sexta-feira, 30 de setembro de 2011

2675) Livros Proibidos IV (30.9.2011)



Checando as estatísticas de livros denunciados ou proibidos no período 1990-2010 nos Estados Unidos, temos números interessantes. Razão das denúncias: sexo explícito, 3.169; linguagem ofensiva, 2.658; violência, 2.289; livros inadequados para a faixa etária do grupo-alvo, 2.232. Drogas? Lá embaixo na lista, com 382. Política? Idem, com 319. Esses números claramente se referem ao universo escolar, infanto-juvenil, que é onde se exerce o peso da censura e do puritanismo nos EUA. Nesse mesmo período, os números dizem (por ordem decrescente) que a origem das denúncias veio das seguintes instituições: escola, 4.048; biblioteca escolar, 3.659; biblioteca pública, 2.679. Universidades aparecem com apenas 141 denúncias.

Nos EUA, existe liberdade para discutir idéias políticas, mas por outro lado o país é vítima de um puritanismo alucinado que cria as situações mais estapafúrdias. Tipo aquelas notícias em que um garoto de seis anos é acusado de assédio sexual porque beijou na escola uma coleguinha de cinco. Os EUA sempre me deram a impressão de um país onde é mais fácil publicar um livro propondo a derrubada do capitalismo do que um livro em que os personagens façam sexo oral.

No Brasil, já foram proibidos mais livros pelo seu conteúdo político do que por conteúdo sexual. Dizem que Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca só foi proibido porque um figurão do governo militar se escandalizou com a linguagem e o tema do conto-título (marginais invadem uma festa de reveillon de ricaços, estupram e matam quem bem entendem) e não descansou enquanto o livro não foi proibido. Algo parecido ocorreu com Zero de Ignácio de Loyola Brandão. Não me lembro de livros infantis proibidos pela ditadura.

Aqui no Brasil está surgindo uma censura do politicamente correto em que indivíduos ou grupos se julgam insultados porque um personagem de um livro diz alguma ofensa contra eles, e pedem a proibição do livro. É a democratização da censura. Em breve chegaremos ao aperfeiçoamento final desse método, quando qualquer pessoa pode denunciar um livro e solicitar oficialmente sua proibição, alegando que foi prejudicado.

As filhas de Garrincha conseguiram proibir a biografia do jogador, escrita por Ruy Castro; Roberto Carlos conseguiu tirar das livrarias sua biografia escrita por Paulo César de Araújo. Ora, há uma porção de livros-de-fofocas e livros maledicentes por aí, sobre gente famosa. Como digo sempre, a liberdade de expressão significa, também, a liberdade de expressão para ao maledicentes – os quais, se for o caso, terão que pagar por isso de alguma forma. Nem toda censura é política, mas toda censura é censura.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

2674) Contos de Campinoigandres (29.9.2011)




“Disseram-me que na feira de Campinoigandres, uma cidade famosa por ludibriar forasteiros, havia um homem capaz de mover objetos, com as mãos, mais rapidamente do que podíamos acompanhá-los com os olhos.

"Contavam-me essa história e nunca acreditei, portanto quando me aconteceu de ir pela primeira vez à tal cidade, procurei-o.

“Encontrei-o no mercado, diante de uma pequena mesa. Colocava sobre ela três cascas de noz, emborcadas. Levantava a do meio e colocava sob ela uma pequena moeda de prata, que era o prêmio destinado ao acertador.

"Em seguida, arregaçava as mangas, tocava nas semi-esferas com as pontas dos dedos e começava a movê-las de um lado para o outro, fazendo com que se rodeassem, se alternassem, se intercalassem umas às outras, com tal velocidade que de início até eu me perdi.

"Não fui o único; todos os que, ao final, indicavam a casca de noz onde estaria a moeda viam-no erguê-la e mostrar que estava vazia de prêmios.

“Depois de várias vezes, porém, vi que seu repertório de movimentos tinha recorrências, e acabava repetindo uma mesma sequência feita há uns sete ou oito movimentos atrás... Discerni naquilo um princípio de ordem. Os movimentos começavam caóticos mas depois sempre se repetiam.

"Era como uma mão sem pena fingindo riscar um pergaminho, sem deixar letras escritas: as letras estavam ali, subentendidas nos movimentos mudos. Eram como lábios se movendo por trás de um vidro.

“Afastei a turba, postei-me diante dele, e me inscrevi para a aposta. Ele aceitou, preparou-se, e repetiu todo o ritual: começou a mover as cascas de noz bem devagar; pareceu-me meio errático, indeciso, mas logo foi acelerando o ritmo, e as estruturas de repetição apareceram. Eu estava ali, desafiando-o, e todos olhavam para mim, de modo que respirei fundo e segui seus movimentos com os olhos.

"Quando ele se deteve (detinha-se sem obedecer a nenhum padrão, era sempre um breque súbito) eu tinha a casca certa embaixo dos olhos, não a tinha perdido de vista um instante sequer. Ele deu um meio passo para trás e fez um gesto com a mão, oferecendo a mesa à minha escolha. Eu ergui a casca de noz que acompanhara com a vista: e lá estava a moeda.

“Ele apanhou com a ponta dos dedos a moeda e a estendeu para mim, com uma reverência. Quando a guardei na bolsa, ele ergueu as duas outras cascas, e embaixo delas havia os dois diamantes mais bem feitos que eu já vi na minha vida.

"E o povo de Campinoigandres prorrompeu numa tremenda gargalhada; a feira inteira parecia estar sabendo, fizeram a maior pateada, com berros e assobios, creio até que na janela de um castelo balançaram a bandeira da cidade.”




quarta-feira, 28 de setembro de 2011

2673) Livros Proibidos III (28.9.2011)



A Semana dos Livros Proibidos (24-set a 1-out) pretende, entre outras coisas, defender a liberdade de expressão e de publicação de livros. Uma estatística curiosa no saite da American Library Association (http://bit.ly/LdDLu) mostra que da lista dos “100 Romances mais Importantes do Século 20” escolhidos pelo Radcliffe Publishing Course, 46 foram em algum momento proibidos ou denunciados para proibição em algum país. Geralmente por questões morais, porque o livro contém cenas de sexo explícito; ou defende atos sexuais considerados ofensivos (homossexualismo, adultério, promiscuidade, prostituição, masturbação, etc); ou usa linguagem ofensiva, imoral (palavrões, etc.). Esses valores mudam de país para país. O que é pornográfico aqui não o é acolá, então não é de admirar que o Ulisses de Joyce, o Lolita de Nabokov, os Trópicos de Henry Miller e O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence tenham sido proibidos mundo afora, inclusive em seus países de origem.

Nenhum desses livros, que eu me lembre foi proibido no Brasil. Eram cercados de tabus e de críticas, mas eram publicados, sim, e ninguém foi preso por vendê-los “por baixo do pano”. Paulo Francis se referia a Lady Chatterley como “o livro que todo mundo leu segurando com uma mão só”. Talvez tenha sido assim para a geração dele; eu me lembro em 1967, no Estadual da Prata, o pessoal com ar conspiratório emprestando uns aos outros o Sexus de Henry Miller e indicando: “Capítulo 16...”. Era em plena ditadura, mas esses livros passavam. A Revolução Sexual estava embranquecendo os cabelos dos nossos pais, mas os pilares da Pátria permaneciam incólumes. A ditadura estava mais preocupada em proibir coisas mais específicas; talvez o Que Fazer? de Lênin ou o Torturas e Torturados de Márcio Moreira Alves.

Ninguém lembra Cassandra Rios, que nunca foi grande escritora, mas foi perseguida durante décadas por seus romances eróticos: Tessa, a Gata, A Paranóica, Eudemônia, O Bruxo Espanhol... Li na adolescência (na casa de meus primos) A Lua Escondida, uma história de paixão lésbica; e anos depois li As Mulheres dos Cabelos de Metal, uma ficção científica erótica que passou despercebida até da censura. Quando as pessoas fazem campanha pela liberação da literatura erótica, geralmente estão pensando em Joyce ou Miller. Minha dúvida é: na hora do naufrágio, esses intelectuais teriam coragem de colocar Cassandra Rios no bote salva-vidas? Ou a salvação é apenas para os que são também intelectuais? A arte “redime” o erotismo? É preciso ser uma grande obra literária para que os intelectuais se mobilizem contra sua proibição?

terça-feira, 27 de setembro de 2011

2672) A palavra inchirido (27.9.2011)




Até hoje não sei como se escreve: Inchirido? Enxerido? Não importa; esse adjetivo é uma daquelas palavras tipicamente nordestinas, como arretado, oxente, mangar. 

