29 de dezembro de 2012

3069) "Pânico no Ano Zero" (29.12.2012)





Neste filme dirigido (e interpretado) em 1962 por Ray Milland, um homem, sua esposa e o casal de filhos (na faixa dos 20 anos) estão na estrada com seu trailer rumo a umas férias na montanha quando veem de longe Los Angeles ser destruída por uma explosão atômica. As estradas ficam engarrafadas de carros em fuga, e começa uma luta desesperada pelos gêneros de primeira necessidade, e depois pela sobrevivência pura e simples, pois a Lei da Selva começa a se impor. Milland é um sujeito pacato de cujo passado nada sabemos (sequer sua profissão), mas uma das primeiras coisas que faz é comprar armas e afirmar que ninguém vai fazer mal à família dele. Nisto me lembrou muito o Walter White de Breaking Bad, para quem o argumento “estou defendendo minha família” justifica a priori qualquer transgressão, qualquer violência.

Eles se refugiam nas montanhas, abrigados numa caverna onde tentam simbolicamente recomeçar “do zero” a civilização. Arrumam a gruta com mesinha, cadeiras, etc., e dedicam-se à caça e às tarefas domésticas. Mas a Lei da Selva os persegue na pessoa de três jovens suspeitamente parecidos com os companheiros de James Dean em Juventude Transviada – rapazes que querem apenas assaltar, estuprar e divertir-se enquanto o mundo não acaba.

Milland faz um personagem complexo, porque adere com rapidez à violência (ao comprar as armas, por falta do dinheiro completo acaba assaltando o lojista), mas repreende com aspereza o filho que demonstrou prazer ao atirar num inimigo. Diz-lhe que ele tem o direito de matar alguém por auto-defesa, mas que não deve gostar daquilo.

A SF Encyclopedia informa que o filme se baseia (sem dar crédito) em dois contos de Ward Moore (publicados em 1953 e 54 na revista Fantasy & SF), intitulados “Lot” e “Lot’s daughter”. Há um certo paralelo com a história bíblica (os estranhos querendo estuprar a filha; a esposa que “olha para trás” e quer voltar para a cidade destruída).  Roubo, violência, assassinato a sangue-frio – o pai de família não recua diante de nada para proteger ou vingar a honra da família. Não sabemos quem atacou os EUA com bombas nucleares; sabemos que as grandes capitais do mundo foram atomizadas, que aquele ano foi denominado pela ONU “Ano Zero”, mas que a certa altura as conversações de paz chegam a um acordo. Os inimigos, na verdade, são os próprios norte-americanos. A certa altura, um médico se queixa de que as ruas estão cheias de patriotas matando e estuprando. É um pesadelo da Guerra Fria, e mesmo que as cenas de violência (tiros, socos, etc.) pareçam estranhamente ingênuas hoje, a transformação gradual dos personagens mantém o seu teor de ameaça.




sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

3068) Patentes e trolls (28.12.2012)



(Brock David)


Idéias valem dinheiro, porque tudo que produz dinheiro nasce de uma idéia. O conceito de registrar em patente a idéia de alguém, na tecnologia, é similar ao dos direitos autorais nas artes. Nos EUA você registra uma patente e tem 20 anos para investir nela e ganhar dinheiro. Depois, ela fica acessível, para não impedir o desenvolvimento tecnológico. Só que nem sempre. Um artigo de Steven Levy na Wired de dezembro (http://bit.ly/WrRbjw) discute a ação dos chamados “trolls” das patentes. Há muitos inventores que vendem os direitos de patentes nas quais não conseguem investir, muitas vezes para firmas de advocacia que passam a viver de processos judiciais contra quem quer que, da maneira mais vaga e longínqua, pareça estar infringindo aquelas patentes.

É um jogo. A matéria de Levy conta em detalhe  a ação desses grupos que, tendo em mãos uma patente suficientemente vaga, sai distribuindo pelo país inteiro centenas de pedidos de indenização por uso indevido daquela tecnologia. Fazem pedidos de porte médio, e como as custas judiciais nos EUA são altíssimas, os acusados preferem fazer um acordo e pagar 100 mil dólares ao “troll” do que arrastar um longo e cansativo processo, gastar o triplo disso, só para ganhar no fim. Quase sempre é mais barato pagar do que questionar a cobrança, até porque em muitos casos a lei impõe uma “injunção” – a empresa acusada fica proibida de usar a tecnologia em questão até que uma decisão seja tomada. Em muitos casos, sem aquele detalhe a empresa não pode funcionar. Melhor pagar ao “troll” e ficar com o menor dos prejuízos.

