terça-feira, 31 de maio de 2011

2570) O romance de adultério (31.5.2011)



A crítica chama de “literatura mainstream” a corrente principal da literatura, ou seja, o romance realista em geral, que descreve a vida como ela é, os costumes das classes sociais, a existência cotidiana, etc. Em geral, esse conceito é contraposto à literatura dita “de gênero”: o romance policial, de terror, de ficção científica, de faroeste, de humor, etc. Estes seriam gêneros especializadíssimos e que, talvez por isto mesmo, são incapazes de reproduzir toda a complexidade do mundo de hoje.

Mas podemos considerar também que um gênero literário é uma espécie de repetição ritual de temas e situações que por variados motivos nunca deixam de encontrar leitores. O que é o romance de detetive? A história de um crime violento que ninguém sabe como e por quem foi cometido; e de um homem (o Detetive) que consegue interpretar da única maneira correta uma porção de indícios que os outros viram e não compreenderam e prender o criminoso. É a Razão servindo de instrumento para punir a Transgressão. Por motivos variados esse tipo de história nunca deixa de ter leitores. Uns são atraídos pela fascinação da Violência, outros pela conquista do reequilíbrio pela Sociedade, e outros (eu, p. ex.) pelas inesgotáveis manifestações da Inteligência.

Dentro do romance social e psicológico há um subgênero importantíssimo, mas que a crítica não costuma identificar como tal. Eu o chamo o Romance de Adultério: aquele em que uma instituição crucial da sociedade, o casamento patriarcal e monogâmico, é ameaçado pelo comportamento individualista e transgressor de uma ou mais pessoas. Dentro desta rubrica caberiam clássicos como Anna Karenina de Tolstoi, Madame Bovary de Flaubert, O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence, Dom Casmurro de Machado de Assis, O Amor Conjugal de Alberto Moravia e milhares de outros. Estes livros são considerados “mainstream” porque ninguém até hoje se mobilizou para defender a criação de um gênero que os abarcasse e que se certa forma “chamasse” a criação de novas obras baseadas neles. Essa criação se dá invisivelmente, dentro do mercado literário que já existe.

É curioso que este tema não tenha sido cristalizado em gênero, como foi o assassinato (através do romance policial). A dualidade casamento/adultério, segurança/aventura, respeitabilidade/transgressão tem sido uma inspiração constante da literatura nos últimos séculos, e gerou obras magníficas como estas que citei acima e muitíssimas outras. Alguns autores retornaram de maneira quase obsessiva ao tema. Machado de Assis, talvez pelo fato de publicar muitos dos seus contos em jornais e revistas voltadas para o público feminino, falou do assunto sob todos os ângulos possíveis. E no entanto a crítica planta firmemente esses romances dentro do território indiferenciado do “romance realista psicológico urbano” ou coisa parecida, quando, para transformá-lo em gênero, bastaria criar uma coleção e formalizar uma teoria.

domingo, 29 de maio de 2011

2569) O que é preconceito (29.5.2011)




Preconceito é uma idéia tão confortável que resistimos em nos separar dela.

De nada adiantam os argumentos mais razoáveis ou as provas contrárias mais esmagadoras. Tapamos os ouvidos, fechamos os olhos, fazemos “Dã-dã-dã-dã-dã-dã-dã... Não estou ouvindooo... Não estou ouvindoooo...”

Não somos capazes de viver sem aquela idéia, assim como uma criança não é capaz de viver sem sua chupeta, um fumante sem o seu cigarro, ou o ébrio sem a sua “garrafa tóxica de rum”, como dizia Augusto dos Anjos.

Um preconceito é um pesadelo que assaltou nossa mente de tal maneira que acabamos nos orgulhando dele. Ele faz parte de nós. Ficamos como a alma penada daquela história, vagando pelos corredores com um machado enfiado no crânio. Se alguém retirasse o machado libertaria aquela alma para sempre, e ela sabe disso, mas prefere aterrorizar os outros do que permitir que alguém toque naquele machado, que agora, confortavelmente, faz parte dela.

Essa imagem do machado enterrado no crânio me vem com frequência porque a sensação que tenho é de que os meus preconceitos (que são muitos) não foram escolhidos voluntariamente por mim, mas me foram impostos de fora para dentro ou de cima para baixo, com tal violência que não fui capaz de me defender.

Um preconceito é um implante mental. Recebemos aquilo antes de termos capacidade de entender o que significa. E o recebemos geralmente numa situação de dominação e poder que nos deixa indefesos, incapazes de reagir.

Grande parte dos nossos preconceitos nos é imposta pelos nossos pais, nossos professores, nossos amigos ou os meios de comunicação (numa idade em que acreditamos que “se está ali é porque é verdade”).

Como não entendemos que idéia terrível é aquela que nos habita, somos forçados a racionalizá-la, justificá-la. E construímos em volta dela uma camada protetora de explicações, de teorias, que nos servem de analgésicos. Quando o implante mental começa a doer muito, basta começar a pensar nas nossas racionalizações, as quais nos convencem de que estamos certos, sim, aquela coisa é terrível mas é verdade. E esse tylenolzinho filosófico nos ajuda a tocar a vida pra frente.

Para alguém nos “tirar do sério” basta questionar nossos preconceitos. Basta perguntar com o ar mais inocente do mundo: “Por que você anda com um machado enterrado no crânio?...”

Ficamos lívidos, a velha dor de cabeça retorna com força total, e começamos a espumar de raiva, com “o olho rútilo e o lábio trêmulo”, jogando em cima do ofensor todos os argumentos que nos ajudaram a justificar nossa condição.

Já os preconceituosos profissionais são mais calmos, mais ponderados, pelo simples fato de que, ao contrário de nós, fizeram daquilo sua razão de viver. Pensam naquilo 24 horas por dia. Impossibilitados de arrancar o machado, agarram-se a ele como um afogado ao salva-vidas, e conversam conosco esperando o momento propício para desferir mais um golpe.









sábado, 28 de maio de 2011

2568) A arte da subitização (28.5.2011)



A gente mostra uma foto dos Beatles a um sujeito que nunca ouviu falar deles e pergunta: “Quantas pessoas tem aí?”. O cara olha e responde em um segundo: “Quatro”. Mas se a gente mostrar uma foto de uma orquestra sinfônica e fizer a mesma pergunta, ele vai ter que sair contando: “Um... dois... três...”, até chegar ao total. O que ele fez no primeiro caso foi o que os psicólogos chamam de subitização: saber instantaneamente a quantidade de elementos de um conjunto sem ter de contá-los um a um. Dizem que o limiar médio do ser humano é quatro, e que à medida que essa quantidade vai aumentando, aumenta também a nossa dificuldade de “enxergar” o total, sendo preciso fazer a contagem.

