quinta-feira, 3 de março de 2011

2494) “eXistenZ” (3.3.2011)




É assim que se escreve o título deste filme que David Cronenberg lançou em 1999. É algo bem da cultura hip-hop essa negócio de desobedecer à regra das maiúsculas e minúsculas, não é mesmo? Em todo caso, vi no IMDB que dois dos produtores do filme são húngaros, e que a palavra “isten” significa “Deus” naquele idioma. Vivendo e aprendendo.

eXistenZ é mais um mergulho de Cronenberg na zona crepuscular entre realidade física e pesadelo freudiano. Usando o pretexto de um videogame coletivo, ele mergulha os personagens num jogo de perseguição e assassinatos, no qual aparecem de vez em quando as imagens bio-teratológicas que são obsessão do diretor: objetos vagamente humanos, parecendo reconstruções em plástico de órgãos sexuais deformados. Os filmes de Cronenberg são pesadelos biológicos, onde a toda hora nos defrontamos com seres ou coisas que parecem objetos de uma sex-shop mórbida. Ou então um daqueles museus de ceras pretensamente científicos que visitavam nossas cidades quando a gente era pequeno, cheios de púbis de manequins com doenças venéreas.

Os dois temas preferidos de Cronenberg são: 1) a incerteza philipkdickiana sobre o que é real e o que é ilusão; 2) o horror e o fascínio pelos aspectos físicos do corpo (incluindo-se aí o sexo, a excreção, a gravidez e reprodução, a mutilação, a deformação, etc.). É como se Algo o chamasse o tempo inteiro para ir viver num universo puramente cartesiano e mental, um universo feito de idéias metafísicas e de computação gráfica, onde as coisas acontecessem de acordo com a imaginação e o desejo. E, ao mesmo tempo, um outro Algo o arrastasse de volta para um mundo incômodo onde existe a carne humana e suas necessidades fisiológicas, onde existem a doença, a dor e a morte, mas ao mesmo tempo existe o “desejo maciço e permanente”, como dizia Vinícius de Moraes, pela textura pecaminosa dessas partes pudendas, dessas regiões proibidas.

Transportar-se para um videogame é pular para uma região virtual onde podemos matar e ser mortos sem que nada de verdade nos aconteça. Mas, de que adianta?! Para que nossa mente possa estar ali, precisamos do maldito corpo, que precisa estar num quarto de hotel vagabundo, plugado no console de um jogo! Os filósofos medievais viviam devaneando sobre o corpo ser a prisão da alma. O mundo moderno parece acreditar que a mente cometeu algum delito e sua punição é ficar presa a um corpo.

E isso logo agora, no umbral do século 21, quando finalmente conseguiremos criar o projeto Trans-Humanista de transferir nossas mentes para uma realidade virtual em que elas não estejam presas, por cordões umbilicais pegajosos e úmidos, a esses corpos cheios de mucosas, esfíncteres, glândulas de secreção interna e externa, superfícies viscosas e cavidades pulsantes. Cronenberg é o cronista desse momento de transição, das últimas gerações de humanos que possuíram carne e osso, e as primeiras gerações dos que serão feitos apenas de zeros e uns.