sábado, 9 de abril de 2011

2526) Explodindo o clichê (9.4.2011)




O clichê é a cristalização de uma expressão. Um dia, ela foi usada pela primeira vez e funcionou. Todo mundo prestou atenção e passou a usá-la. Virou uma expressão corrente, depois uma expressão obrigatória. Passou a fazer parte da linguagem, sendo usada automaticamente, invisivelmente. As pessoas não usam o clichê para chamar a atenção ou para comunicar algo de novo. Usam porque serve de atalho. Todo leitor já viu aquilo mil vezes e vai entender na hora, e isso libera sua cabeça para dar atenção a outras coisas. O clichê é um elemento simplificador porque sua ausência de novidade faz com que seja compreendido sem ser percebido.

O que vale para o clichê da linguagem vale para o clichê narrativo, e cada gênero tem os seus. Um gênero literário é em grande parte uma coleção de clichês típicos, que se transformam em verdadeiras figuras de linguagem. Pequenos artifícios já prontos que basta estender a mão, pegar e introduzir na obra que estamos compondo. Certeza total de entendimento, sem o desgaste de tentar encontrar uma maneira nova de dizer aquilo.

Esteticamente, o clichê se justifica? Acho que somente quando existe no livro (filme, etc.) alguma coisa que vai muito além do clichê, e o clichê serve como atalho, passagem, porta de acesso mais rápido. Usar o clichê como meio para alcançar algo que seja muito bom. O romance policial tornou-se, pelo excesso de uso, um verdadeiro museu de clichês. Os aficionados do gênero (como eu e muitos) não se incomodam. O clichê nos dá o prazer do reencontro, de ver uma nova variação de um lugar-comum antigo. A gente aprecia o clichê como aprecia um chinelo velho ou a poltrona preferida.

Alguns autores, contudo, usam os clichês como meio para um fim literário diferente. Umberto Eco, em O Nome da Rosa, usa os clichês do romance detetivesco, sherlockiano, para facilitar nossa passagem através de uma história densa em que ele reflete sobre a Idade Média, a política italiana, a natureza da escrita e da memória, a importância filosófica do riso... Se não houvesse aquela série de crimes, quantos leitores iriam até o fim?

Paul Auster, na Trilogia de New York, mistura a rotina entediante dos detetives particulares do romance “noir” com elucubrações existenciais que lembram Albert Camus ou Samuel Beckett. Camus, aliás, dizia ter baseado O Estrangeiro nos romances “noir” de autores como David Goodis. O clichê e a alta literatura não são inimigos, mas é mais fácil (e mais frutífero) alguém da alta literatura saber usar bem um clichê do que o contrário. A alta literatura, aliás, fez sua fama em cima de algumas das mais respeitáveis fontes de clichês existentes, como a mitologia grega e a Bíblia. Por existirem há milhares de anos e terem praticamente formatado nossa cultura, são uma fonte inesgotável de personagens, situações, episódios, peripécias. Que pelo excesso de uso viraram clichês, mas estão sempre à disposição para que alguém lhes dê uma utilização nova.