Em seu conto “Funes, o Memorioso”, Borges tem uma visão hiperbólica do que seria essa função mental num homem dotado de memória absoluta. Diz ele: “Nós, de uma olhadela, percebemos três copos em cima de uma mesa; Funes percebia todos os rebentos e cachos e frutos que comporia uma parreira”. No filme Rain Man, há uma cena em que alguém derrama uma caixa de palitos no chão e o autista interpretado por Dustin Hoffmann percebe de uma só olhada que são 246.

A palavra significa “apreensão súbita ou imediata”. Muitas pessoas desenvolvem a capacidade de fazer tais cálculos através do processo chamado de “agrupamento e contagem”. Por exemplo, se mostramos uma foto com nove pessoas amontoadas ao acaso é mais difícil perceber quantas são do que se elas estiverem divididas em três grupos com três pessoas cada um. Neste último caso, bastam duas subitizações rápidas e sucessivas para sabermos que cada grupo tem três, e que o total é de nove.

Dizem que quando Henry Thoreau trabalhava numa fábrica de lápis ele sempre identificava a quantidade exata de lápis numa caixa sem contá-los. Já vi um depoimento de que algumas pessoas eram capazes de contar 38 ovelhas num rebanho, com uma só olhada à distância. Beremiz Samir, o personagem de O Homem que Calculava de Malba Tahan, levava essa capacidade a extremos surrealistas. Ao ver uma cáfila de camelos e ser perguntado quantos eram, ele dizia algo como: “São 484... Perdão, são 121, eu tinha contado as pernas deles”.

O hábito de contar folhetos de cordel me fez desenvolver um método de subitização baseado no número cinco. Quando a gente tem que saber o total de uma pilha com centenas de folhetos é mais fácil sair pegando de cinco em cinco (o olho calcula e o dedo separa num segundo), e ir contando: “1, 2, 3, 4, 5, 6....” No final basta multiplicar por cinco o total.

Um exemplo curioso diz respeito à capacidade de contar dos corvos (aves mais inteligentes do que a média). Três caçadores entram num local fechado, dois saem; os corvos olham e ficam à distância. Quatro entram, três saem: idem. O limite dos corvos é alcançado quando entram seis caçadores e saem cinco; os corvos pensam que o local está vazio e voam até lá. O limite de sua capacidade de subitização (ou de contagem) é cinco.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

2567) A Game of Thrones (27.5.2011)



A Game of Thrones é uma série que estreou há poucas semanas no canal HBO da TV a cabo, uma fantasia medieval que lembra por um lado os épicos de Conan Doyle (A Companhia Branca, O Escudeiro Heróico), por outro lado tem algo de O Senhor dos Anéis, e por outro, ainda, traz um pouco de um gênero que nada tem a ver propriamente com fantasia ou com Idade Média – o romance de intriga política, em que vários grupos lutam pelo poder. Em geral não assisto séries de TV (não sei como esses meus amigos conseguem trabalhar e assistir House, Lost, Os Sopranos, o escambau, tudo ao mesmo tempo). Desta vez me interessei porque a série se baseia num romance múltiplo de George R. R. Martin, conhecida figura que começou escrevendo ficção científica e depois optou pela fantasia medieval. Martin é um bom escritor, os livros dele foram elogiados por críticos que eu respeito, e isto me motivou a assistir os (até agora) três primeiros episódios.

O foco principal da história é Lord Stark, que governa a parte norte dos Sete Reinos, onde existe uma enorme muralha coberta de neve destinada a impedir a entrada de seres míticos e ameaçadores. O Rei o chama para a capital, para ser seu principal conselheiro. Stark não fica nem um pouco animado com isto, pois já tem problemas demais para administrar em seu próprio castelo. Mas ele é um dos melhores amigos do rei, são antigos companheiros de batalha que se tratam por “você”, e ele sabe que o rei corre perigo, porque há muita gente doida para defenestrá-lo e ocupar seu lugar no trono.

Stark, sua mulher e seus filhos são os personagens em princípio mais simpáticos de uma trama palaciana cheia de conspirações, traições, mentiras, etc. George R. R. Martin escreveu até agora quatro volumes de sua saga, cada um deles na faixa das 800 páginas (já estão sendo traduzidos no Brasil, pela Leya, sob o título geral de “Crônicas de Gelo e Fogo”). Um quinto volume deve ser lançado em julho nos EUA. Há muitos personagens e uma volumosa história prévia que vai sendo revelada aos poucos. É o tipo de história difícil de transpor para cinema ou TV, pois as disputas dinásticas e a política da corte requerem tipicamente longas cenas de diálogos. A direção da série tem se saído bem em exibir todas essas múltiplas linhas narrativas que ser cruzam e se interferem, embora um crítico tenha dito que tentar entender essa história é o mesmo que tentar entender a história política do Oriente Médio.

Game of Thrones tem um pé no fantástico, numa linha narrativa que ainda não foi bem desenvolvida: a anunciada invasão da fronteira norte dos reinos, através da Muralha, por criaturas que todos eles temem e nenhum conhece. Westeros (o nome do continente) é um lugar estranho, onde o inverno pode durar uma geração inteira – uma pessoa nasce, vive, envelhece e morre sem ter visto o sol. Tem bom roteiro, bons atores, e é melhor do que a maioria dos filmes que estão passando nos cinemas.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

2566) “A Nuvem de Hoje” (26.5.2011)



Desde que comecei estas colunas diárias no “Jornal da Paraíba” as pessoas passaram a me perguntar quando eu começaria a reuni-las em livro. Até parece que os textos jornalísticos existem não para serem lidos hoje no jornal, mas daqui a anos num livro! De qualquer modo, sempre tomei isso como uma demonstração de otimismo da parte dos meus leitores, e quem sou eu para questionar leitores, principalmente quando eles dizem que gostaram?

Fiz alguns projetos de recolha de textos, e se bem me lembro o primeiro deles, que nunca virou livro, intitulava-se 243 e reunia os 243 textos publicados em 2003, o ano em que começou minha participação no jornal. Não havia seleção – eram todos os artigos daquele ano, por ordem de publicação, encerrando-se com o do dia 31 de dezembro. Razões variadas impediram que essa possível obra-prima viesse à luz. Daí minha iniciativa em chamá-la de possível obra-prima. Uma vez que dorme para sempre no Limbo dos Obscuros, nem o mais pessimista leitor poderá questionar meu julgamento.

Toda esta lenga-lenga é para avisar que agora, sim, saiu a primeira recolha destes artigos em forma de livro, em forma de algo não cai que se posto de pé sobre uma mesa, algo que o vento só leva se estiver levando também as mesas e cadeiras em volta. Devo esta publicação a Cidoval Sousa, diretor da Editora da Universidade Estadual da Paraíba, que me fez a proposta e acatou minha sugestão de que, ao invés de uma edição gigantesca, com centenas de artigos, fosse um livro simples, pequeno, barato, indo direto ao ponto. Um livro que pudesse ser comprado por (olha a redundância!) um estudante liso.

