sábado, 13 de agosto de 2011

2634) No asilo de lunáticos (13.8.2011)



“Ora, claro, é sempre um prazer receber a imprensa. Quem é que não gosta de ver seu trabalho divulgado junto ao grande público, a fim de que este se aperceba do nosso esforço diário, das dificuldades que enfrentamos, das vitórias científicas que conseguimos? Por aqui, faz favor... Este corredor vai dar no pátio, se bem que a esta hora deve estar quase vazio. É a nossa hora da sesta. Ah, veja bem, aquele rapaz gordo sentado à sombra do cajueiro. Vê como está coberto de tatuagens? Quando chegou aqui tinha a pele lisa como a minha ou a sua. É um mistério o modo como essas tatuagens aparecem. Ele passa horas a explicá-las nos menores detalhes. Surgem tatuagens cabalísticas num dia, meteorológicas no outro... Ontem, exibiu um zodíaco babilônico; hoje, vi-o mostrando e comentando as capas dos discos que pretende gravar, à razão de um em cada século; amanhã, sabe-se lá o que surgirá em sua epiderme.

“Veja as duas senhoras idosas que se aproximam, a mais magra amparado a mais idosa. São Dona Vanilda e Dona Charlotte. Dona Vanilda é uma dona de casa inculta, deprimida, nascida e criada no sertão; Dona Charlotte é filha de franceses ricos e se criou no Rio de Janeiro. O mais interessante é que essas pessoas não existem. São personalidades intercambiáveis; as duas mulheres ficaram amigas, e quando uma delas amanhece como Charlotte a outra automaticamente se torna Vanilda, e vice-versa. Suas identidades reais (a que está nos documentos) elas já esqueceram totalmente. Nós também.

“Nenhum desses casos, é claro, é tão estranho quanto o de Catavento, aquele negrinho magro que está nos galhos daquela árvore. Ele fala uma língua desconhecida desde que chegou aqui, vítima de uma crise catatônica. Serve de intérprete para a maioria dos outros pacientes, porque não importa o que lhe peçamos para dizer ele diz na tal língua e as pessoas obedecem, atendem, mesmo quando não nos ouviram dizer a Catavento o que queremos que elas façam! Sim, já fizemos horas e mais horas de gravações, trouxemos linguistas... Nada. A língua é uma algaravia, palavras que nunca se repetem; mas os doidos a compreendem.

“Doidos é um modo de dizer, não é mesmo? Aquele rapaz de bigode, por exemplo, tem consciência de que é doido. Produz delírios o tempo inteiro, basta dirigir-lhe a palavra. De mais a mais, é bem comportado, higiênico, obedece aos enfermeiros... Mas todo dia de manhã conta de si mesmo uma história diferente, e não parece ter memória do que lhe aconteceu no passado remoto ou recente. É como se todo dia ele fosse obrigado a inventar uma doidice nova, inventar para si mesmo um motivo, uma explicação para o fato de estar internado aqui. É um bom rapaz, mas muito tenso, muito nervoso, e na verdade tenho muita pena dele, porque deve ser muito desgastante, para um doido, não conseguir lembrar qual era sua doidice na véspera e ter que inventar todo dia uma doidice nova para poder justificar sua existência no mundo.”

2633) Cinema e biografias (12.8.2011)



(Adrien Brody como Salvador Dali)

Quando vemos filmes que contam a história de pessoas famosas, com as quais temos certa familiaridade, avaliamos essas encenações biográficas de acordo com as nossas expectativas de como elas deveriam ser tratadas num filme. Dizemos que o filme tal não é fiel à imagem de Dylan Thomas, ou que o ator que interpretou Rodin não está à altura dele. Dizemos que o filme sobre Villa Lobos esteve mais próximo da realidade do que o filme sobre Beethoven; e assim por diante. Isto não ocorre apenas com o cinema, claro; na pintura também. Há muito tempo foi questionada a imagem de Tiradentes que os quadros históricos nos transmitiram: barbudo como Cristo, vestindo um roupão branco, etc. Dizem os historiadores que os prisioneiros naquela época tinham que cortar a barba e o cabelo, para evitar piolhos. A imagem de Tiradentes que herdamos é uma farsa para torná-lo parecido com Jesus Cristo. (Quanto à imagem de Cristo, isso aí já é outra história).

No recente Meia Noite em Paris, Woody Allen faz seu protagonista contracenar com uma porção de artistas e escritores, desde Picasso e Luís Buñuel até T. S. Eliot e Gertrude Stein. Vi interessantes discussões de críticos achando qualidades e defeitos em cada uma dessas recriações, sempre com base na imagem pública que guardamos daquelas pessoas. Personagens como estes podem ser discutidos, porque estão suficientemente próximos de nossa memória cultural, mesmo que não da memória pessoal de cada um. Creio que nunca vi nenhum documentário sobre Hemingway, mas existem muitos, e certamente ainda há pessoas vivas que o conheceram. Imagens do cinema e da TV podem nos dar pelo menos uma vaga idéia de como era ele. Mas o que de dizer de filmes sobre personagens de 200 ou 300 anos atrás? Que verossimilhança podemos exigir?