O cara inchirido é o cara atrevido, metido, ousado. No sentido sexual, é o homem que dá em cima, que “avança o sinal”, que “azara”, que dá cantadas, que fica rondando e pedindo uma chance. 

Como tantos outros termos nessa área, pode ter um sentido pejorativo e um sentido elogioso, dependendo do interesse que a vítima possa ter pelo cara que se comporta assim: “Não suporto Fulano, além de feio é inchirido”, ”Eu fico toda nervosa quando ele chega junto, porque ele é muito inchirido”, “Minha filha, eu só gosto de homem inchirido, porque a gente já sabe que ali acontece alguma coisa”.

Também se usa, meio metaforicamente, em outras circunstâncias. “O brasileiro é um povo muito inchirido, se metendo a fazer Copa do Mundo e Olimpíada ao mesmo tempo!”. “O São Caetano montou naquele tempo um time meio inchirido, que acabou sendo vice-campeão brasileiro e vice-campeão da Libertadores”. 

Ou seja, “inchirido” no sentido geral de ambicioso, disposto a ir além dos limites que lhe haviam sido traçados por outros. E existe, claro, o verbo “inchirir-se”, reflexivo: “Cuidado, Fulana, teu marido anda se inchirindo pra aquela galega do bar”.

Surge a questão: qual a origem da palavra? Por algum tempo pensei que viesse do verbo “encher”, mas logo descartei. Pensei que viesse de “inserir, inserido”: “Fulano anda se inserindo no meio de uma turma que não é a dele”. 

Num livro de Carter Dickson, Os Crimes da Viúva Vermelha, encontrei uma referência de que a palavra “Enchiridio” se referia a “uma coleção de orações mágicas inventadas pelo Papa Leão III e oferecidas a Carlos Magno no ano 800”.

Agora, o saite A Word A Day me explica que a palavra significa “manual, pequeno livro de informações básicas”, e vem do grego “encheiridion”: en (em) + chiros (mão) + idion (sufixo diminutivo). Ou seja, um livrinho com informações essenciais que pode ser levado na mão; daí o sinônimo “manual” (em inglês é “handbook”).

Diz o saite que o uso mais antigo documentado, é de 1541. Mas isso não importa. A questão é: o Enchiridio (que aliás deve se pronunciar “enquirídio”) medieval pode ter dado origem, pelas vias tortuosas de sempre, ao nosso conceito de “inchirido”? 

O inchirido seria, então, aquele sujeito que leva consigo um livrinho com todas as respostas (espécie de Manual do Escoteiro) e que devido a isso passa a ostentar uma cultura-de-almanaque, se torna pedante, metido a besta, sabe-tudo, atrevido? E ainda por cima conquista todas as mulheres com isso?! 




domingo, 25 de setembro de 2011

2671) Livros Proibidos II (25.9.2011)



(Capa de Harry Potter, recriada por M. S. Corley)

A Semana dos Livros Proibidos (última semana de setembro), chama a atenção para o que os organizadores, nos EUA, chamam de “Banned and Challenged Books”. “Banned” é o livro banido, proibido oficialmente por um governo, com todas as consequências (apreensão policial dos exemplares à venda, com prejuízo para o livreiro, etc.). Muitas vezes isto envolve a ameaça à liberdade ou à integridade física do autor ou do editor. “Challenged” significa que o livro é impugnado, questionado, denunciado por grupos ou entidades, sob a alegação de que infringe algum princípio. O número de livros denunciados, claro, é muito maior do que o de livros de fato proibidos, já que nem toda denúncia é aceita. Ainda assim, o estrago é grande, porque a denúncia produz efeitos locais, principalmente no que diz respeito à eliminação de livros das bibliotecas e do currículo escolar de colégios e universidades.

Todo mundo entende que o Minha Luta (“Mein Kampf”) de Hitler seja proibido. O furibundo alemão é o saco-de-pancadas preferencial do Ocidente. A tal ponto, aliás, que por todo lado brotam jovens carrancudos, insatisfeitos, irritados com a hipocrisia da época, e começando a murmurar uns com os outros: “Por que será que proibiram o livro do cara? Vai ver que ele denunciava isso-tudo-que-está-aí... Era um idealista...”. E pronto, a proibição tem um resultado inverso: projeta uma aura de contestação e de martírio sobre a obra de um desorientado.

Já os livros de Harry Potter têm sido largamente denunciados nos EUA porque grupos evangélicos de variadas colorações os consideram uma apologia ao satanismo, à magia negra, etc. Se você acha isso absurdo, e que Harry Potter é inofensivo, o que dizer então da denúncia contra a série Capitão Cueca de Dav Pilkey? Sucesso aqui no Brasil, os livrinhos ficaram em sexto lugar na lista de obras mais denunciadas nos EUA em 2002, por “falta de sensibilidade”, por serem “inadequados à faixa etária” e por “encorajarem as crianças a desobedecer as autoridades”. Pois é. Começa com Capitão Cueca, daqui a pouco os meninos vão estar lendo Che Guevara.

A denúncia contra Harry Potter, é claro, é proporcional ao seu sucesso. Há incontáveis livros sobre meninos bruxos que entram e saem dos lares e das escolas sem que ninguém lhes dê importância ou os considere Os Evangelhos de Belfegor. Mas os professores não são bobos. Harry Potter foi um movimento social em torno de um livro, um movimento que arrebatou dezenas de milhões de garotos. Ninguém faz sucesso impunemente. Ninguém atinge milhões de pessoas sem que alguma autoridade se debruce sobre o caso, luneta em punho, para saber por quê.

sábado, 24 de setembro de 2011

2670) Livros Proibidos I (24.9.2011)



Está começando nos EUA a Semana dos Libros Proibidos (“Banned Books Week”), celebrada na última semana do mês de setembro. É uma iniciativa conjunta de associações representando editores, professores, livreiros, bibliotecas e entidades culturais que combatem a censura a obras literárias, desde a proibição pura e simples até a sua retirada de currículos e do acervo de bibliotecas. Eu nunca tive um livro proibido pela censura. Tive uma música (“Nordeste Independente”, composta com Ivanildo Vila Nova, gravada por Elba Ramalho) que teve sua execução pública proibida durante o último ano da ditadura militar. Mas é como leitor que durante os próximos dias comentarei algumas dessas obras que foram retiradas de circulação, e por que motivos isso aconteceu.

Os principais motivos para um livro ser proibido são: 1) conteúdo sexual; 2) cenas de violência ou sadismo; 3) linguagem chocante (não necessariamente palavrões de cunho sexual, mas linguagem considerada agressiva, vulgar, violenta, etc.); 4) cenas envolvendo drogas e parecendo endossar o seu uso; 5) conteúdo racista ou discriminatório contra maiorias; 6) idéias políticas contrárias ao regime vigente; 7) agressões, calúnias ou afirmações graves contra um indivíduo ou grupo. Há outros, com certeza; estou enumerando de memória. As razões mudam de lugar para lugar.

A liberdade de literatura é muito parecida com a liberdade de imprensa. Todo mundo é a favor até o instante em que se torna vítima dessa liberdade, até quando surge um livro dizendo algo que nos ofende, nos envergonha ou nos ameaça. Nesse instante, nosso discurso democrático vai dar uma volta no espaço sideral, e a vontade que a gente tem é mandar apreender aquele livro, queimá-lo em praça pública, e premiar o autor com uma surra de fio-desencapado e um banho de sal grosso.

Digo isto para lembrar que a luta pela liberdade de expressão não é uma luta do Bem contra o Mal, a luta dos Cem Por Cento Certos contra os Cem Por Cento Errados. É um dilema, uma encruzilhada entre duas opções, ambas envolvendo ganhos numa direção e perdas na outra. Somos contra a proibição de James Joyce ou de Rubem Fonseca, mas aposto que muitos de nós somos a favor da proibição dos livros de Hitler. Cada sociedade se define pelos seus critérios para proibir um livro e ameaçar seu autor, porque ao fazer isto ela atinge um limite de si própria, atinge aquela fronteira ética na qual em nome dos mais elevados valores se cometem os atos mais graves. Somos todos a favor da liberdade de expressão. Mas cada um de nós tem pelo menos um livro que proibiria com prazer e vingança. Bora, rapaz. Fala a verdade.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

2669) Romero Cavalcanti (23.9.2011)



(recorte de Romero Cavalcanti)

Há artistas paraibanos que são famosos na Paraíba e desconhecidos no resto do Brasil. Romero Cavalcanti, pelo contrário, é famoso no Brasil e quase desconhecido na Paraíba. Explica-se pelo fato de que, tendo nascido em Itabaiana e estudado na capital, ele foi muito cedo para o Rio de Janeiro, onde construiu uma carreira de artista plástico, artista gráfico, ilustrador, capista de livros e discos, criador de cartazes e de programações visuais. As técnicas e os meios são os mais variados: óleo, bico de pena, desenho, objetos, colagem, aerógrafo, etc.