O livro chama-se A Nuvem de Hoje, já teve lançamentos em Boqueirão e Campina Grande, e está sendo lançado em João Pessoa hoje à noite, na livraria do Zarinha Centro de Cultura, à Avenida Nego, 140, Tambaú. O título alude ao fato de que os artigos de jornal são como nuvens, visíveis aos olhos de todo, mas que vão embora depressa. Cada dia o colunista tem a obrigação de produzir uma nuvem para ser vista através da janela do jornal.

Como sabem muitos leitores, todo esses material (mais de 2.500 artigos até agora) está acessível em meu blog Mundo Fantasmo, onde há inclusive a possibilidade de fazer buscas por assunto (com palavras-chave como “Treze”, “campeão”, etc.). O livro, contudo, tem lá as suas conveniências, entre elas a portabilidade, a não-dependência de energia elétrica, etc. Posso aduzir mais uma: a seleção de artigos para um livro cria uma justaposição única de textos, principalmente quando a base de dados é ampla e variada. A Nuvem de Hoje dá maior relevância (por ser um livro pensado para o estudante paraibano) a assuntos que envolvem Campina Grande, a Paraíba, o Nordeste, embora não se limite a isto. Pode se tornar (e aí depende do uso que dele for feito) um útil livro paradidático para discutir os assuntos da nossa terra. Se isto acontecer, considero-me pago.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

2565) A escola na retaguarda (25..5.2011)



A indústria cultural ultrapassou a escola, nas últimas décadas, como instrumento formatador das mentes de crianças e adolescentes. Existe um cabo-de-guerra permanente entre pais e filhos com relação ao tempo de estudo e tempo de lazer. A garotada passa cinco horas na escola; quando volta, quer jogar videogame ou ver televisão. Os pais insistem para que eles vão fazer os deveres, vão estudar, e os guris esperneiam: “Pô, passei a manhã inteira na escola, chego em casa vou ter que estudar de novo?!”. Assim que conseguem, correm para a TV ou o PlayStation e entram numa frenética atividade mental. Se pudéssemos botar em nossos filhos um capacete de eletroencefalograma-em-tempo-real, veríamos que nas duas ou três horas em que passam jogando “Fallout” produzem a mesma quantidade de energia mental dispendida em 150 horas estudando matemática.

Eliminar os aspectos negativos da indústria cultural é uma missão impossível, pois seria preciso bloquear sua sequiosidade vampírica pelo lucro, ou seja, seria preciso negar sua própria natureza, sua própria razão de ser. O símbolo da indústria cultural poderia ser o Fabricante de Jujubas. Ele sabe que a jujuba não alimenta coisa nenhuma, não traz nenhum bem ao organismo, em grandes quantidades pode até fazer mal; mas jujuba é o que ele sabe fabricar... Sendo assim, pau na máquina e jujuba no mundo. Quando alguém o questiona, ele diz: “Mas o povo gosta!” A indústria cultural é uma gruta-de-ali-babá com milhões de jujubas alimentares, televisivas, recreativas, tóxicas, o escambau. Cada um fabrica uma jujuba diferente e nega ser responsável por qualquer problema; se alguma jujuba está fazendo mal, é a do vizinho, não a dele.

Tanto a escola tradicional quanto a indústria cultural têm aspectos positivos e negativos. O difícil é juntar os aspectos positivos dos dois e eliminar os negativos. Existe um pensamento generalizado de que a escola, do jeito que é, segura cada vez menos a atenção e o interesse da meninada. O lazer gratuito (eletrônico) é cada vez mais abundante. As aulas são chatas (giz... quadro-negro...). As matérias são consideradas incompreensíveis ou irrelevantes. Os professores dão as mesmas aulas, ano após ano, com estoicismo, com resignação, em busca da sensação (que nem sempre lhes chega) de que cumpriram com o seu dever. Ganham uma merreca; se perderem o vislumbre do idealismo, de que estão formando os jovens do futuro, o que lhes resta? É difícil eliminar os aspectos negativos da escola tradicional porque eles se referem principalmente a pilares estruturais como conteúdos, legislação, metodologia, composição curricular, reorganização do tempo e do espaço físico, etc., e mexer nisso corre o risco de derrubar o edifício inteiro.

Como dizia Bob Dylan: “É um mundo engraçado, este que está surgindo; parece doente e faminto, parece cansado e andrajoso. Dá a impressão de que está morrendo, mas mal acabou de nascer”. Vai ver que é isso mesmo.

terça-feira, 24 de maio de 2011

2564) Bob Dylan, 70 anos (24.5.2011)




Quem não está cuidando de nascer é porque está ocupado em morrer. (It’s All Right, Ma, 1965). 

Todos os meus amigos leais, companheiros queridos, todos me aprovam e compartilham minhas leis. Eu pratico uma fé abandonada há muito tempo, e não existem altares nesta estrada longa e solitária. (Ain’t Talking, 2006). 

Você vive tentando me mudar desde que a gente se conheceu; se não aguenta os meus defeitos, me esqueça. Me aceite como eu sou, ou me deixe ir embora. (Take Me As I Am, 1970). 

Você está parado junto às águas e arremessa o seu pão, enquanto reluzem os olhos do ídolo com cabeça de ferro. Navios distantes singram por entre a névoa. Você nasceu agarrando uma serpente em cada punho, por entre o sopro de um furacão. (Jokerman, 1983). 

Meu amor é como um corvo, pousado em minha janela, com uma asa partida. (Love Minus Zero: No Limit, 1965).

Vocês criaram o pior dos medos que se pode produzir: o medo de trazer crianças para este mundo. Vocês ameaçam minha criança que ainda nasceu e não tem nome, e não são dignos do sangue que corre em suas veias. (Masters of War, 1963). 

Eu sei por que motivo você fala de mim pelas costas: eu já andei no meio dessa turma com quem você anda agora. (Positively 4th Street, 1965) 

Você pode ser embaixador inglês ou francês, pode ser jogador, dançarino, campeão mundial dos pesos-pesados, pode ser uma socialite coberta de pérolas: mas você tem que servir alguém. Pode ser Deus ou pode ser o Diabo, mas você tem que servir alguém. (Gotta Serve Somebody, 1979). 

Todo dia sua lembrança fica esmaecida, e não me assombra mais como antes. Vou caminhando pelo meio do nada, tentando chegar no Céu antes que eles fechem a porta. (Trying To Get To Heaven, 1997). 

De repente eu me virei e ela estava ali, com braceletes nos pulsos e flores no cabelo. Veio devagar, e tirou minha coroa de espinhos, e disse: “Venha, eu lhe darei abrigo na tempestade”. (Shelter From The Storm, 1974).

Os reinos da Experiência apodrecem nos ventos preciosos, enquanto os miseráveis trocam o que possuem, cada um invejando o que o outro conseguiu. Enquanto isto, o Príncipe e a Princesa discutem o que é real e o que não é; e isto não tem importância dentro dos Portões do Éden. (Gates of Eden, 1965). 

A água está subindo, um palmo acima da minha cabeça. “Não estenda a mão pra mim,” disse ela, “não vê que eu também estou me afogando?”. E a água sobe por todo lado. (High Water – For Charlie Patton, 2001). 

