sexta-feira, 4 de março de 2011

2495) “Fuck” e o Rei da Inglaterra (4.3.2011)



(O Discurso do Rei)

O item mais recente na minha coleção pessoal de coincidências envolve o filme de Tom Hooper O Discurso do Rei, visto algumas noites atrás, e um livro que estive lendo naquela mesma tarde. 

The Other Victorians, de Steven Marcus, é um estudo da moral mediana da Inglaterra durante a época da Rainha Vitória (aproximadamente a segunda metade do século 19) através de alguns textos básicos. 

Entre os textos estudados por Marcus, está o gigantesco e anônimo livro pornográfico My Secret Life, um clássico da literatura subterrânea, de autor até hoje não identificado com certeza. Ao longo de milhares de páginas, o autor descreve com riqueza de detalhes as aventuras sexuais que teve (com prostitutas e mulheres do povo, de modo geral) ao longo de toda sua vida adulta.

A certa altura de My Secret Life, o autor conta seu envolvimento com duas garotas interioranas que foram fazer a vida em Londres, garotas gostosinhas mas incultas. E ele se diverte contando a obsessão de uma delas com o palavrão “fuck”, que ainda hoje é meio tabu no mundo de língua inglesa, tanto que costumam referir-se a ele como “a palavra com F” (“the F-word”). Diz ele (melhor não traduzir os palavrões, para manter o sabor do original):

“Quando estávamos os três juntos, ela sentava quieta junto ao fogo, e de repente dizia em voz alta para si mesma: Fuck. Lembro de como penteava o cabelo ao espelho, quando eu e Nell estávamos sentados, e de como ao seu jeito vulgar e rude, e sua voz esganiçada, ela dizia: Fuck, fuck, fucky, oh, fuck, fuck, fuck, fuck her and fuck him, and fuck, fuck, fuck”.

É a propriedade terapêutica e libertadora do palavrão, não é mesmo? A garota provavelmente era reprimidíssima em sua zona rural de origem, e talvez ficasse mais eufórica com a liberdade para dizer palavrões do que com a liberdade para fazer “ménage à trois” com a amiga e o cliente. 

Que o diga o Rei George VI, que, incentivado pelo terapeuta, dispara num jorro interminável de “fuck” e “shit”, que aos poucos vão desinibindo seu aparelho fonador.

Diz o IMDB que o filme recebeu uma censura etária um pouco alta pelas 17 vezes em que a palavra “fuck” aparece, mas essa censura foi reduzida com a ressalva: “Contém linguagem forte num contexto de terapia da fala”. O que é bem diferente das centenas de vezes em que “fuck” e o onipresente adjetivo “fucking” aparecem em qualquer filme policial norte-americano, especialmente os de Quentin Tarantino. 

A verdade é que palavrões como “fuck” são, primeiro, um tabu verbal quase intransponível. Depois viram uma blasfêmia euforicamente libertária, inebriando o paciente até uma espécie de orgasmo fonoaudiológico. 

E por fim o termo se empobrece (à medida que se multiplica), transformando-se num expletivo inócuo e cada vez mais vazio, um cacoete cansativo para quem está ouvindo os personagens martelando sem parar aquelas sílabas. Deixa de ser um Tabu do Proibido para se transformar num Tabu do Obrigatório.