Fizemos muitos trabalhos juntos até agora, mas o mais importante talvez seja a série de capas e ilustrações que Romero produziu para minhas antologias de contos fantásticos lançados pela Casa da Palavra: Páginas de Sombra (2003), Contos fantásticos no labirinto de Borges (2005), Freud e o Estranho (2007), Contos Obscuros de Edgar Allan Poe (2010) e, a ser lançado em breve, Páginas do Futuro: contos brasileiros de ficção científica. São ilustrações feitas com colagem de fragmentos de gravuras antigas, num estilo muito usado pelos Surrealistas nos anos 1920 (principalmente Max Ernst).

Depois de décadas no Rio, Romero faz sua primeira exposição individual na Paraíba dentro do evento “Setembro Fotográfico” (24 a 30 de setembro). Alguém perguntará: Mas ele é fotógrafo? A resposta é: Não, ele é um desconstrutor de fotografias. A exposição “Ex-Fotos” (com um saboroso trocadilho no título, cheio de sugestões) mostra fotos alheias que o artista recorta com estilete até transformar em coisas completamente diversas. O corte do estilete produz uma nova silhueta que nada tem a ver com a original, e nessa nova silhueta as zonas de cor, de luz e de sombra sofrem uma leitura que também nada tem a ver com a da imagem em que foram produzidas originalmente.

Existem as artes aditivas, que consistem em colocar coisas onde não havia nada (a pintura, p. ex.), e artes subtrativas, que consiste em pegar uma massa informe e retirar partes dela até deixar ali uma obra de arte (a escultura, p. ex.). A desconstrução promovida por Romero é de uma terceira natureza, porque pega uma obra de arte acabada (ou pelo menos um produto informacional acabado, no caso uma foto) e interfere nela até transformá-la numa voluta abstracionista, numa caricatura grotesca, numa colagem de formas surrealistas.

A exposição “Ex-Fotos” está aberta no Casarão 34, de 24 de setembro a 30 de outubro, de 2ª. a 6ª. feira, das 8às 12 e das 14 às 18 horas. Além da exposição, o artista estará ministrando a oficina “Recorte da Imagem a Partir da Fotografia”, nos dias 27 e 28, das 15 às 18 horas.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

2668) O preço do ingresso (22.9.2011)



(foto: Alexey Titarenko)

Num país do Leste Europeu, um governo corrupto foi derrubado por um golpe chefiado por militares nacionalistas. Rasgaram a Constituição e impuseram outra, prenderam dissidentes, o de sempre. Entre outras providências, resolveram interferir no mercado cinematográfico. Havia uma polêmica interminável ali sobre a invasão de filmes norteamericanos, que estava sufocando a criatividade dos realizadores locais. O Ministério das Artes Visuais, chefiado por um tenente-coronel com especialização em mísseis balísticos, chegou a uma curiosa conclusão. Argumentou ele que era uma injustiça muito grande que o cinema dos EUA, riquíssimo e poderoso, concorresse nas bilheterias em igualdade de condições com o cinema local, notoriamente amadorístico, pobre de recursos. Assim como (raciocinou o Governo) uma garrafa de vinho francês safra 1920 não custa o mesmo que um vinho banal, por causa dos insumos envolvidos em sua produção, o ingresso de uma superprodução norteamericana não pode custar o mesmo que o ingresso de um filme feito por meia dúzia de cabeludos que estão querendo mudar o mundo em uma hora e meia.

Vai daí, o Governo gerou um complicado mecanismo de avaliação de custos para os filmes, e enfiou goela abaixo dos distribuidores e exibidores a exigência de que o ingresso para ver um filme deveria custar cerca de 0,001% do orçamento total do filme (o exemplo do relise distribuído à imprensa era: “O ingresso para um filme que custou um milhão de dólares deveria custar dez dólares”). Falou-se em redistribuição de renda, em geração de empregos, em incentivo à produção local.

Isto provocou, é claro, um enorme mal-estar e uma saia muito justa com os distribuidores internacionais, que até então achavam muito natural que um filme de Indiana Jones cobrasse o mesmo preço de ingresso cobrado por um filme-de-arte como Seis tonalidades de bruma de Zbigniew Tornatolski. Como a essa altura a economia do país já estava totalmente dolarizada (um pão francês chegava a custar mais de 10 milhões de “vezlatys”, a moeda local), o mercado exibidor se deparava com filas gigantescas querendo ver filmes importados a custo quase zero (Andy Warhol, Julio Bressane, John Cassavetes), cuja entrada custava alguns centavos de dólar ao espectador. E no cinema ao lado, havia um engarrafamento de limusines, tapete vermelho, gambiarras de luzes e cronistas sociais para receber a burguesia local e o alto escalão do governo, gente capaz de pagar um ingresso de 2.370 dólares para assistir o Avatar de James Cameron (claro que todos recebiam dos cofres públicos uma ajuda de custo especial para isto, mas aí já é outra história).

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

2667) Bicicleta abandonada (21.9.2011)



(foto: Joe Schumacher)

A idéia é de Avram Davidson, em “Or all the Seas with Oysters” (que eu traduziria por “E os mares cobertos de ostras”). É uma teoria científica heterodoxa (os cientistas ortodoxos são incapazes de ter novas idéias sobre o Universo). O conto, ganhador do Prêmio Hugo de 1958, mostra o diálogo entre dois amigos: Ferd (que gosta de livros, LPs e conversas de alto nível) e Oscar (que gosta de cerveja, boliche e mulheres). Ferd se interessa por fenômenos biológicos: o mimetismo, que faz algumas criaturas vivas se disfarçarem como objetos (galhos, pedras, etc.) para atrair vítimas; e a regeneração, que faz um lagarto crescer um rabo novo depois de ter o rabo cortado.

E Ferd diz: já repararam como os alfinetes de segurança (ou “broches de fraldas”) parecem sumir quando a gente, com bebê em casa, mais precisa deles? Já repararam como os cabides de roupa (ou “ombreiras”) parecem se multiplicar nos armários – a gente deixa dois e no dia seguinte encontra cinco? Ferd descobre que o mundo está sendo invadido por uma espécie nova, uma raça de seres metálicos. Sua forma inicial é o alfinete de segurança. Daí ele evolui para a forma de cabide, que é a larva. E finalmente desabrocha na forma adulta, que é a bicicleta.

Ferd explica ao boquiaberto Oscar que essas criaturas vivem de elementos que captam do ar; e que evoluem, mudando de forma, apenas quando não são vistas por ninguém. Uma grande parte das bicicletas que vemos na rua (acorrentadas aos postes e às grades, abandonadas nos parques, etc.) não foram feitas numa fábrica. São formas mutantes que esses seres metálicos adotaram por mimetismo, para passar despercebidos.

O fotógrafo Joe Schumacher, que mora no Harlem (Nova York) tem um websaite onde fotografa de tudo, inclusive bicicletas abandonadas. Uma das suas fotos mostra um desenvolvimento insuspeitado da teoria de Davidson. (http://bit.ly/qZTVjj) Num daqueles mourões de metal usados para “ancorar” bicicletas nas ruas, ele registrou a presença de três dessas criaturas, acorrentadas juntas. Uma delas é um carrinho de supermercado – esse nosso carrinho comum, de trepidantes varetas metálicas. A segunda é uma bicicleta normal e a terceira é uma dessas bicicletas de entrega, com uma caixa plástica de colocar garrafas de leite. Um casal com seu filhote? Um sambaqui onde jazem três estágios sucessivos da evolução de um alienígena, uma forma de vida baseada no alumínio e agora, darwinianamente, incorporando o plástico? Ah, amigos, a ciência oficial não se pronuncia a respeito, está ocupada projetando cíclotrons que não servem para nada, e inventando antidepressivos para a indústria farmacêutica.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

2666) Tudo já foi dito? (20.9.2011)




Por que alguém ainda se dá o trabalho de escrever livros? Tudo já foi dito, tudo já foi feito, todas as histórias já foram contadas. Não existe nada na literatura de hoje cuja raiz dramatúrgica não esteja num épico indiano do século X ou numa fábula grega. 