Confie em você mesmo, e não se decepcionará quando for enganado. Confie em você mesmo, e não procure respostas onde não há. Se está procurando alguém em quem confiar, confie em você mesmo. (Trust Yourself, 1985). 

O mundo está adormecido enquanto eu olho para eles e choro. Há tão poucas coisas que valem mesmo a pena. E embora eu peça tão pouco, tão poucas coisas materiais para tocar, eu peço: Senhor, protege os meus filhos. (Lord Protect My Child, 1983).




domingo, 22 de maio de 2011

2563) Os Gafanhotos do Forró (22.5.2011)



(The Locusts, de Mary Boxley Bullington)

Eles não gostam de forró, não gostam de música. A única música que lhes faz bem aos ouvidos é o tilintar de uma caixa registradora. Entraram no ramo musical em busca de uma massa consumidora fácil de mobilizar, com intensa divulgação boca-a-boca (gratuita, portanto), e a simpatia imediata de todos os que sobrevivem da própria capacidade de mobilizar multidões: políticos, agências de publicidade, etc. Música feita para 500 pessoas não lhes interessa. É um investimento desproporcional de tempo, para faturar pouco dinheiro. Só lhes interessa lidar com públicos de 5 mil para cima.

Os Gafanhotos do Forró querem colocar no palco algo que tenha resposta imediata. O povo gosta de ver mulher pelada? Vamos colocar mulheres nos mais diferentes graus de peladice, uma vez que nuas mesmo não pode ser. Saia curta, malha cor da pele, calcinha de fora, calcinha jogada para a platéia. O povo gosta de pornografia? Vamos fazer letras chamando palavrões, falando de sexo o tempo inteiro. O povo gosta de ridicularizar o vizinho? Beleza, vamos fazer músicas ofendendo todo tipo de pessoa, assim qualquer ouvinte escolhe a música que dá certo com a pessoa que ele quer ridicularizar (e o outro faz o mesmo com ele, claro).

O povo gosta de dançar. Mas como dançar forró não é para qualquer um, usa-se aquele ritmo que é uma diluição de elementos do próprio forró, da lambada, do carimbó, da salsa. Adaptam-se, da gafieira e de outras danças de salão, passos simples que qualquer dançarina principiante consegue reproduzir no palco com alguns dias de treino, dando às moças da multidão lá embaixo a sensação de que elas também conseguem reproduzir. Na verdade, nem precisa que as mulheres da platéia dancem tão bem quanto as do palco: basta que estejam de saia bem curtinha e calcinha de fora. O que é mais fácil de conseguir do que saber dançar.

Os Gafanhotos do Forró abordam candidatos a prefeito em 5 mil cidades do interior. Comprometem-se a fazer “x” shows de graça na campanha do candidato, com a condição de que, se eleito, ele contratará “x” shows dos Gafanhotos do Forró durante todos os anos de sua gestão. Além do mais, o pagamento do cachê dos Gafanhotos é sempre em dinheiro vivo, de modo que parte dele pode ficar na mão de quem faz o pagamento, e uma mão lava a outra.

Os Gafanhotos do Forró combatem, a ferro e fogo, o forró que tocava nas festas juninas de alguns anos atrás, o forró de Luiz Gonzaga, Marinês, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, etc. Não porque tenham medo de sua concorrência. Combatem o forró porque todo impostor que rouba os documentos, a aparência e a identidade de uma pessoa real só descansará quando essa pessoa estiver morta, e não possa ser vista em lugar nenhum. Enquanto o forró existir, estiver vivo e for tocado, os Gafanhotos do Forró não poderão dormir tranquilos uma só noite, não poderão gastar tranquilos um só centavo dos seus milhões.

sábado, 21 de maio de 2011

2562) “Sete tipos de ambiguidade” (21.5.2011)




Certa tarde, um casal chega a uma livraria e desce ao porão, onde há estantes cheias de coleções encadernadas. Ali, só um velho funcionário à mesa, e um adolescente folheando um livro caro, que ele não tem dinheiro para comprar, e que o velho lhe cede para ler, algumas páginas por dia.

O velho atende o casal; o homem explica que veio comprar uma grande quantidade de livros. Que livros?, pergunta o velho. Ele hesita e acaba lembrando o nome de um autor: “Charles Dickens! Já li alguma coisa dele e gostei”.

Diz ao velho que gosta de livros, mas trabalha desde a infância, nunca teve tempo para ler. Agora está bem de vida, tem dinheiro, e acha que precisa botar a leitura em dia. Comprou uma estante e botou na sala. Quer as obras completas de Dickens e... não consegue lembrar nenhum outro autor.

O velho pede ao adolescente (que é freguês da livraria, conhece tudo ali) que ajude o cavalheiro. O garoto, feliz de poder ajudar, começa a dar palpites: “O sr. gosta de Dickens? Pois leve esse cara aqui: George Meredith! Muito bom!”. A esposa do cara lembra um livro que gostou: Jane Eyre. O rapaz mostra ao cliente as obras completas das irmãs Bronte.

O homem manuseia, elogia as encadernações. Diz que quer levar muitos livros, pois acabou comprando uma estante enorme e tem que enchê-la toda. Vai separando coleções: Mark Twain, Thackeray, Jane Austen...

No final pergunta ao adolescente que livro era aquele que ele lia. O rapaz: “Sete Tipos de Ambiguidade, de William Empson. Um livro de filosofia, muito bom! Mas custa muito caro, não posso comprar”.

O garoto se despede, vai embora. O homem manda o velho empilhar as coleções que escolheu, dezenas de livros. Na hora de pagar, pede para ver o livro que o rapaz lia. O velho mostra. Ele diz: “Será que o garoto vai ter dinheiro para comprar esse livro?” O velho: “Não, não vai poder, é uma edição cara”. O cara diz: “Nesse caso, levo esse também.” Paga, vai embora com a esposa e o conto acaba aí.

É um conto de Shirley Jackson (publicado em 1948) e eu acabei de lê-lo agora, com um calafrio final de terror. Vejam o que é a literatura. Se fosse um conto meu, o cara comprava o livro ao velho e deixava de presente para o rapaz, como incentivo. O conto teria uma mensagem humanista e todo mundo ficaria feliz, principalmente eu mesmo.

Mas Shirley Jackson me jogou num universo paralelo de terror, onde os monstros são criaturas que nunca leram, nunca puderam ler, tiveram que se matar de trabalhar desde cedo. Quando querem ler, não adianta: estão ricos e vazios. Gastam tudo quanto têm para tapar esse vazio, com livros que não lerão porque é tarde demais.

