domingo, 16 de outubro de 2011

2689) Já batemos no iceberg (16.10.2011)



Meu primo, que mora perto da proa, me confirmou por email. O choque com o iceberg foi em novembro do ano passado. Aqui, no Convés 18, sentimos o abalo em dezembro, e foi então que começaram os boatos. Em fevereiro, um comunicado do Capitão aos passageiros disse que estava tudo bem, mas a essa altura, apesar da censura na mídia interna, já havia um certo consenso de que algo tinha mesmo acontecido. Há cada vez mais migrantes afluindo para o meio do navio. Todos são obrigados a dar versões tranquilizadoras dos fatos e desculpas esfarrapadas sobre os motivos de sua mudança às pressas. Há uma corrente oficial de otimismo nas TVs, no sistema de rádio e de alto-falantes que só nos dão dados positivos sobre o percurso e as condições meteorológicas. Mas há também uma corrente subterrânea de rumores, de histórias contadas pela metade, de fotos e vídeos em baixa resolução mostrando situações dantescas, e nos levando a duvidar de nossa sanidade mental. Porque basta olhar em volta, como insistem os tripulantes, para constatar o sol brilhando, o céu azul, a coreografia plácida dos albatrozes e das gaivotas; para ver à noite as nuvens esparsas arrastadas pelo vento, a luz prateando o espelho das águas. Como acreditar nesses vídeos clandestinos dos migrantes da proa, mostrando o rombo cataclísmico no casco, as catadupas de água, os marujos em capas de plástico amarelo bombeando água para fora, em mangueiras maiores que sucuris? Como acreditar que andares inteiros do porão de carga já estão invadidos pelas águas, como crer nas fotos que mostram um rastro de automóveis e eletrodomésticos boiando à deriva nas ondas revoltas? Nem mesmo o pranto histérico dos que perderam parentes ou amigos nos convence, porque a própria histeria os deixa incoerentes, há detalhes que não batem, datas, nomes, fatos cujos relatos não coincidem. Mas todos os dias, enquanto nos douramos ao sol na piscina, basta que nos debrucemos para ver, centenas de metros abaixo, no tombadilho principal, a extensa fila de viajantes, com malas, caixotes e trouxas de pano à cabeça, nos postos de controle, solicitando passagem. Não vêm para ficar aqui, claro; estão em busca de abrigo nos territórios mais baratos (e nos compartimentos populares) na região da popa. Mas o mero fato de atravessarem nosso território nos contamina de inquietação. “Por que passam por aqui?”, murmurou hoje de manhã a Duquesa de Beauséjour, massageando as narinas. “Se querem ir para a popa, bem que podiam alugar botes e ir remando”. Concordei, bocejei, fiquei contemplando meu uísque onde boiava um indestrutível bloco de gelo.