sexta-feira, 13 de maio de 2011

2555) A literatura autobiográfica (13.5.2011)



(do Codex Seraphinianus)

Na sua biografia de Jorge Luís Borges, a escritora Maria Esther Vásquez relata com bom humor as incontáveis entrevistas que Borges, na velhice, dava para crianças de 10 ou 12 anos que as professoras mandavam bater à sua porta. Ele, talvez por solidão, invariavelmente as recebia, e dava as mesmas respostas às eternas perguntas. Diz ela que todas essas entrevistas infantis começavam com “Quando o sr. descobriu que era escritor?” e terminavam com “Que conselho daria a um jovem que quer ser escritor?”. Acho que minha única semelhança com Borges (apesar dos meus ingentes esforços) é o fato de já ter respondido dezenas de vezes essas perguntinhas-vírus que ninguém consegue extinguir.

Tem uma terceira, uma pergunta-do-meio que também retorna ciclicamente, como um cavalinho de carrossel: “Seus livros se baseiam na sua experiência pessoal?”. Existe em certos leitores a noção de que um livro é uma espécie de buraco-de-fechadura através do qual é possível brechar a vida pessoal do autor. Se uma mulher escreve um romance sobre uma personagem ninfomaníaca, o leitor pensa: “Arrá! Ela tem tendências!...” Se um autor escreve contos sobre viciados em drogas, o leitor pensa: “Está contando tudo que ele mesmo fazia”. E assim por diante.

Todo livro (toda obra de arte) se cria a partir das experiências pessoais do autor, até porque não ouvi falar, até hoje, de uma pessoa que tivesse acesso às experiências de outra. Enquanto não inventarem a Máquina da Telepatia ou a Pílula da Transmigração de Almas, cada indivíduo está confinado a si mesmo, para o bem ou para o mal. Tudo que sabemos dos outros é de segunda mão: pela fala, pela escrita, até mesmo pelo testemunho dos nossos olhos – o que, no fim das contas, transfere a experiência de Fulano (Fulano bateu com o carro) para mim (eu vi Fulano bater com o carro).

Quando o sujeito é escritor, tudo é autobiográfico, tudo vem de sua experiência pessoal, mas o leitor precisa entender que grande parte (em muitos casos, a maior parte) da experiência pessoal de um escritor é o que ele observa, é a comédia humana que ele vê desfilar diante de si. Há autores que preferem falar do que experimentaram; outros preferem falar do que viram; outros ainda gostam de contar o que imaginaram. Mas a maioria dos romancistas, enquanto escreve, muda o tempo inteiro entre estes três registros, assim como um motorista muda de marcha de acordo com as exigências do terreno e do veículo.

Um escritor que é (por exemplo) advogado ou médico tem, na sua vida cotidiana, um Rio Amazonas de experiências alheias em que se inspirar, um Niágara de histórias com que ele entra em contato de modo superficial, mas o bastante para lhe dar a fagulha inicial de uma idéia. Os personagens que cria não são ele próprio. São uma parte essencial (e reveladora) dele próprio, são a projeção subjetiva dele sobre fragmentos de histórias que viu, complementadas por longos trechos que ele fantasiou.