A história é norte-americana mas me jogou num Brasil de gente pobre que não consegue ler porque só trabalha, trabalha. E quando um desses, que enriqueceu trabalhando, é capaz de comprar livrarias inteiras, não é capaz de ler um livro. Não é capaz sequer de perceber a existência de uma pessoa que está ali, do seu lado.




sexta-feira, 20 de maio de 2011

2561) As notícia tão errada (20.5.2011)



(Mário de Andrade, por Baptistão)

Tem causado polêmica o livro Por uma vida melhor de Heloísa Ramos, Ed. Global, em que supostamente o MEC estaria ajudando a destruir a língua portuguesa e prejudicando a alfabetização das crianças. É a campanha política de sempre, procurando más intenções nas menores coisas feitas pelo Governo. Acho um absurdo manchetes ou chamadas tipo “Livro usado pelo MEC ensina aluno a falar errado”. Não é isso, absolutamente. O livro, pelo que vi, faz o que eu faço nestas minhas colunas: defender a fala informal, coloquial, como uma maneira paralela de usar a língua, que pode muito bem conviver com a Norma Culta. Mas eu acho que todos lucraríamos se o enfoque político, mero pretexto para “meter o pau no Governo”, fosse substituído por um enfoque voltado para a língua portuguesa, que é o que está em questão. Eu critico todo Governo, mas neste caso os dois lados merecem críticas.

Diz a autora do livro: "O importante é chamar a atenção para o fato de que a ideia de correto e incorreto no uso da língua deve ser substituída pela ideia de uso da língua adequado e inadequado, dependendo da situação comunicativa". Concordo com isto, menos num detalhe, a expressão “substituída”. Não podemos perder a idéia de correto e incorreto, porque existem coisas que são flagrantemente incorretas. E não se pode dar a ninguém a impressão de que a Norma Culta da língua (que também defendo, consistentemente, nesta coluna) não serve para nada, e pode ser substituída pela norma coloquial, ao gosto do falante. (O livro não defende isto, claro. Mas os termos que usa abrem espaço para que alguém o acuse disto.)

Cada um fala do jeito que lhe apraz. Eu digo o tempo todo coisas como: “As pessoa pensa que a Gramática é um bicho de sete cabeça”. É assim que eu pronuncio as palavras quando estou falando, resíduo plebeu de quem foi criado em rua sem calçamento. Mas se eu for escrevê-las vou escrever como Camões escreveria, resíduo elitista de quem foi criado em casa com biblioteca. A não ser que eu esteja escrevendo, num romance ou numa peça, um diálogo de um personagem que fala assim. Então, tenho que escrever assim.

O livro tem a boa intenção de diminuir o enorme sentimento de culpa, de inadequação, de complexo de inferioridade, em milhões de alunos pobres que são escarnecidos diante da turma por terem escrito ou pronunciado uma palavra da única maneira que aprenderam, e que não é a da Norma Culta. O “preconceito linguístico” existe, e existe forte. Nosso dever é legitimar as falas coloquiais, regionais, etc., sem dar a impressão de que se está dispensando o ensino, o estudo e a prática da Norma Culta. A Norma Culta é a âncora da língua, que a mantém firme no centro de uma consciência coletiva e compartilhada. A Norma Culta evita que ela se estilhace em milhares de falares regionais ou, pior ainda, em milhões de indivíduos falando uma língua pessoal que só eles entendem.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

2560) Estatísticas (19.5.2011)




Até que ponto podemos nos deixar induzir pelas estatísticas? Elas são um tremendo instrumento para análise, e ao mesmo tempo uma tremenda viseira, filtro, que só permite ver um tipo de coisa. 

Uma piada famosa diz que as estatísticas são como os biquínis: o que mostram é interessante, mas o que escondem é mais interessante ainda. 

Outra piada diz que três amigos saíram para caçar: um médico, um advogado e um estatístico. Um pato selvagem levantou voo. O médico atirou à esquerda e errou, o advogado atirou à direita e errou, e o estatístico gritou: “Acertamos!”.

Estatísticas têm um papel decisivo nas pesquisas de opinião, que decidem desde campanhas publicitárias de detergente até eleição do Presidente da República. Uma crítica que faço às estatísticas é que seu excesso de precisão mascara sua eventual irrelevância. O maior exemplo é o vício das estatísticas por computador que toma conta das transmissões de futebol. O jogador Fulano percorreu 4,5 km, o chute de Sicrano ia a 97 km por hora, o time tal é o que fez mais gols entre os 20 e 45 minutos do 2o. tempo... 

Isso ajuda o técnico, ajuda o adversário? Pode ajudar, remotamente. Mas precisa ser um técnico de muito bom senso para filtrar dessa emaranhado de números algo que seja útil do ponto de vista prático. E que possa ser posto em prática pelos brucutus ao seu dispor.

Existem exemplos curiosos de como as estatísticas moldam nosso modo de pensar. Os psicólogos costumam empregar o termo “efeito Lake Wobegon”, numa referência a uma cidade fictícia criada por Garrison Keillor, na qual “todas as mulheres são fortes, todos os homens têm boa aparência e todas as crianças são acima da média”. 

Algumas pesquisas nos EUA indicaram que 63% dos norte-americanos se consideram mais inteligentes do que a média da população, o que é uma impossibilidade estatística; numa pesquisa semelhante no Canadá, 70% dos entrevistados se consideram mais espertos do que o canadense médio.

O modo como as perguntas são feitas, é claro, faz essas percentagens mudarem dramaticamente. Lembro de um livro de Theodore Sturgeon (Venus Plus X) em que ele cita uma pesquisa feita nos EUA, em que a certa altura foi perguntado se todos os homens eram iguais, e 61% responderam que sim. Logo em seguida perguntaram se os negros são iguais aos brancos, e 4% disseram que sim. 

Aparentemente este exemplo comprova o quanto os norte-americanos são preconceituosos. Para mim, ao contrário, prova o quanto é fácil provar algo formulando as perguntas de certa maneira. A primeira pergunta é tão ampla que tem um sentido generalizante, filosófico. Ao respondê-la, pensamos no que a Constituição diz, abstratamente, sobre igualdades. 

Na segunda pergunta, o dado concreto (cor, aparência física) é jogado de maneira tão brusca que eu mesmo responderia que “não”. É como se me perguntassem: Os gordos são iguais aos magros? Os futebolistas são iguais aos astrônomos?





quarta-feira, 18 de maio de 2011

2559) “O Fantasma de Canterville” (18.5.2011)



Poucas histórias de fantasmas serão tão emblemáticas quanto esta noveleta de Oscar Wilde, de 1887, que hoje é um clássico da literatura infantil. Foi adaptada várias vezes para o cinema, várias vezes traduzida no Brasil. É a história de uma família norte-americana que compra Canterville Chase, uma tradicional propriedade rural inglesa, e ao se mudar para lá recebe o aviso de que a casa é mal-assombrada. A família é pragmática e materialista, não acredita no Fantasma, e, quando este aparece, não lhe dá muita importância. A partir dessa primeira aparição o Fantasma passa a ser o ponto de vista narrativo, e vemos sua decepção e perplexidade diante daquelas pessoas que não o temem, e daquelas crianças capazes de qualquer coisa para infernizar sua vida: há um par de gêmeos que lembram Hans & Fritz, os “Sobrinhos do Capitão” dos quadrinhos.