Comentando o filme, Woody Allen falou: “Daqui a cem anos, alguém vai fazer um filme sobre a Nova York da minha época, e digamos que eu não serei um dos personagens mais importantes, mas alguém periférico. Alguém vai entrar no Elaine’s e lá estarei eu, interpretado por algum canastrão, porque todos me veem como um canastrão, e ele estará usando óculos de grau, e será um sujeito recluso, ceio de pessimismo existencial, que sente calafrios diante da mera possibilidade de ir passear no campo – alguma imagem execravelmente exagerada do que as pessoas imaginam que eu sou. E isso será o meu inferno”.

Difícil saber se os homenageados de Midnight in Paris se divertiriam ou ficariam irritados diante do modo como foram tratados. Allen tem consciência de que cada um de nós é uma pessoa de verdade coberta de caricaturas de si própria que são resultado dos nossos contatos com diferentes pessoas. Personagens públicos sofrem a cristalização de um imagem que é reforçada constantemente até se tornar óbvia e obrigatória. A esta altura, é difícil convencer alguém de que Kafka não era deprimido, Karl Marx não era iracundo, D. João VI não era um bobalhão.

2632) O jeito certo de falar errado (11.8.2011)




Minha irmã Clotilde já teve que enfrentar muitas polêmicas porque usava às vezes o termo nordestino “apois”, em vez de “pois”. Pode ser vício de linguagem, mas também é resíduo afetivo de uma infância falada num idioma bárbaro que fascinaria Camões e o Padre Vieira, longe de escandalizá-los. Mas como os dois lusitanos estão “em pó desfeitos e do pó alçados”, as pessoas se escandalizavam. Algumas diziam: “Mas você, uma doutora, uma intelectual, falando assim...”, enquanto outros certamente murmuravam à socapa: “Só pode ser mesmo da Paraíba...”

O “apois” é uma forma aparentemente errada, mas que só se realiza plenamente como linguagem expressiva se usada assim, ostentando o resíduo bárbaro (no caso o prefixo “A”). Talvez seja uma exigência rítmica do discurso, pois essas duas sílabas lhe dão mais base, mais equilíbrio. Tanto o “pois” como o “apois” são uma maneira tácita de mostrar que a frase do interlocutor foi registrada, mas não necessariamente que a gente concorda com ela. “—Eu ouvi dizer que você vai viajar na 5ª. feira. – Apois. Vou, sim, mas na verdade é na sexta.”

Essa expressão (que poderia ser vagamente substituída por “OK”, “certo”, “pois é”, algum tipo de concordância sem compromisso) equivale sintaticamente ao famoso “intão” dos paulistanos, tão incrustado no discurso dos nossos amigos de lá que vai acabar virando um sinal de pontuação como o travessão e as aspas. “—Precisamos conversar sobre aquele projeto! – Intão. Aparece amanhã lá no meu escritório.” De certo modo parece um expletivo, aquelas partículas que ajudam a enfatizar o discurso mas que a rigor poderia ser extirpadas sem perda do sentido. Mais ou menos como o “pois é”, que só é necessário quando vem sozinho, mas quando precede uma frase poderia ficar de fora sem que ninguém percebesse sua ausência.

Falei que o “apois” cumpre a mesma função sintática do “intão”, mas cumpre também a mesma função melódica. Toda frase tem melodia, não é mesmo? Uma pergunta como “Não é mesmo?” só se impõe como pergunta, na voz falada, por causa da inflexão melódica que lhe damos, e que na linguagem escrita indicamos pelo sinal “?”. Uma pergunta tem sempre a mesma melodia básica, daí ser difícil (experimentem!) fazer uma letra de música cheia de perguntas. Por quê? Porque a melodiazinha implícita da frase perguntante costuma se chocar com a melodia que tentamos imprimir à canção.

Um outro aspecto. Repararam que grafei “intão”, e não “então”? Apois. Porque é assim que os paulistanos (nem todos, claro) falam, assim como os paraibanos (nem todos, claro) falam “apois”. A Norma Culta ensina como grafar em linguagem denotativa essas duas palavras. Mas se quisermos usar linguagem conotativa, expressiva, afetiva, literária, dizer “intão” e dizer “apois” traz uma carga de contexto social que veste de verdade humana a nudez da palavra “em estado de dicionário”. Intão?