quinta-feira, 25 de agosto de 2011

2644) O Cão de Mauro Mota (25.8.2011)



Os leitores de poesia estão comemorando os cem anos de nascimento do poeta pernambucano Mauro Mota, falecido em 1984. MM foi um desses muitos talentos literários que conseguem uma consagração razoável em sua própria terra, virando inclusive referência obrigatória para as gerações futuras, mas nunca conseguem se tornar poetas de aceitação nacional, e anos depois de seu falecimento começam a ser meio esquecidos, o que é uma grande injustiça. São muitos casos assim: o mineiro Dantas Motta (Elegias do País das Gerais), o goiano José Godoy Garcia (Araguaia Mansidão), o carioca Moacyr Félix (Um Poeta na Cidade e no Tempo), e outros que, quando os li, pareciam-me pertencer ao primeiro time da poesia brasileira (um time bem amplo, por suposto). E hoje parece que ninguém sabe quem foram.

Mauro Mota tem uma série de sonetos (no livro Elegias) inspirados, ao que se diz, pela morte da esposa ainda jovem. São de uma extrema delicadeza de observação e de sentimento. Lembram poemas semelhantes de Alphonsus de Guimaraens ou de Cruz e Souza, registro impressionista de emoções profundas que se exteriorizam em minúsculos aspectos físicos. Uma feição, um gesto, um pedaço de vestimenta, uma atitude, tudo cercado pela fragilidade do corpo e pela inevitabilidade da morte. Mota foi também um poeta de extrema visualidade, a visualidade que percebe pequenos detalhes e faz surpreendentes associações de idéias. Lembro seu poema sobre o guarda-chuva como uma “grande rosa negra” que desabrocha nos dias de chuva, ou o poema sobre a bengala como uma árvore que é arrancada de novo toda vez que toca no chão.

Meu poema preferido de MM é “O Cão”, que já na adolescência me impressionava pelo terror apocalíptico que era capaz de inspirar, o cão mítico que era o Cérbero da mitologia, o Cão dos Baskervilles que perseguiu Sherlock Holmes, o mastim infernal que farejava a trilha de Robert Johnson. Diz o poeta: “É um cão negro. É talvez o próprio Cão / assombrado e fazendo assombração. / Estraçalha o silêncio com seus uivos. / A espada ígnea do olhar na escuridão / separa a noite, abre um canal no escuro.” Um molosso infernal, místico, de dimensão ameaçadoramente noturna e subterrânea. Ele prossegue: “Cão da Constelação do Grande Cão, / tombado no quintal, espreita o pulo: / duendes, fantasmas de ladrão no muro.” Versos que me lembram aquele “soneto irritado” de Drummond: “Ninguém o lembrará: tiro no muro, / cão mijando no caos...”

O Cão de Mauro Mota é o cão da estrela Sirius da constelação do Cão Maior, um cão gigantesco que se ergue no céu e ocupa o espaço de horizonte a horizonte: “O latido ancestral liberta a fome / de tempo, e o cão, presa do faro, come / o medo e a treva. Agita-se, devora / sua ração de cor. Pois, louco e uivante, / lambe os pontos cardeais, morde o levante / e bebe o sangue matinal da aurora.” Um poema simbolista, surrealista, emblemático, alquímico? Não, sei, mas pra mim é poesia pura.