Wilde cria uma historieta divertida mostrando o desespero do pobre Fantasma que não assusta ninguém. Os jovens e saudáveis norte-americanos não o levam a sério em momento algum, por mais que ele recorra a todos os seus truques, caracterizações, efeitos especiais. O autor fica numa posição “triangular”, mostrando à distância os dois lados da história, satirizando ambos, mas com um bom humor juvenil que talvez tenha se diluído à medida que ele foi cristalizando a “persona” cínica que o tornou famoso em Londres.

O livro de Wilde foi mais um golpe pesado na literatura gótica de velhos castelos, noites tempestuosas, maldições seculares, tragédias de famílias nobres, espectros penitentes que imploram perdão ou vingança. Surgindo no século 18, cem anos depois esse tipo de romance já merecia sátiras e paródias variadas. No século 20, os fantasmas bonzinhos acabaram se transformando num clichê tão consagrado quanto os fantasmas ameaçadores. A “sacada” de Wilde foi de que seria engraçada uma situação em que as pessoas incrédulas vissem, sim, o fantasma, mas isso não tivesse o menor efeito sobre elas. Pelo contrário: os adultos tentam ajudá-lo (dão-lhe óleo para lubrificar as correntes, que rangem muito) e as crianças pregam-lhe peças terríveis. No fim do livro, a filha da família Otis, Virginia, torna-se amiga do fantasma e ajuda a libertar sua alma.

O fantasma do livro é Sir Simon de Canterville, que em 1565 assassinou a própria esposa. O que acaba parecendo uma premonição do poema mais famoso de Wilde, a “Balada do Cárcere de Reading”, escrito dez anos depois, em 1897, onde estão os famosos versos: “Pois todo homem mata a coisa que ama, / e cada um que escute bem: / alguns o fazem com um olhar amargo / outros com uma palavra de elogio / o covarde o faz com um beijo / e o homem valente com uma espada”. Por ter morto a esposa, Sir Simon tem que passar 300 anos vagando pelos corredores da mansão, até ser desmoralizado pela incredulidade dos norte-americanos e ser libertado pela compaixão da garota, a primeira que é capaz de perdoá-lo.

terça-feira, 17 de maio de 2011

2558) Domingo de bola (17.5.2011)




O domingo passado foi o domingo dos campeões estaduais, com algumas surpresas e várias jornadas épicas. (Aqui no Rio de Janeiro foi um domingo de TV, porque o Flamengo simplificou o processo ganhando invicto os dois turnos.) Eu me juntei com uma galera pernambucana para torcer pelo hexa do Sport, que mais uma vez ficou pra próxima. (Parece que pro Leão ganhar cinco títulos é mais fácil do que ganhar o sexto.) O Santa Cruz, com um time mais modesto (em grana e em futebol) jogou com garra e sustentou até quase o final o 0x0. O juiz, esperto, calou a boca da torcida do Sport inventando um pênalte aos 48 minutos, que não serviu para nada. Marcelinho Paraíba converteu, o jogo acabou, e ele, como bom raposeiro, ainda tentou inventar uma briga pra não perder a viagem.

De crista baixa, fui ver quanto tinha sido o jogo do Galo mineiro, que esteve com o jogo nas mãos (jogava pelo empate) e deixou escapar. Surpresa mesmo foi o Bahia de Feira de Santana, que derrotou o Vitória no Barradão, para a festa de 30 e poucos feirenses perdidos no meio da multidão rubronegra. Isso, sim, é uma decisão que nenhum time tem o direito de perder.

Decisão mais tranquila (a julgar pelos Melhores Momentos, no SporTV) foi a vitória do Santos sobre o Corinthians, resultado justo, lógico e previsto, porque o Santos está na ascendente há bastante tempo (agora mais ainda, com Muricy como técnico), e o Corinthians numa entressafra danada, com um time sem muito brilho e esperando Adriano emagrecer.

A grande batalha épica do domingo, no entanto, foi o Gre-Nal, talvez o jogo mais emocionante, cheio de alternativas. Internacional e Grêmio são um dos poucos casos, no futebol brasileiro, em que as torcidas parecem torcer mais contra o adversário do que a favor do seu próprio time. Os gaúchos parecem pensar no adversário desde o instante em que acordam ao instante em que vão dormir (e sonham com ele, também). Os dois jogos decisivos foram simétricos, com o visitante ganhando de 3x2 no campo do adversário. O título foi decidido nos pênaltis com três defesas de Renan, que havia falhado em três dos cinco gols gremistas nos dois jogos.

Grêmio e Inter parecem dois irmãos siameses de tragédia grega, duas faces de uma mesma moeda. Por alguma magia misteriosa, o destino de um está colado ao do outro, e tudo que acontece ao vencedor acaba acontecendo também com o vencido, e vice-versa. Já escrevi aqui (“Os jogos simétricos”, 11.7.2009) sobre dois jogos, em dias consecutivos, em que Inter e Grêmio foram eliminados em Porto Alegre por Corinthians e Cruzeiro em jogos com uma marcha do placar absolutamente idêntica. O que escrevi na época se aplicaria às finais do Gaúcho deste ano: “Simetrias improváveis aparecem quando menos se espera, e nos dão a impressão de que vimos a repetição de um padrão, de um ornato, a justaposição de duas coisas que alguém tornou iguais porque isso lhe dava algum tipo de prazer estético.”

segunda-feira, 16 de maio de 2011

2557) A telenovela, quem diria (15.5.2011)



Numa entrevista à Revista E, do SESC-SP (abril 2011, número 10), Lauro César Muniz lamenta a queda de qualidade das telenovelas atuais em relação às da época em que ele criou sucessos como O Casarão, O Salvador da Pátria, etc. Muniz, que é da velha escola de dramaturgia da Globo, lembra o quanto era difícil, durante a ditadura, lidar com a censura exercida sobre um meio tão popular quanto as novelas. Imaginamos que só quem sofreu na unha da censura foram o Cinema Novo, o Cinema Udigrudi e outros movimentos de contestação pura. As telenovelas também sofriam, não porque fizessem propaganda do socialismo (embora tivesse comunistas notórios como Dias Gomes), mas porque eram vistas por dezenas de milhões de pessoas. Censor que se prezasse tinha que ficar de olho.

“Dialogávamos com os censores”, diz Lauro César. “Nossos argumentos eram bons e eles eram burocratas. Assim, conseguimos liberar algumas coisas, às vezes cedíamos em outras. Tentei colocar em cena um personagem judeu que tinha uma relação com uma não judia e fui censurado. Hoje, isso é feito à vontade. Relação entre negros e brancos não era permitido, assim como personagens homossexuais. Havia essa censura, e não conseguíamos passar por cima de tudo. Qualquer história que tivesse como mote luta de classes era muito visada. Não eram ingênuos”.