Os escritores de hoje querem ganhar a vida honestamente, e ninguém pode negar esse seu direito. Mas se querem dizer uma frase nova, contar uma história inédita, trazer alguma idéia original, vão perder a viagem: podem ir tirando o cavalinho da chuva, alojando-o no estábulo e acomodando-se na cama para passar a noite.

John Barth é um desses escritores doidos para dizer algo de novo e constatando, com uma espécie de euforia horrorizada, que tudo já foi dito. Num artigo no The Atlantic (http://bit.ly/r2sswu), ele cita um texto egípcio de 2.000 a. C., em que o escriba Khakheperresenb comenta, com nostalgia: 

“Ah, se eu tivesse frases que não fossem conhecidas, numa linguagem nova que jamais foi usada, sem uma só frase que tivesse perdido o viço e que já tivesse sido dita pelos homens de antigamente!”. 

Barth, um deus-pequenino do Pós-Modernismo, é um desses escritores que, vendo a impossibilidade de contar uma história que ainda não foi contada, mexem o tempo inteiro no software da contação de histórias. Como a maioria dos escritores oriundos do meio acadêmico, ele dá a impressão de que leu 50 romances e 500 livros sobre Teoria do Romance. Ou, como disse certa vez uma amiga minha: “Ler um romance escrito por um professor de Literatura é como fazer sexo com um ginecologista”.

É típico não do escritor, mas do professor de Literatura, pensar se aquilo que está dizendo já foi dito antes, e dito melhor. O professor de Literatura compara o livro que está escrevendo com os livros que já foram escritos; o escritor compara o tumulto da página com o tumulto que está na sua cabeça e esquece o resto. 

Se um indivíduo escreve tendo em mente o propósito de acrescentar algo de novo à Literatura Universal (ou mesmo à Literatura Paraibana, se suas ambições forem mais modestas) vai se ver num beco sem saída, porque há milhões de direções em que essa brava literatura pode ser expandida com proveito. Faria melhor se considerasse que o livro que pretende escrever não pertence nem à Paraíba nem à Humanidade, mas a si mesmo. 

Se algo já foi dito e já foi escutado, nada nos impede de dizer e escutar de novo, porque nenhuma pedra é arremessada duas vezes à água do mesmo rio. As histórias pedem para serem contadas de novo, porque sempre haverá quem ainda não as escutou, e é um privilégio contá-las pela milésima vez a alguém que as está escutando pela primeira.









domingo, 18 de setembro de 2011

2665) Um cão achado na rua (18.9.2011)



Meia-noite de um daqueles domingos intermináveis em que o Tempo corre devagar, cedendo ao desejo de bilhões de pessoas que abominam ou temem as manhãs de segunda-feira. O domingo é um monstro que se recusa a morrer. Mesmo fuzilado, eletrocutado, envenenado, decapitado e incinerado, ainda mostra estremeções na ponta da cauda que não foi reduzida a cinzas. Você volta para casa a contragosto, porque os companheiros de mesa entregaram os pontos, pediram a conta, recusaram a saideira. Você vai pela Rua do Catete, de volta ao apartamento abafado onde ressona a família. Uma vez você batizou esse apartamento de “A Jangada da Medusa”, porque a única coisa que o prende àquelas pessoas é o fato de estarem conseguindo sobreviver juntos até agora.

Um cão remexe o lixo e ergue os olhos. Procurando um pretexto para retardar a entrada em casa, você pergunta: “E aí, achou o que comer?”. Uma das leis ocultas do Universo é que os cães são incapazes de falar, a menos que alguém lhes faça uma pergunta a sério. Frasezinhas carinhosas não contam. O cão larga dos dentes um naco corroído e diz: “Achei, mas será que na tua casa não tem alguma coisa melhor?”. Algumas coisas são tão improváveis que quando acontecem a gente reage da maneira mais prosaica possível. Você diz: “Gosta de presunto? Bora”.

Todos dormem. Na cozinha exígua, o cão se sacia de presunto. Depois percorre com você o apartamento. Ele é um cão meio psicólogo. “Essa é tua mulher? Rapaz, tu não pode reclamar. Sim, não é capa da Playboy. E daí? E tu, já te olhasse no espelho? Bota as mãos pro céu. A madame aqui dá um caldo.” Segundo quarto. “Esse teu filho tem asma. E essa tua menina vai ficar dentuça, tira esse dedo da boca dela. Pô, tu é um pai relapso, hem?”. Na bicama da sala, a sogra. “Parece gente boa. Implica contigo? Claro que implica. Ela achava que a filha ia casar com o Príncipe de Mônaco. E se ela tivesse casado com ele, ia reclamar do desodorante que ele usa. Mãe é mãe.”

Você oferece dormida, ele abana as orelhas. “Deus me livre, aqui tem muito gás carbônico, prefiro dormir na rua. Vou te dar uma dica. Vi tua casa, tuas estantes, teus CDs... Vai na Rádio Lux, fala com Domício Pereira. Ele vive atrás de um diretor de programação, e eu acho que você entende do assunto. Ele me serviu um hamburger uma vez. Gente fina, mas fuma pra caramba”. Você o leva até a porta, os dois se despedem. Este encontro mudará sua vida, mas nem mesmo Domício, seu futuro patrão, iria acreditar, embora diga às vezes: “Rapaz, uma vez eu levei um cachorro lá em casa, dei um hamburger, o bicho comeu como se fosse um menino de dez anos...”

sábado, 17 de setembro de 2011

2664) Café não costuma faiá (17.9.2011)



Pegar a garrafa térmica, lavá-la em água corrente, deixá-la na pia, perto do fogão. Pegar a chaleira e enchê-la até um ponto que o olho já sabe. Acender o fogo, colocar a chaleira, colocar o suporte e o porta-filtro sobre a boca da garrafa. Pegar o vidro com o pó, pôr no filtro a quantidade certa, também sabida “de olho”, impossível de quantificar. Quando outra pessoa vai fazer e pergunta: “quantas colheres?”, não há resposta possível. É no olho, ponto final.

Sento e fico olhando a chaleira esquentar. Café é uma droga? Espero que a “Food and Drugs Administration” norte-americana nunca chegue a esse veredito. É um estimulante artificial; produz um estado de euforia mental durante algum tempo; produz insônia, nervosismo e outros efeitos colaterais (em gente fraca, é claro); e vicia. Será que vicia mesmo? Não sei porque nunca parei de tomar. Nos últimos 50 anos certamente não se passaram dez dias seguidos sem que eu tomasse uma xícara de café. E a quantidade normal do meu dia é pelo menos um litro.

O café produz em mim o que o uísque produzia em Humphrey Bogart (“Todo mundo está três doses abaixo do normal”) ou em Paulo Francis (“Bebo para tornar as outras pessoas mais interessantes”). Ele produz uma argamassa neuronial que une a paisagem na janela, a data no calendário, a imagem no espelho, as tarefas na agenda, as mensagens no monitor, o milhão de versos incompletos perpetuamente esvoaçando no meu espaço mental como mariposas em torno de um poste aceso. O café é um diapasão energético que deixa tudo vibrando no mesmo mantra. Deixa nossa mente vibrando em uníssono com o cosmo, dizendo a si mesma e ao cosmos: Yes, we can! Qual é o cosmos que resiste a uma cantada dessas?!

A água chia; depois, borbulha. Dizem os experts que a água não deve ferver, pois queima o pó e altera o gosto. Uma vida inteira de hábitos rústicos me acostumou a esse gosto alterado, portanto sempre exijo que a água esteja fervendo quando a derramo no centro do pó, num fio contínuo, fazendo movimentos circulares para que o pó inteiro fique umedecido por igual (movimento que os experts também desaconselham, eita povinho desmancha-prazeres). O aroma sobe. Lembro a frase de um amigo: “O melhor momento do café é o cheiro antes do primeiro gole, assim como o momento mais bonito da mulher é quando ela se despe enquanto a esperamos na cama”. O cheiro do café é a prelibação, o antegozo. O estímulo que anuncia o prazer anuncia sempre o prazer total e sem condições, o prazer perfeito e platônico. A realidade fica sempre aquém, mas não importa. Todo café é perfeito, na trajetória da chaleira à xícara, e da xícara à boca.

2663) Como escrever depressa (16.9.2011)




(Tom Gauld)

Escrever depressa, produzir tantas mil palavras de texto por dia... É engraçado como se falava pouco nisso na História da Literatura Brasileira. A mentalidade nos 200 anos de nossa prosa de ficção é a da criação de obras de arte, não a da produção profissional de laudas de texto. 

O literato brasileiro vê com admiração e simpatia a frase atribuída a Oscar Wilde: “Levei a manhã inteira para tirar uma vírgula, e a tarde toda para colocá-la de volta”. 