Além dos “trolls” existe a estratégia das próprias empresas que, ao desenvolverem suas tecnologias, saem comprando todas as patentes disponíveis que tenham a ver com aquela atividade, para se precaver. Hoje, Apple e Google investem mais em compra de patentes já existentes do que em pesquisa própria. É uma estratégia “preemptiva”: invadir qualquer país que tenha motivos para atacar o nosso, mesmo que não o tenha feito ainda. Diz Levy: “Não é o mesmo que Picasso tentando proteger suas obras-primas. Parece mais com um artista rabiscando um esboço depois do outro e amontoando aquilo tudo no sótão, e depois entrando com uma ação judicial quando alguém inadvertidamente pinta um quadro com assunto semelhante”. Toda a discussão de direitos autorais em música, literatura, etc., se dá no contexto de uma cultura da busca desenfreada do lucro, onde o inventor original tem um papel cada vez mais reduzido e a iniciativa fica com o que eles chamam de “entidades não-praticantes” (“nonpracticing entities”), os que compram uma idéia alheia e faturam com ela – os “trolls”.


quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

3067) Erotismo feminino (27.12.2012)






Todo mundo está falando do tal 50 Tons de Cinza como se fosse uma revolução erótica na literatura para mocinhas e donas de casa.  Pode até ser, pelo impacto da coisa e pelo fato de que uma revolução só é revolução mesmo quando a mídia faz alarde. Sem alarde na mídia o mundo se acaba e continua existindo, porque ninguém ficou sabendo. De minha parte, senti essa revolução nos anos 1980, quando traduzi romances femininos para a Abril (SP) e Rio Gráfica Editora (RJ). Claro, não traduzi somente romances femininos – eu dava preferência aos livros de faroeste. Mas grana é grana, caiu na rede é peixe. O que me davam eu traduzia, e, como tinha um nome a zelar (ou imaginava vir a ter um dia), traduzia sob pseudônimo.

Na minha primeira ida a São Paulo (eu ia de ônibus, pegava o livro a traduzir, dava uma volta pelas livrarias e à noite pegava o ônibus de volta), a moça me deu instruções muito explícitas sobre o que fazer. “Esses romances estão mudando”, disse ela (isso era 1985, 86, por aí). “Agora têm cenas de sexo bastante apimentadas. O principal cuidado na tradução é: evite palavrões, termos vulgares, porque a leitora não gosta. Com essa restrição, pode caprichar nas cenas de sexo.”

Traduzi vários desses livrinhos; a heroína não era uma daquelas donzelas recatadas das antigas fotonovelas de Capricho ou Sétimo Céu. A primeira cena de sexo (sempre entre ela e o mocinho – não havia sexo com outras pessoas) era por volta do primeiro terço do livro. A heroína era uma mulher sozinha mas independente (geralmente uma profissional liberal) que conhecia um cara e a certa altura ia pra cama com ele. Os dois se envolviam, mas havia problemas, crises; vinha mais uma cena de cama, ou duas, mas o sujeito era meio escorregadio ou problemático e a história evoluía para uma crise em que ela demonstrava seu valor (salvava a vida dele, ou salvava a propriedade dele da destruição, ou desmascarava um falso amigo dele) e no fim os dois acabavam vivendo juntos e jurando amor eterno.

O tema da “ficção para moças” é sempre o mesmo: uma heroína se apaixona por um sujeito difícil, conquista-o e força-o a ser monogâmico por amor a ela. Essa é a estrutura básica do gênero, e a adição das cenas de sexo servia apenas para apimentar. Naquele tempo não se usava o sadomasoquismo nem o fetichismo que parecem ser o diferencial dos atuais sucessos. Resta saber se neles a estrutura se mantém. Porque o objetivo do romance feminino é mostrar uma mulher conquistando, só para si, um homem que pelo seu poder e suas qualidades poderia ter todas as mulheres que quisesse, mas abre mão de todas por amor a ela.



quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

3066) As três cruzes (26.12.2012)




(Max Bertolini)


Na manhã seguinte, Zoroeu acordou cedo, tomou um pouco de leite coalhado e desceu a ladeira.  A tempestade deixara a terra empapada, as barrancas derruídas, as pinguelas difíceis de transpor, mas as poucas horas de sol tinham bastado para tornar transitável o caminho.  Ele rodeou o mercado, já repleto àquela hora, contornou a pequena muralha que protegia o acesso ao monte.  Nas ruínas de uma guarita homens narravam coisas em altas vozes.  Ao  escalar o monte ele cruzou com dois soldados romanos que desciam, fatigados, queixando-se de terem dormido mal. Chegando no alto, viu que os corpos haviam sido levados, e que poderia começar a remoção. À promessa de algumas moedas, dois homens corpulentos o ajudaram a extrair do chão as cruzes e, depois de alguma negociação, concordaram em arrastá-las até a sua tenda. Desceram o monte, refazendo o trajeto, e ao chegarem as depositaram sobre o chão. Zoroeu lhes ofereceu água e vinho, que eles aceitaram e beberam limpando o suor. Um deles fez um resumo desinteressado das execuções da véspera, e depois de receberem o pagamento os dois foram embora.