Quanto a mim (mero espectador), nem peço que as novelas de hoje abordem a luta de classes. Bastava que as situações não fossem tão caricaturais, os personagens tão grotescos, as situações tão clichê. Os diálogos das novelas (inclusive a das 8, que costumava ser a que tinha mais espessura como texto) estão uma calamidade. Quando estou visitando alguém e sou forçado a assistir um capítulo, a cada bloco tenho vontade de arranjar uma desculpa e sair da sala, porque fico constrangido de estar escutando aquilo. Preconceito? De jeito nenhum. Meu sonho na vida é ver uma novela que me dê vontade de acompanhar.

“Atualmente, a audiência dita tudo, com isso a qualidade das novelas caiu muito. Ficaram maniqueístas, esquemáticas. Todos nós estamos mostrando uma dramaturgia de mercado. Há algo perigoso que é o processo industrial, na medida em que os capítulos das novelas se estenderam e o público tem sido bombardeado pelo cinema ‘blockbuster’. Esse tipo de cinema que dominou o mercado influenciou as telenovelas. Prioriza-se a ação frenética e não a reflexão. Com isso, enchemos os nossos gabinetes de colaboradores – um grande mal. Virou o ‘fordismo’ da criação. (...) Apresentei por escrito ao Boni um projeto para diminuir o número de capítulos das novelas – hoje com mais de duzentos. Diminuindo, o autor poderia reassumir seu papel de escritor, podendo recuperar o seu estilo. Tempos depois, meu projeto foi engavetado. (...) Há uma inércia no processo, ninguém quer mudar. Só que a qualidade caiu muito, os melhores autores estão escrevendo mal suas novelas – falta estilo e autoria”.

sábado, 14 de maio de 2011

2556) O futuro dos Bancos (14.5.2011)



Fiquei sabendo que as filas enormes e demoradas nas agências bancárias não são produto do acaso e da incúria, mas da solércia e do planejamento. Cheguei num Banco e peguei minha senha de atendimento. Isto já era um bom sinal. A maioria dos Bancos com senhas de atendimento oferece também cadeiras para os clientes poderem sentar enquanto esperam. Dos quatro caixas à minha frente somente um estava ocupado. Cada pessoa que ia até ali demorava como se estivesse renegociando a dívida externa de Serra Leoa. Eu estava com minha continha simples na mão, o dinheiro exato, era somente pagar, pegar umas moedazinhas de troco e correr pro abraço.

Logo vi que o abraço ia demorar meia hora, uma hora inteira. Dei um suspiro e comentei com o cidadão grisalho ao meu lado: “Eles deviam saber que num dia como hoje vem mais gente”. Ele tirou os óculos, limpou com o lenço e respondeu: “Eles sabem. Fazem isso de propósito”. Eu: “É, tem razão. Fazem só pra maltratar a plebe. A gente merece!” Ele: “Não, não. Isso é uma determinação que vem de cima. Eles querem estimular o uso das máquinas, do auto-atendimento. Querem que o cliente fique desestimulado de pedir ajuda aos caixas, e aprenda a fazer tudo sozinho”.

Lembrei de um texto de Bruce Sterling onde ele lembra como antigamente, nos filmes, o pessoal pegava o telefone e gritava: “Telefonista, ligue-me com a polícia!”. Hoje em dia ninguém faz isso. As telefonistas são desnecessárias, porque todo mundo aprendeu a discar, e a saber de cor (ou ter anotado) os números de que precisa, inclusive a polícia. Perguntei: “Mas eles acham que vão conseguir? Minha tia-avó toda vez que quer saber o saldo perde meia-hora na fila. É uma questão cultural”. Ele: “Bem, as tias-avós, com todo respeito, são uma espécie em extinção. Os Bancos confiam que dentro de algumas décadas todo mundo achará o auto-atendimento a coisa mais natural. Em breve, não haverá mais caixas: a agência será um salão cheio de máquinas onde as pessoas entrarão, farão seus pagamentos e depósitos, abrirão suas contas, registrarão senhas, farão sozinhas tudo que hoje pedem que os caixas façam por elas. E tem mais. O próximo passo é, sutilmente, fazer com que as pessoas passem a executar tarefas que nada têm a ver com elas, tarefas que são do Banco. Pedirão ao cliente que faça tais ou tais cálculos, que preencha tais ou tais formulários.. Uma infinidade de pequenas tarefas simples do dia-a-dia do banco passará a ser feita pelos clientes, que assim passarão não apenas a pagar taxas, mas a trabalhar de graça para os Bancos.”

Silêncio. Pausa. Comentei que ele estava muito bem informado; era jornalista, por acaso? “Não”, disse ele, “na verdade sou o neto dessa moça aí (e mostrou a jovem loura, no caixa) e vim vê-la de perto. Depois retornarei para 2071”. “Boa piada”, disse eu, fazendo de conta que não via a aura azulada em torno dele, e que não sentia o cheiro de ozônio da sua vestimenta.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

2555) A literatura autobiográfica (13.5.2011)



(do Codex Seraphinianus)

Na sua biografia de Jorge Luís Borges, a escritora Maria Esther Vásquez relata com bom humor as incontáveis entrevistas que Borges, na velhice, dava para crianças de 10 ou 12 anos que as professoras mandavam bater à sua porta. Ele, talvez por solidão, invariavelmente as recebia, e dava as mesmas respostas às eternas perguntas. Diz ela que todas essas entrevistas infantis começavam com “Quando o sr. descobriu que era escritor?” e terminavam com “Que conselho daria a um jovem que quer ser escritor?”. Acho que minha única semelhança com Borges (apesar dos meus ingentes esforços) é o fato de já ter respondido dezenas de vezes essas perguntinhas-vírus que ninguém consegue extinguir.

Tem uma terceira, uma pergunta-do-meio que também retorna ciclicamente, como um cavalinho de carrossel: “Seus livros se baseiam na sua experiência pessoal?”. Existe em certos leitores a noção de que um livro é uma espécie de buraco-de-fechadura através do qual é possível brechar a vida pessoal do autor. Se uma mulher escreve um romance sobre uma personagem ninfomaníaca, o leitor pensa: “Arrá! Ela tem tendências!...” Se um autor escreve contos sobre viciados em drogas, o leitor pensa: “Está contando tudo que ele mesmo fazia”. E assim por diante.

Todo livro (toda obra de arte) se cria a partir das experiências pessoais do autor, até porque não ouvi falar, até hoje, de uma pessoa que tivesse acesso às experiências de outra. Enquanto não inventarem a Máquina da Telepatia ou a Pílula da Transmigração de Almas, cada indivíduo está confinado a si mesmo, para o bem ou para o mal. Tudo que sabemos dos outros é de segunda mão: pela fala, pela escrita, até mesmo pelo testemunho dos nossos olhos – o que, no fim das contas, transfere a experiência de Fulano (Fulano bateu com o carro) para mim (eu vi Fulano bater com o carro).