E vê com certo constrangimento (é o meu caso, pelo menos) a afirmação de Isaac Asimov de que datilografava um conto inteiro do começo ao fim, e depois, sem sequer fazer correções à mão, botava num envelope e mandava para todas as revistas conhecidas até que alguma o aceitasse para publicação.

São o Artista e o Profissional: o que quer escrever muito bem e o que quer escrever bem muito. 

Ambas as mentalidades podem produzir grandes livros e livros medíocres. Um artigo de Michael Agger na revista eletrônica Slate usa uma maneira diferente de classificar esses dois tipos. Diz ele: 

“Alguns escritores são beethovenianos, que desprezam os resumos prévios e as anotações, e ao invés disso compõem rascunhos de imediato, para descobrir o que querem dizer, enquanto outros são mozartianos, cujo costume é adiar indefinidamente a hora de escrever, enquanto se dedicam a longa planificação e planejamento”. 

Não é exatamente a mesma coisa, mas reforça a idéia de que existem pelo menos duas abordagens básicas para o ato da escrita. E muitos pretendentes a escritor perdem um tempo danado em oficinas literárias onde professores (bem intencionados, claro) tentam convencê-los a escrever de um jeito que não é o seu jeito natural de pensar e de produzir esforço intelectual.

Agger cita Chenoweth & Hayes (The Cambridge Handbook of Expertise and Expert Performance), para quem as frases da prosa são produzidas numa estrutura do tipo rajada-pausa-avaliação, rajada-pausa-avaliação, sendo que quanto mais experiente o autor mais longas são as rajadas de texto que ele produz a cada vez. 

Já Kellogg, na mesma obra, afirma que escrever a sério é ao mesmo tempo uma questão de pensamento, de linguagem e de memória, e pode se comparar ao esforço mental de um jogo de xadrez profissional ou de uma performance musical de alto nível. 

A mente do escritor está manejando três coisas: o texto que escreve, as coisas que pretende dizer em seguida, e, de modo crucial, teorias de como os seus possíveis leitores irão interpretar o que foi escrito. 

Talento, experiência e estado mental adequado podem fazer com que alguém escreva dessa forma durante um tempo bem longo, e com razoável rapidez.





quinta-feira, 15 de setembro de 2011

2662) O Livro Fantástico (15.9.2011)




Um tema que se alastra cada vez mais na literatura fantástica é o que poderíamos chamar, correndo o risco de uma certa redundância, de O Livro Fantástico. 

Uma grande influência nesse tipo de literatura é a obra de Jorge Luís Borges, que escreveu sobre uma biblioteca infinita (“A Biblioteca de Babel”), um livro infinito (“O Livro de Areia”), um livro que era um labirinto (“O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”), uma enciclopédia de outro mundo que invade este (“Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”) e assim por diante. 

No andar térreo dessa literatura está H. P. Lovecraft com o seu “Necronomicon”, o livro que codifica terrores indizíveis de uma época em que nosso mundo era governados por potestades cósmicas malignas. A Encyclopedia of Fantasy de John Clute & John Grant tem um longo verbete (escrito por Clute, Dave Langford e Brian Stableford) listando esses livros transcendentais, que são personagens por conta própria, núcleos de significação em torno dos quais gravitam os personagens humanos das histórias.

http://sf-encyclopedia.uk/fe.php?nm=books

Há agora toda uma literatura sobre livros míticos, livros mágicos, livros miraculosos, livros que interferem na realidade, livros que manipulam o leitor. 

Livros dados como perdidos e que surgem em nosso mundo para provocar crimes e desastres, como em O Nome da Rosa de Umberto Eco. Livros que são portais para outros mundos, como em A História Sem Fim de Michael Ende. Livros construídos em parceria pelos seus leitores, que podem inclusive modificar o universo em que viveu o autor, como em “The Least Trumps” de Elizabeth Hand. 

Esses livros não são meros objetos passivos, são atores, protagonistas; interferem na realidade, mudam tudo à sua volta, e não apenas pelos modos tradicionais (modificando idéias e opiniões de quem os lê), mas interferindo no mundo físico e se comportando como uma criatura viva, dotada de inteligência, vontade e capacidade de agir. Uma criatura capaz de evoluir; um livro que é outro a cada leitura.

Talvez isso seja uma contraofensiva da palavra escrita que se sente encurralada pela imagem; ou da palavra impressa sentindo-se encurralada pela palavra eletrônica. O livro de papel, desdenhado por ser algo inerte, debate-se, agita-se, procura ganhar vida. Procura ser (olha a palavra crucial) interativo. 

Os livros mágicos da literatura fantástica desempenham papéis que só um livro eletrônico, um CD-Rom ou um video-game interativo são capazes de desempenhar. A literatura fantástica está escrevendo uma metáfora do futuro do próprio livro. Depois de mais de meio século imaginando livros fantásticos, começamos a ver o surgimento desses livros vivos, modificáveis e modificadores.





quarta-feira, 14 de setembro de 2011

2661) O mundo não me deve nada (14.9.2011)



Morreu nos últimos dias de agosto de 2011 o bluesman David “Honeyboy” Edwards, aos 96, tido como o último sobrevivente da geração dos chamados “Delta Blues Singers”, os músicos do delta do Mississipi que praticamente criaram as raízes do blues que conhecemos hoje. 

Honeyboy teria sido, inclusive, a última pessoa ainda viva entre as que conviveram com o lendário Robert Johnson, cuja bola já enchi bastante, de modo que vamos direto ao mito do momento. 

Há muitos bons livros sobre a música e os músicos do blues; Edwards tem uma autobiografia (The World Don’t Owe Me Nothing, Chicago Review Press, 1997), escrita com o auxílio de jornalistas, em que ele conta de maneira cândida, descritiva, a sua versão da infância que teve, e de como se tornou músico. É um relato em primeira mão que não deve ser descartado, mesmo levando-se em conta que depois que alguém fica velho seu passado fica mais enfeitado do que burra de cigano. Cada ano que passa o ancião inventa uma lembrança nova. 

Não importa. O que me interessa em livros desse tipo não é o dado factual, aquele que faz tremer o medidor do IBGE. Interessa-me a fábula, o sentimento, a verdade humana, à qual tanto se chega pela memória verdadeira quanto pela falsa. 

O livro de Honeyboy tem um título incapaz de ser melhorado: O Mundo Não Me Deve Nada. Isso é de uma nobreza admirável, de um alto-astral espantoso, vindo de um sujeito negro, pobre, cuja vida foi uma gincana de desafios. Mas Honeyboy tira tudo de letra, com um enorme sorriso cheio de dentes de ouro, que em mais de uma foto me lembrou o saudoso Zé Vicente da Paraíba, seu parente cósmico. 

Diz ele: “Eu era jovem, com boa aparência, e tinha a boca cheia de ouro. Mandei botar ouro nos dentes da frente, para chamar a atenção e mostrar estilo.” É o fraco! 

Honeyboy é aquele típico crioulo cheio de chinfra, um malandro do bem. Conta mil histórias dos bastidores do blues: 

“Todo mundo pegava músicas uns dos outros e as modificava. É assim que as canções surgem. Você senta, pega um verso de uma música, um verso de outra. É a única maneira de fazer uma coisa nova! Ou pega dois ou três versos e põe outra melodia”. 

Edwards levava escorpiões secos num saquinho, num bolso, simpatia para dar sorte; pendurava o violão na parede, sobre a cabeceira da cama, mandinga para não esquecer as coisas que aprendera naquele dia. Cresceu, viveu e morreu no caldeirão inesgotável e mutante do blues. Era um músico de rua, da cultura oral que uma dúzia de folcloristas heróicos descobriu e preservou a partir dos anos 1930. 

Ele diz: 

“Eu já devia estar morto há mais de cinquenta anos, mas Deus ainda não estava pronto para me receber”.







terça-feira, 13 de setembro de 2011

2660) Onze de setembro (13.9.2011)



(manuscrito do séc. XIII)
 

Naquele dia, meu filho Gabriel, que na época tinha nove anos, mudou de canal, do Cartoon Network para a Globo, para assistir Dragonball Z no programa da Xuxa. Acordei não tanto com o volume da TV, mas como o tom angustiado e nervoso na voz do locutor; e já estava diante da tela quando o segundo avião explodiu de encontro à segunda torre. 

Fiquei colado ali, e perplexo como todo mundo. Antes do meio-dia, atendi telefonemas (sabe Deus como conseguiram meu número) da Rádio Jovem Pan e da Folha de São Paulo, ambas com a mesma pergunta: A ficção científica previra algo assim? 