Zoroeu examinou primeiro as cruzes menores, ambas em bom estado. Limpou as manchas de sangue seco, extraiu pedaços de cravos ainda enfiados na madeira (às vezes, para os que desprendiam os cadáveres, era mais simples dilacerar a mão do que extrair o cravo). Desencaixou as peças, após cortar as cordas que ajudavam a fixá-las no cruzamento.  A madeira era desgastada, velha, mas boa; somente o braço horizontal de uma delas estava corroído por cupins e quase podre.  Ele arrastou as quatro traves para os fundos e as alinhou a outras que estavam ali desde a semana anterior. Só então voltou e se concentrou na cruz principal, a que tinha chamado sua atenção na véspera.

Quando inseriu uma alavanca no encaixe central e começou a separar as duas traves, ele se deteve. Pela primeira vez olhou com atenção a madeira. Ao contrário das duas outras cruzes, não viu sinais de sangue, embora a madeira continuasse úmida pela chuva. Procurou nas extremidades da trave menor os sinais de pregos: nada. Procurou na trave maior, à altura de onde deviam ter ficado os pés: nada. Nenhum sangue, nenhuma perfuração. A madeira estava intacta. Como se nenhum cravo tivesse sido pregado ali, como se nenhum corpo tivesse ficado ali dependurado, como se nenhuma morte, nenhum sangue tivesse acontecido. Ele ficou de joelhos no chão, apalpando aquela madeira pura, intocada, virgem de contato humano. Não compreendia, mas o que seus olhos e suas mãos lhe informavam era verdade. Ele se sentiu mudo diante de um mistério que parecia pronto para acontecer mais uma vez.



terça-feira, 25 de dezembro de 2012

3065) Natal 2012 (25.12.2012)




(Catryn Arno)


...e estou de volta ao ponto de partida, 
ao trampolim do Tempo que me impele 
a saltar para fora desta pele 
como quem larga a roupa no banheiro. 
Meu último dezembro? Ou o primeiro 
noutro plano que não este de agora? 
É noite. Ruge o trânsito lá fora 
nessa avenida insone que não para 
e as multidões arquejam no Saara 
buscando o oásis do crédito fácil. 

E onde diabos perdi o meu palácio? 
Em que bolso esqueci o meu castelo? 
Quede o meu submarino, aquele yellow, 
que cruzava universos transversais? 
As alucinações sensoriais 
transportaram meu corpo a outro porto 
onde um dia, não sei, voltarei morto 
e encontrarei meu rosto adormecido 
num travesseiro feito do tecido 
que as aranhas bordaram para mim. 

Someone tells me that life is but a dream 
e a guilhotina do despertador 
decepa o sono no melhor do amor 
e me projeta nesta Distopia 
em que mais queima e dói a luz do dia, 
o ferro-em-brasa de qualquer verão, 
do que a treva, a ausência, o nada, o não, 
o Nirvana do zero absoluto... 
Bastam só as besteiras que eu escuto 
pra sonhar em viver como um Beethoven 

pois os surdos não sofrem do que ouvem 
como nós, a nadar no som alheio, 
um rumor que jamais diz a que veio 
mas aumenta o volume e abaixa o nível. 
Bora lá, paladinos do impossível, 
combater o mau gosto, o gosto médio! 
Quero afogar em vodka este tédio, 
sufocar o Medíocre em si mesmo, 
essa tela que berra à balda, a esmo, 
como se fossem gralhas coloridas. 

Este ano custou-me tantas vidas... 
mas eis-me aqui ao fim de tudo, intacto, 
intratável e áspero; o cacto 
de Bandeira, que morre e não se entrega. 
E em dezembro retorna a luta cega 
das comemorações obrigatórias, 
mil cervejas, mil risos, mil histórias, 
tudo festivo como um Facebook 
onde cada usuário emprega um truque 
pra divulgar o seu melhor retrato. 

Nessa luta de cão-e-gato-e-rato 
não dá pra dispensar a hipocrisia, 
que não deixa de ser diplomacia, 
revestida de boas intenções. 
Sendo assim... tragam logo esses garçons, 
o champanhe, a cerveja, os canapés... 
Que seja a vida como os cabarés 
ou a buate que eu chamava “bôite”, 
onde a festa feliz virava a noite 
e o álcool desmanchava o sofrimento. 

