domingo, 13 de março de 2011

2503) Um quarto só para si (13.3.2011)




(o gabinete de trabalho de J. G. Ballard)

Maurice Leblanc é o criador de Arsène Lupin, o ladrão de casaca, uma mistura de gatuno, espião, detetive, herói de folhetim, etc. Lupin está na mesma galeria de outros personagens que formataram a cultura de massas do século 20: Rocambole, Fantomas, The Shadow, Sherlock Holmes, Raffles, Doc Savage.

Não posso dizer que tenho as obras completas de Leblanc, mas tenho os 30 e poucos volumes lançados no Brasil pela saudosa Editora Vecchi, além da extensa biografia de Jacques Derouard (Séguier, 1989).

Leblanc não escreveu apenas romances policiais, mas também ficção científica (O Enigma dos Três Olhos, 1919) e novelas românticas e de costumes. Pertence a este grupo o volume de contos A Carta Anônima (“Le robe d’écailles rose”), “aventuras sentimentais e trágicas”, onde aparece o conto “Les fleurs mortes”, de 1911.

Neste conto, a sra. Jeanne Damoin começa a suspeitar que seu marido, Raul, tem uma amante. Os dois moram no 5o. andar de um prédio em Paris, e ela começa a perceber algumas ausências inexplicáveis do marido. Raul, que é escritor, reclama às vezes do excessivo carinho e da agitada vida social da esposa.

Jeanne acredita que está sendo traída; encontra no chaveiro do marido uma chave desconhecida (e faz uma cópia para si, que não é besta); e descobre através da “concierge” que um apartamento no 4o. andar do seu prédio foi alugado recentemente.

Assaltada por fúria e por presságios, ela aproveita uma ausência de Raul e entra no apartamento do quarto andar. Descobre com surpresa que o apartamento está vazio e empoeirado, com exceção de um quarto, cuja janela se abre para o céu. O quarto está limpo e mostra sinais de uso frequente; e tem apenas uma poltrona, uma cadeira e uma escrivaninha onde ela encontra um cinzeiro cheio de pontas de cigarro, e pilhas de papéis manuscritos, com a letra do marido. Num jarro, flores mortas, murchas. Jeanne não diz nada, compra flores novas e as coloca no jarro; e o casal nunca toca no assunto.

Este conto precede o famoso ensaio de Virginia Woolf Um quarto só para si (“A room of one’s own”, 1928), em que a autora defende a literatura feminina explicando que uma mulher, para ser escritora, precisa de dinheiro e privacidade. Precisa, acima de tudo, de um aposento em que não seja interrompida a todo instante para resolver querelas domésticas, familiares, etc.

Woolf parte do princípio de que os homens dispõem disto, mas a verdade é que nem sempre é assim. Por mais patriarcal que seja o mundo, sempre há homens que pedem aos céus (mesmo quando agnósticos) um quarto só para si, um lugar onde não sejam interrompidos pelos carinhos da esposa, pelos recados da empregada, pelas peraltices dos pimpolhos, pela cordialidade dos vizinhos, pelo Facebook, pelo Twitter.

Homens e mulheres podem ser adversários; escritores de qualquer sexo são parceiros de destino, e sabem do que um(a) escritor(a) realmente precisa: dinheiro para as despesas e um quarto só para si.