Falei que a FC propriamente dita não, mas escritores de techno-thrillers como Tom Clancy tinham chegado perto. E comentei, com certa imodéstia, que meu conto “Jogo Rápido” (em A Espinha Dorsal da Memória, 1989) também postulava um ataque a um “cartão postal” – neste caso, um grupo terrorista que arrancava e roubava a cabeça do Cristo Redentor. (Não eram terroristas políticos, eram terroristas estéticos, um grupo de milionários que colecionava cabeças de estátuas famosas do mundo inteiro). 

Fantasioso, eu? De jeito nenhum, pensei, diante da TV onde as torres desmoronavam coreografadamente. Nos dias seguintes, li o depoimento do compositor Stockhausen, dizendo (e causando um tremendo escândalo junto à imprensa): “Aquilo foi a maior obra de arte que já existiu. Pessoas passam dez anos se preparando para um ‘concerto’, e no momento da execução morrem”. 

Eu já havia escrito os parágrafos acima quando, pouco antes da meia-noite entre sábado e domingo passados (de 10 para 11 de setembro) terminei a leitura da coletânea de contos Saffron and Brimstone de Elizabeth Hand, e me surpreendi ao ver no fim do livro uma “Afterword” datada de 11 de setembro de 2006. 

Hand fala que alguns contos do livro foram inspirados por um amigo que ela julgou ter perdido no atentado ao WTC. O último conto do livro, “The Saffron Gatherers”, mostra San Francisco sendo destruída por um terremoto no momento em que o avião da protagonista decola (ela vê tudo lá de cima). 

Diz Hand que a história desse amigo se tornou “a personificação das minhas ansiedades: desejo e perda; a ameaça do apocalipse; o poder e a vulnerabilidade do artista; meu fracasso constante em criar alguma coisa a partir da tristeza e do desespero”. 

Foi só mais uma sincronicidade (me ocorre com frequência ler por acaso um livro em que surge a mesma data em que o estou lendo), mas acho que exprime o que os atentados de 2001 passaram a significar para muitos escritores e artistas em geral. A necessidade, e a impossibilidade, de fazer literatura e arte sobre uma catástrofe tão esmagadora.






domingo, 11 de setembro de 2011

2659) A ilha ao meio (11.9.2011)




O helicóptero desce num ratatá de hélices e rotores, e pousa na mandala do heliporto. Desço acompanhado do tenente que me trouxe. Um coronel está no hangar para me receber. Numa sala com ar condicionado, há um bufê de café e salgadinhos. Ele me faz uma descrição detalhada, mostra desenhos, pranchas, fotografias antigas e recentes. A ilha tem alguns quilômetros de comprimento, algumas centenas de metros de largura. Ele mostra a maquete, indica onde fica a Base onde estamos. Examino uma foto enorme mostrando o Serrote circular que cortou a ilha ao meio: um semicírculo de metal emergindo do chão, com dezenas de metros de altura, alguns centímetros de espessura, dentes de liga de titânio com mais de um palmo.

Um carrinho elétrico nos conduz à Fronteira. Dia nublado, mas numa das encostas avisto o mar, onde ao longe bate sol. Elevações vulcânicas no meio de um terreno arenoso, quebradiço. Descemos a pé um barranco, por uma trilha de lajes horizontais fincadas na terra. Lá embaixo se estende uma planície, e a cem metros, já do Outro Lado, ergue-se uma escarpa de rocha escura, com manchas de vegetação. Caminhamos ao longo de uma espécie de istmo que liga as duas partes, tendo à esquerda e à direita dois horizontes azuis de mar. Chegamos por fim à Fronteira, uma linha reta, a meio caminho entre o barranco de onde descemos e a escarpa do lado oposto.

Agacho-me. A Fronteira é uma fenda de alguns centímetros de largura, com bordas revestidas de metal. Inclinando-me, vejo que, de cada lado da fenda, paredes de metal descem terra adentro, e percebo, lá no fundo, um reflexo na água do mar. Fico novamente de pé. Durante a viagem, tinha imaginado o que me sucederia se desse um passo por cima da fenda. Agora sei que isto é tão impossível quanto abrir os braços e me elevar rumo ao céu.

Não há diferença entre o solo de um lado e do outro, mas a ilha foi serrada ao meio, de maneira cirúrgica, implacável, e a um custo financeiro espantoso. Lembro as fotos: duas frotas simétricas de rebocadores firmando os cabos e a engrenagens por onde o Serrote se deslocou cortando o istmo. 

Olho para o Outro Lado, tão próximo e tão inacessível. “Há alguém lá?”, pergunto, “Há pessoas como nós, há construções, estradas, atividade humana?”. “É provável”, diz o oficial; “talvez agora mesmo estejam aí, diante de nós, mas evidentemente não podemos vê-los. O corte foi definitivo”. O sol bate do nosso lado, e bate lá no mesmo ângulo, mas a verdade é que ilumina dois mundos diferentes, dois mundos que um dia foram um só. Agora, mesmo visível, aquela metade da ilha está mais distante do que um planeta que não se vê no céu.






sábado, 10 de setembro de 2011

2658) O que é um Loop (10.9.11)




“Loop” (pronuncia-se “lúp”), é uma palavrinha inglesa muito apreciada pelo pessoal da música eletrônica e pelo da informática. Um loop é algo como um laço, uma linha que dá uma volta completa e emenda no começo.

Em música, loop é uma série de notas ou efeitos sonoros que, quando chega ao fim, começa outra vez, insistentemente.

Na informática, é um processo que não acaba nunca e deixa o usuário do computador olhando, impaciente, aquela ampulhetazinha no lugar do cursor, tão exasperante quanto sinal de linha telefônica ocupada.

E alguém divulgou na Web a historieta abaixo para explicar o que está acontecendo.

1) O Diretor chama a secretária e avisa que vão viajar a trabalho por uma semana.

2) A Secretária liga para o marido e avisa que vai passar uma semana fora.

3) O Marido liga para a amante e diz que terão uma semana inteira para ficar juntos.

4) A Amante liga para o aluno a quem dá aulas particulares e pede licença por uma semana.

5) O Aluno liga para o avô e diz que terá uma semana sem aulas, e poderão fazer algum programa juntos.

6) O Avô, que é o mesmo Diretor do início da história, chama a Secretária e manda cancelar a viagem, pois deseja ficar com o neto, que não vê há um ano.

7) A Secretária liga para o marido: a viagem foi cancelada.

8) O Marido liga para a amante: não terão mais uma semana inteira para ficar juntos.

9) A Amante liga para o aluno: não vai mais tirar licença, e os dois deverão ter aulas normalmente.

10) O Aluno liga para o avô: não podem mais se encontrar porque ele afinal vai ter uma semana de aulas.

11) O Avô, que é o mesmo Diretor, liga para a secretária: já que não poderá ficar com o netinho, é melhor confirmar de novo a viagem... E tudo recomeça.

Isto é um loop. Os personagens cruciais da história são o Diretor, que é o Começo, e o Netinho, que é o Fim. Se fossem personagens não relacionados, a história fluiria normalmente. Acontece que o Fim se relaciona com o Começo e lhe envia uma mensagem que reverte o comando inicial.

Se esse loop ficar rodando, os personagens ficarão irritados com tantas mudanças de planos, pois nenhum tem a visão geral do que está acontecendo. Os programas de computador têm sub-rotinas (ou sei lá como as chamam) que acompanham todos os passos e percebem quando há um elemento contraditório (o Diretor quer viajar mas o Avô não quer, e os dois são a mesma pessoa).

Enquanto isso não for resolvido a cadeia de comandos ficará paralisada, rodando sem sair do canto. Tem que haver uma vigilância de fora, que enxergue todo o processo e perceba onde está o ponto onde ele se volta sobre si mesmo e manda reverter tudo que tinha sido ordenado antes.






sexta-feira, 9 de setembro de 2011

2657) Você que tinha razão (9.9.2011)



Uma das desvantagens de ter dez anos é que ninguém nos dá ouvidos. Uma das vantagens é que não passa pela cabeça de um adulto que nós, pirralhos, somos capazes de ver e ouvir.

Meu pai e minha mãe conversam um repertório espantoso de assuntos (que – se lhes fosse perguntado – eles garantiriam que “não era assunto para crianças”) na minha frente e da frente da minha irmã, de oito anos. Imagino que já se acostumaram tanto à nossa presença que é como se a gente nem estivesse ali. E que se acostumaram tanto com a nossa fase de bebezinhos (fraldas, mamadeiras) que na cabeça deles continuamos nessa fase, incapazes de focar o olho ou de apurar o ouvido.