Este ano passou feito um momento: 
vupt! – e pronto, é Natal mais uma vez. 
É hora de lembrar o que se fez, 
empurrar o não-feito mais pra frente, 
abraçar, receber e dar presente, 
como a peça mil vezes encenada 
que toda noite vem modificada 
pela corrente oculta dos Acasos 
visto que o Tempo não tolera atrasos 
e que nossa viagem é só de ida...



domingo, 23 de dezembro de 2012

3064) Um besouro (23.12.2012)







Verão, calor sufocante. Minha rua tem prédios de um lado, e do outro uma encosta de pedra com mais de 50 metros, coberta de árvores, matagal, rochas enormes. Todo mundo que vem aqui acha uma beleza e suspira: “Como deve ser bom viver junto da Natureza!”.  

Esquecem os desatentos que a Natureza, do ponto de vista quantitativo, tem um bilhão de besouros para cada mico-leão-dourado ou boto-cor-de-rosa. No verão, quando a chapa esquenta, o mundo coleóptero se assanha. 

Vai ver que o verão é, também para eles, a época melhor para o acasalamento, a caça às fêmeas, o roçar obsceno das superfícies quitinosas. Por volta do meio-dia o ar em frente à janela do meu escritório fica parecendo o espaço aéreo de Pearl Harbor naquela manhã inesquecível.

Pois bem: logo agora um desses bichos emburacou zoando como um helicóptero, com um vibrar ensurdecedor de élitros, esbarrando nas estantes, arremetendo com insensatez contra a luz fluorescente (que vive sempre acesa, mesmo ao meio-dia – senão o terceira-idade aqui não enxerga o teclado) e investindo de encontro aos meus óculos, que o bicho-voador talvez imagine serem câmaras do FBI invadindo sua privacidade insetóide.

Pois não é que o danado, tentando fugir pela janela, acaba se encalacrando do lado direito, entre as duas lâminas de vidro, uma delas corrediça?!  Fico vingado ao vê-lo naquela situação kafkeana, preso entre dois campos-de-força invisíveis (deve ser assim que ele interpreta os vidros – parece um besouro jovem, que lê ficção científica). 

Mas ele esperneia tanto, se debate tanto, que acabo me condoendo. Com uma régua cuidadosamente inserida, empurro-o para fora da armadilha, apago a fluorescente (para que o idiota entenda que o sol está lá fora) e vejo-o partir, rumo ao Bar dos Besouros, para se vangloriar de sua aventura.

Por que fiz isto? Acho que fiz por pena dele, solidariedade entre viventes, e porque, de certa forma, “um besouro também é um ser humano”. Eu tenho o dom da empatia, de me colocar no lugar dos outros (por isso sou péssimo para negociar contratos – sempre fico com pena da gravadora, da editora, da rede de TV, etc.). 

Salvei o besouro para que ele fosse feliz, mesmo sabendo que a felicidade dele não aumenta em nada o meu pecúlio. Ou talvez aumente, sim.  Rendeu-me uma crônica, como a borboleta de Brás Cubas rendeu a Machado um capítulo.

O ser humano é uma ilha e é o mar que a cerca. Até o bem que fazemos aos outros nunca ultrapassa as fronteiras de nós mesmos. Nem um serial killer nem Madre Teresa de Calcutá chegam jamais a saber o mal ou o bem que fazem. 

Ah, que se dane. Fui no YouTube e fiquei vendo Cassia Eller cantar “Blackbird”.









sábado, 22 de dezembro de 2012

3063) O Modernismo e o samba (22.12.2012)






O colombiano Alejandro Ulloa, antropólogo, morou alguns anos no Brasil e aqui defendeu sua tese de mestrado na Unicamp, em 1991, a qual resultou no livro Pagode – a festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas”(MultiMais Editorial, Rio, 1998). Ulloa estudou o pagode carioca, não esse pagode estilizado das TVs, mas o pagode de fundo de quintal onde as pessoas se reúnem para “cantar, tocar, dançar, comer e beber”. Sobre o termo “pagode” ele comenta um detalhe que ocorre também com o forró: a “operação linguística de nomear a música e o acontecimento da festa com o mesmo termo”, o que mostra que a música está ligada de modo crucial à convivência, ao coletivo, ao compartilhamento de vidas.