Vai daí que discutem sem parar na nossa frente, e mostram o quanto os adultos são contraditórios. Todo dia a discussão obedece o mesmo padrão, só muda o assunto.

Digamos que o assunto é dinheiro. Minha mãe diz: “Você não tem jeito mesmo, a gente precisando das coisas e você torrando o dinheiro com besteira”.

Meu pai: “Eu só gasto com coisa necessária”.

Ela: “Duzentos reais num litro de uísque, isso é coisa necessária?”.

Ele: “Era uma promoção! Esse uísque não sai por menos de 400”.

Ela: “Homem é fogo, só homem mesmo pra raciocinar desse jeito”.

Ele: “Você não vive dizendo que eu sou gastador? Fiz 50% de economia e você ainda reclama”.

Ela: “Reclamo porque uísque não é economia, e além disso você só toma cerveja”.

Ele: “Mulher é tudo igual. Existe hora de cerveja e hora de uísque”.

Ela: “Sim, mas o ar condicionado quebrou e não apareceu dinheiro pra comprar outro. Já o uísque...”.

Ele: “Estou esperando aparecer uma promoção de ar condicionado. Não tenho culpa se a promoção do uísque apareceu primeiro”.

Ela: “Ah, chega, você parece que é imbecil, não tem diálogo”.

Ele: “Você que é idiota, parte logo pra agressão”.

Aí ficam os dois comendo em silêncio, e minha irmã pisca o olho pra mim.

Meia hora depois estão os dois nos braços um do outro.

Ele: “Desculpe. Eu sou mesmo um imbecil. Você que tinha razão”.

Ela: “Não, não, eu sou uma idiota. Quem tinha razão era você.”

Ele: “Não, meu amor, eu sou um irresponsável, vou devolver o uísque, espero que eles não percebam que está faltando uma dose”.

Ela: “Não, fique com seu uisquinho, você trabalha tanto, merece relaxar. Eu é que sou uma chata, uma egoísta.”

Ele: “Não, eu negligencio as coisas de casa, mas é tanto estresse, eu tenho que tomar uma”.

Ela: “Não, você cuida tanto, eu é que fico lhe cobrando sem necessidade, você é o melhor marido do mundo”.

Ele: “Tá certo, então eu fico com o uísque e compro um ventilador”.

Os dois se agarram aos beijos, e minha irmã pisca o olho pra mim.





quinta-feira, 8 de setembro de 2011

2656) A mansão sombria (8.9.2011)





("Hill House")

Alguns dos melhores filmes de terror ocorrem em castelos góticos ou mansões vitorianas. Longos corredores, arcadas, escadarias em ziguezague ou em caracol, pórticos sombrios, passagens secretas, sótãos, porões... 

Revi recentemente Os Inocentes de Jack Clayton (baseado na Outra Volta do Parafuso de Henry James) e Desafio ao Além (“The Haunting of Hill House”) de Robert Wise, baseado no romance de Shirley Jackson. Exemplos perfeitos desse terror cenográfico, arquitetônico, em que os elementos físicos da Casa Assombrada se entremeiam aos elementos sonoros: o vento, o ranger de portas, estalidos inexplicáveis, portas que batem, vidros que se quebram, relógios que soam badaladas.

O uso desses espaços amplos, diversificados, permite ao diretor uma sucessão de efeitos visuais (geralmente baseados no uso do claro-escuro violento, dos movimentos de câmara, dos ângulos esquisitos) e sonoros (ecos, efeitos sonoros de origem indefinida, e música) sempre inesperados e sempre justificados pelo ambiente onde a história acontece. 

Num prédio moderno de apartamentos não existem tantas frestas por onde o vento possa uivar, tanta madeira suscetível de estalos e movimentação térmica, proliferação de tantos elementos decorativos multiplicando as formas e as sombras.

E essas mansões sombrias têm outro aspecto além do visual, um aspecto sociológico. Minha infância foi passada em casas modestas e pequenas, que mesmo assim davam um trabalho medonho a minha mãe e às empregadas. Era um tal de varrer, limpar, esfregar, recolher lixo, colocar objetos de volta no lugar... 

E no cinema surgiam aquelas mansões de 50 quartos, alguns deles trancados há gerações; móveis, tapeçarias, candelabros, quadros, um acervo que faria inveja a qualquer museu. E a impressão constante de decadência, de estagnação. 

Aqueles filmes são hinos visuais à riqueza coagulada de elites que conquistaram mais do que eram capazes de administrar. Enquanto se ergue de novo uma parede desmoronada na Ala Oeste, o vento, a chuva e os cupins estão botando outra parede abaixo na Ala Norte.

Buñuel, em O Anjo Exterminador, enclausura e desmoraliza esses aristocratas ociosos. Não têm a virilidade dos conquistadores que edificaram esses impérios; reproduzem o conhecido padrão de “pai rico, filho nobre, neto pobre”. A história de terror é o gênero ideal para descrever a vida dessas pessoas, herdeiras de um passado que conhecem pouco, de uma riqueza que não sabem usar, de um poder estancado que se deteriora a olhos vistos. 

O terror de uma casa onde caberiam cem pessoas e mora uma dúzia, e que se vinga dos pusilânimes que ousam ocupá-la hoje.





quarta-feira, 7 de setembro de 2011

2655) O filme que se ensina (7.9.2011)




(Gandalf e Bilbo)

O filme Julgamento em Nuremberg de Stanley Kramer (1961) mostra o famoso julgamento dos criminosos de guerra nazistas. Os juízes, advogados, testemunhas, etc. eram de nacionalidades diferentes, e usavam fones de ouvido com tradução simultânea. Isso é mostrado no começo do filme. Quando um americano fala em inglês, a tradutora repete em alemão, o alemão escuta, responde, outra tradutora repete em francês, outro advogado escuta, responde... É assim nos primeiros minutos do filme. Depois, o diretor presume que o público entendeu a mecânica da coisa; e os tradutores e fones de ouvidos desaparecem. Para que o filme possa fluir.

Na trilogia O Senhor dos Anéis de Peter Jackson várias raças se misturam: homens, hobbitts, elfos, anões, orcs... Diante dos hobbits, todos baixinhos, um humano é quase um gigante. Ora, o diretor escolheu atores de estatura normal para todos esses personagens, apenas ligeiramente mais atarracados uns, mais compridos outros. No filme A Irmandade do Anel (2001) há uma cena em que o mago Gandalf (Ian McKellen) conversa com Bilbo (Ian Holm) na casa deste. Nesse momento, um efeito especial indica que Gandalf tem ter mais do dobro da altura de Bilbo. Vemos e registramos; daí em diante essas diferenças vão se atenuando. Ao invés de usar os tais efeitos pelo restante do filme (o que iria complicar ainda mais um filme já complicado de fazer), Jackson mostra os diferentes tamanhos dos personagens apenas no início. Para que o filme possa fluir.

São códigos que fazem parte da realidade mostrada no filme mas que, por economia narrativa, não podem ficar sendo mostrados o tempo inteiro. Os diretores mostram aquilo no começo, e, depois que o espectador entendeu do que se trata, omitem esse aspecto, que fica apenas subentendido no resto do filme.

Um filme pode, se necessário, conter dentro de si instruções para a decodificação da própria obra. Pode explicar em sua parte inicial qual o código de leitura específico que vai exigir, sem que o cineasta tenha um papel paternalista ou didático, e sem que o espectador seja obrigado a “engolir uma apostila”. Algumas realidades descritas num filme são especiais, e o diretor deve fazer uma rápida educação do público nos minutos iniciais: “Olha, isso aqui precisa ser interpretado assim e assim...” Feito isto, a demonstração pode desaparecer, e o filme pode fluir. Aliás, podemos extrapolar esse princípio e dizer que os minutos iniciais de qualquer filme esteticamente mais ambicioso são exatamente isso: um pequeno curso, ou tutorial, sobre como ler corretamente esse filme que já está acontecendo diante dos nossos olhos.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

2654) A Razão Cruel (6.9.2011)




(Goya, Que valor!)

A Razão Cruel, tão na moda, pode ser subdividida num feixe de quase sinônimos: egoísmo, insensibilidade, pragmatismo egocêntrico, auto-interesse, isolacionismo, preconceitos, etc.

Ela nos diz, com variados discursos e argumentos, que preocupar-se com a sorte dos outros (com a fome dos outros, a doença dos outros, a guerra dos outros...) só faz a gente perder tempo. Cada um deve cuidar de si. O mundo é uma corrida, ganha quem chega primeiro. E assim por diante.

Fico tentado a dizer que é a Razão fundadora do Capitalismo, sistema com o qual vivo num perrengue que não tem fim; e o Capitalismo, afinal, descreve o mundo como uma livre concorrência, um cada-um-por-si-e-o-governo-atrapalhando-todos.

A verdade, porém, é que a coisa está presente também em todos os sistemas que já presenciamos. A Razão Cruel é um individualismo inato do bicho humano. O Eu acima de tudo. A sobrevivência, alimentação, reprodução, conforto, luxo e regabofes do Eu acima de tudo. O resto que se explôda.

“Farinha pouca? Meu pirão primeiro!”. Parece que é um provérbio baiano, ou pelo menos foi numa canção de um baiano (Caetano, “Eles”) que ouvi pela primeira vez esta fórmula exemplar.

Régis Frota me ensinou uma versão do Ceará, muito repetida em sua proliferante família sobralense: “Quanto menos somos, melhor passamos”.

Os cantadores têm um mote-de-uma-linha que serve para muitos tipos de glosa: “Faz pena, mas é o jeito”, idéia que expressa uma certa compunção (fingida ou sincera) de quem vai tomar providências em seu benefício às custas de terceiros.

Uma fórmula mais rude e impiedosa é o nosso popular “quem fôr fraco que se quebre” (ou “quem for podre...”, “quem for pobre...”, conforme o caso), dita, é claro, por alguém que já encontrou seu jeito de não se quebrar.

Em outra canção tropicalista, o “Mamãe Coragem” de Caetano & Torquato Neto, vem essa fórmula de preciosa ambiguidade: “Eu posso, eu quero, eu quis, eu fiz... Mamãe, seja feliz”. É a frase do filho adulto que vai embora de casa “correr mundo, correr perigo” e avisa à Mama que se conforme.

E que frase perfeita, que cadência impiedosa de sílabas caindo como marteladas, pregando os pregos de um caixão! Todo jovem é impiedoso quando se trata de quebrar a casca do ovo e sair voando. Não posso censurar o poeta por um verso que em tantos momentos da vida cantarolei e me acalentou como se tivéssemos sido feitos um para o outro. Mas do ponto de vista do coração materno, minha gente, é uma expressão límpida da Razão Cruel, da que diz: “Eu tenho mais o que fazer, te vira, corre atrás do teu prejuízo, vou cuidar é de mim, sai da frente, não me atrapalha, problema teu”.






2653) A Segunda Idéia (4.9.2011)





Fernando Pessoa talvez tenha pensado em escrever algo como:

O poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a alegria que sente.

Mas achou essa primeira idéia boba, e continuou pensando. Achou uma segunda idéia que ficou muito melhor, e tornou o verso famoso. 

O primeiro impulso criador na arte é o impulso de fazer alguma coisa parecida com algo que vimos e gostamos, é o impulso de quem pensa: “Eu também quero fazer isso”. E quando fazemos, acabamos fazendo um isso parecidíssimo com o isso original, o que nos emocionou. Toda arte começa como imitação. 

E é uma imitação tão pura, tão inocente, tão destituída de maus sentimentos que se nos disserem “Você está escrevendo igualzinho a Marcel Proust!”, responderemos com fervor: “É mesmo?! Obrigado, obrigado!”.

Não custa nada ficar olhando aquilo que acabamos de escrever e pensar: “Muito bem, esta é a primeira idéia que tive, quando estava com a obra ou o estilo de Fulano ocupando minha cabeça. Vou esquecer Fulano agora, e pensar em mim. O que posso colocar de meu nessa frase, nesse verso, no enredo dessa história? Onde posso mexer para que ela se torne algo completamente diferente, e melhor?”.

Existe um ramo da crítica literária que examina os manuscritos originais dos textos, tentando ler tudo aquilo que o autor riscou, borrou, cancelou. 

São as primeiras idéias. Ele escreveu aquilo achando que estava arrasando. Depois releu e percebeu que ainda estava meio fraquinho. Riscou e escreveu por cima outra coisa. 

Sempre que examinei textos dessa forma cheguei à conclusão de que a segunda idéia é invariavelmente melhor do que a primeira. Basta comparar (por exemplo) os sonetos de Augusto dos Anjos conforme foram publicados nos jornais, e depois como foram publicados no Eu. Sempre há uma mudança de algumas palavras. E essas mudanças são sempre para melhor, e isto nada tem a ver com o fato de estarmos acostumados com a versão oficial do poema. A primeira idéia é sempre mais fraquinha, mais frouxa, mais clichê.

Graciliano Ramos ia dar ao livro Vidas Secas o título de “A Vida Cheia de Penas”. Felizmente o arcanjo Gabriel, ou outra autoridade do mesmo escalão, o visitou antes do manuscrito ir para a gráfica e ele teve uma segunda idéia, não é mesmo? 

Reza a lenda que o musical Oklahoma!, um dos grandes sucessos da Broadway em todos os tempos, estava pronto para estrear quando alguém teve a idéia de adicionar o ponto de exclamação depois da palavra-título; dezenas de milhares de cartazes foram reimpressos com este pequeno detalhe. 

Não sei se isto aumentou a bilheteria, mas mostra que sempre há tempo para dar uma injeçãozinha numa idéia, um “diferencial” como diz o pessoal da publicidade. 

A publicidade, aliás, é uma área que chega a exagerar, porque muitas vezes a galera vira noites em claro diante da 27ª. idéia, enquanto o Diretor de Criação incentiva: “Vamos lá, pessoal... Deve haver alguma idéia ainda melhor!"







segunda-feira, 5 de setembro de 2011

2652) O jeito regional (3.9.2011)




Uma vez estávamos ajudando um amigo a fazer uma mudança, em Campina. No meio da turma havia um carioca. A certa altura a dona da casa nos indicou uma caixa: “Podem ir levando aquela, mas cuidado, são coisas de quebrar”. O carioca ficou meio desconcertado, e arriscou uma brincadeira: “Bem, já que é de quebrar, vamos jogar no chão”.

“Coisa de quebrar”, em nordestinense, significa “coisa frágil, que corre o risco de se quebrar facilmente”. Para pessoas de outras regiões, deve significar “coisa para quebrar, coisa que é preciso quebrar para que tenha uso”. Casca de ovo, por exemplo. 

Este é um entre mil exemplos de um uso aparentemente errado de preposição, porque a palavra “de” nos evoca de imediato uma série de expressões em que indica finalidade, necessidade: água de beber, etc. Além de outras em que o sentido implícito é ligeiramente diferente (quarto de dormir, sala de estar, etc.), mas sempre positivo, ou seja, o verbo está ali indicando que deve ser praticado.

Numa expressão como “quarto de dormir”, “água de beber” ou “pedra de amolar”, o “de” pode ser substituído por “que serve para”. Numa expressão como “coisa de quebrar”, não pode. 

A idéia de que a expressão nordestinense está errada (como já ouvi dizer) talvez venha desse fato, do fato de que ela é tão rara (fiquei aqui tentando lembrar exemplos equivalentes a “coisa de quebrar” e não me ocorreu nenhum) que induz facilmente à confusão com expressões contrárias, pela semelhança estrutural. 

E isto parece ser o tipo de coisa que os gramáticos desaconselham. Eles tentam fazer com que o idioma fique mais organizado, mais claro, mais fácil de entender. O problema, como sempre, é que para cada gramático aconselhando a coisa mais lógica existe um milhão de usuários fazendo a coisa menos lógica, e a língua evolui nesse joguete entre o poder de decisão de uns e o poder de criação dos outros.

O erro alheio sempre dói no nosso ouvido, mas o erro que cresceu conosco não nos incomoda, mesmo quando aceitamos que é um erro. Eu não aguento ouvir certas formas de falar como por exemplo “Eu quero dizer a vocês DE que isto é muito importante”. Esse “de” fora de hora, fora de lugar, fora de propósito, é uma pedra no sapato. 

Já o “coisa de quebrar” não me soa como erro. Quem impõe um significado é o contexto. Passei a vida ouvindo dizer “cuidado, isso aí é de quebrar”, e mais que o sentido literal das palavras valia o contexto, o gesto de advertência, o tom de preocupação, e o fato de que em geral eu sabia que o pacote continha ovos ou a sacola continha taças de vidro. 

Que me corrijam os gramáticos, mas essas formas de dizer resultam de convenções, de hábitos tacitamente aceitos e que com o tempo se solidificam em norma. Em regiões diferentes essa cristalização se dá de forma diferente, e cada uma tem o direito de achar a sua forma tão legítima quanto as outras, mesmo que pela lógica não o seja.