Depois de examinar exaustivamente o mundo do samba e comparar sua trajetória de ascensão social com a do tango argentino, etc., Ulloa discute a questão do Modernismo nas artes na virada do século 19 para o 20, quando esse movimento se firmou no romance, na poesia, nas artes plásticas, etc., e expõe sua teoria principal: “A maior contribuição da América Latina para o modernismo não se deu nas artes plásticas, nem na música erudita, nem na literatura, nem na poesia, como nos foi dito tantas vezes, mas na música popular”.  Para ele, no campo literário e erudito “nossos modernistas eram representantes de si mesmos, e não da nação”.

Ele vê no samba, no tango, no danzón, na rumba, na salsa, etc. os mesmos elementos (pág. 201 e seguintes). Todos nascem na segunda metade do século 19, nas cidades mais importantes de cada país. Nascem em bairros pobres, geralmente próximos ao cais do porto. Têm um forte ascendente religioso e ritualístico, de origem africana. Apresentam uma linguagem musical sincopada, e têm uma expressão dançável (música para ouvir, e também para dançar). Todos foram, no início, objeto de perseguição, proibição e estigma. Numa fase posterior, foram aceitos pelas elites intelectuais e se tornaram parte dos símbolos nacionais; e, por fim, tornaram-se o principal sustentáculo da indústria do espetáculo e do entretenimento.

Esses gêneros musicais, segundo Ulloa, exprimem a transformação de cada um desses países no momento em que se libertavam de sua condição colonial e se preparavam para nascer como repúblicas. O livro do colombiano me parece uma importante leitura complementar para outros estudos como O mistério do samba de Hermano Vianna (1995) e O encontro entre Bandeira e Sinhô de André Gardel (1996), que documentam o momento em que essa música negra e proscrita é aceita e oficializada, pelas elites intelectuais brancas, como representante legítima da nacionalidade e do sentimento popular.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

3062) A gente não presta (21.12.2012)






Nelson Rodrigues tornou célebre o conceito de “complexo de viralata”, a forma peculiar de complexo de inferioridade que o brasileiro em geral costuma puxar do bolso à menor derrota, ao menor fracasso. Esse complexo está bem ilustrado na famosa piada sobre a criação do mundo. Deus põe no Brasil as melhores florestas, as melhores praias, o que há de melhor na Natureza, e quando alguém reclama de tanto favorecimento ele diz: “Ah, você precisa ver o povinho vagabundo que eu vou colocar aqui”. 

Eu proponho rebater essa piada com outra em que Deus está distribuindo as classes sociais no Brasil, e vai derramando aqui as elites mais egoístas e mesquinhas, os intelectuais mais colonizados, os banqueiros mais rapaces, a classe média mais consumista, os políticos mais venais, e assim por diante. Alguém protesta contra tanto castigo e Deus responde: “É porque você ainda não viu o Povo-mesmo que eu vou botar aqui, é um povo que vai passar por cima disso tudo e vai fazer um grande país”.  A piada é besta?  Não é nem piada?  Sei lá, pra mim é tão boa ou tão ruim quanto a outra, porque a mente da gente aceita o que já está estruturalmente preparada para aceitar.  Tem brasileiro que duvida do Brasil e pronto, acabou-se. Para ele, dizer que o Brasil não presta serve de camuflagem inconsciente para o fato de que quem não presta é ele.

Caetano Veloso disse uma vez em sua coluna no “Globo”: “Gostaria que, em vez de desvalorizar para se eximir, que é o que a maioria se acostumou a fazer, as pessoas se habituassem a valorizar o Brasil, porque isso dá mais responsabilidade”. Acho que ele detectou o nosso bug.  Desvalorizamos o Brasil para que o Brasil não cobre muito esforço de nós, coisa que o Brasil faria se estivesse destinado a grandes realizações. Somos como o jogador de futebol que diz: “Pra que correr? Vamos perder de qualquer jeito...”  E eis um belo exemplo de profecia que cumpre a si mesma.

Dizer que o Brasil não presta interessa a um grupo de deprimidos macambúzios (como desculpa para não fazerem nada, porque são mesmo incapazes de fazer seja lá o que for) e a um grupo de gente para quem o Brasil presta, e muito, do jeito que está – todos os que estão se enchendo de grana com o atual estado de coisas. “O Brasil é essa porcaria mesmo”, dizem, “todo mundo aqui é ladrão, todo mundo aqui é vagabundo, isso aqui não tem futuro”. Desmoralizar o país é uma simples tática para bloquear os que gostariam de moralizá-lo. Talvez o Brasil seja (na visão desses caras) um pitbull que vai estraçalhar todos os seus esquemas, as suas tenebrosas transações, no instante em que descobrir que não é um mero viralatas. Quem viver, verá.