Quando o sujeito é escritor, tudo é autobiográfico, tudo vem de sua experiência pessoal, mas o leitor precisa entender que grande parte (em muitos casos, a maior parte) da experiência pessoal de um escritor é o que ele observa, é a comédia humana que ele vê desfilar diante de si. Há autores que preferem falar do que experimentaram; outros preferem falar do que viram; outros ainda gostam de contar o que imaginaram. Mas a maioria dos romancistas, enquanto escreve, muda o tempo inteiro entre estes três registros, assim como um motorista muda de marcha de acordo com as exigências do terreno e do veículo.

Um escritor que é (por exemplo) advogado ou médico tem, na sua vida cotidiana, um Rio Amazonas de experiências alheias em que se inspirar, um Niágara de histórias com que ele entra em contato de modo superficial, mas o bastante para lhe dar a fagulha inicial de uma idéia. Os personagens que cria não são ele próprio. São uma parte essencial (e reveladora) dele próprio, são a projeção subjetiva dele sobre fragmentos de histórias que viu, complementadas por longos trechos que ele fantasiou.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

2554) Harakiri (12.5.2011)



Este filme de Masaki Kobayashi, de 1963, é um clássico do cinema de samurais, e tem a verdade humana, o flagrante histórico-social e o arrebatamento épico daqueles grandes faroestes de John Ford ou Sérgio Leone. Eu o tinha visto apenas uma vez, em 1970, e ao revê-lo agora no DVD descobri que lembrava enquadramentos precisos, cenas inteiras, e a história, que é cruel e dolorosa. Um samurai empobrecido e sem patrão, um “ronin”, chega às portas da mansão de um poderoso clã e pede que lhe deem condições rituais de praticar o harakiri lá dentro. Havia na época um mau costume, entre samurais sem ética, de fingir querer praticar o harakiri para ser dissuadido à força de esmolas. Os homens do clã Yi forçam o “ronin” a praticar o harakiri com as espadas de bambu que levava consigo, o que torna sua morte humilhante e dolorosa. Algum tempo depois chega à casa um “ronin” mais idoso, fazendo o mesmo pedido. Quando o ritual é preparado, ele pede (bem ao estilo das narrativas orientais) para contar sua história e de como chegou àquela situação. E revela que é o sogro do “ronin” anterior, e diz que está ali para justificar a atitude do genro, e para vingá-lo.

É um filme com mais de duas horas de duração, sucessivos flashbacks, muitos diálogos. Dos seus mais de 120 minutos talvez apenas uns 15 sejam dedicados a combates de espadas, mas estão entre os melhores que o cinema já fez, principalmente o confronto (em flashback) entre dois samurais numa campina agitada pelo vento. Kobayashi usa a tela larga tipo cinemascope, num preto e branco belíssimo (infelizmente prejudicado na cópia-para-colecionadores que os amigos me repassaram), mas que pode ser avaliado vendo-se o trailer no YouTube. Não é todo diretor que usa a tela larga para enquadramentos tão precisos, tão expressivos, tão cheios de movimento.

O filme também nos faz pensar sobre a época dos samurais. Tendo surgido como os defensores armados dos clãs feudais, os samurais ficavam inúteis numa época de paz, como a descrita no filme (em torno do ano 1630). Homens treinados para a guerra, tinham dificuldade de se adaptar a tempos pacíficos, e acabavam se transformando numa estranha forma de lumpen-proletariado, quase mendigos que, não obstante, eram especialistas numa função dificílima e arriscada. Tem a ver com os veteranos da II Guerra Mundial, do Vietnam, da Guerra do Golfo, etc. Indivíduos que se sentem mais à vontade numa brutal situação de combate, matando gente, do que em casa, aguando as plantas do jardim e ajudando a esposa a cuidar do bebê.

Kobayashi, além de fotografar admiravelmente, usa o som de maneira notável. Numa cena em que um homem pratica tiro ao alvo com arco e flecha, escutamos até o rangido do arco sendo dobrado. O tropel dos passos no chão de madeira, os gritos e arquejos durante a luta. A música, com instrumentos tradicionais japoneses, surge com extrema economia e eficácia. Um filme que vale a pena encomendar na loja oficial.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

2553) O que é mainstream (11.5.2011)



O conceito de “mainstream” literário é tipicamente um conceito da mentalidade norte-americana. O primeiro indício disto é que até hoje não temos um termo brasileiro que o exprima. Há quem use “corrente principal” (que parece jargão de engenharia elétrica), “tronco literário” (idem da engenharia florestal). Eu uso geralmente um circunlóquio como “a literatura propriamente dita”, que me parece horrivelmente vago. “Mainstream” é usado em inglês para exprimir um modo como os norte-americanos visualizam a literatura: um enorme rio que tem uma correnteza principal, como o Nilo, e que como o Nilo se subdivide eventualmente num delta de correntezas menores, que seriam os gêneros (policial, terror, amor, faroeste, etc.), as quais, contudo só existem porque são um mero desvio de uma parte das águas dessa correnteza maior, que é o rio propriamente dito.

Quando os norte-americanos falam “mainstream” eles estão querendo dizer algo como: “o moderno romance realista urbano, que descreve a vida de tipos humanos reconhecíveis em ambientes humanos reconhecíveis, e que nos faz revelações sobre a estrutura sócio-histórica-econômica do ambiente, e sobre o perfil psicológico dos personagens”. Este é o modelo literário dominante no mundo ocidental, desde a crítica literária da imprensa e dos jornais aos estudos universitários. O fato de corresponder a uma fatia muito estreita da produção literária não tem importância. A “corrente principal” não é principal por causa da quantidade, mas por causa do seu mero poder de se impor como modelo. Esse tipo de livro tem credibilidade e poder político, um poder meramente espiritual, mas nem por isto menos poderoso. Tem a maioria dos críticos, dos professores e dos acadêmicos ao seu lado. E é um modelo que vem sendo aperfeiçoado há pelo menos duzentos anos.

No Brasil, esse mainstream se divide no realismo social-histórico e no realismo psicológico. Quando um autor pertencente a uma destas tendências começa a exagerar certos traços, começa a se desprender do mainstream. Rubem Fonseca, por exemplo, volta e meia parece estar sendo empurrado para o gueto da literatura policial, mas sempre retorna à corrente principal. (Entre outras coisas, porque a crítica não quer abrir mão dele.) Como o brasileiro culto tem obsessão por História, o romance histórico é entre nós parte do mainstream, e não da literatura de gênero.

Quando é que um conjunto de textos sai do mainstream e constitui um gênero? Eu diria que é quando ele cria um público próprio, um mercado próprio, um sistema de feedback (críticas, resenhas, publicações) próprio e passa a não precisar do sistema do mainstream. Ocorreu isso com a ficção científica dos EUA, e é irônico que ela, depois de se tornar independente do sistema maior, sofra hoje a nostalgia de não ser aceita por ele. Isso se dá provavelmente porque o mercado (apesar de imenso, comparado ao brasileiro) é pequeno, comparado ao mercado mainstream norte-americano.

terça-feira, 10 de maio de 2011

2552) A bomba do Riocentro (10.5.2011)



Lembro, como se fosse hoje, a noite em que explodiu a bomba do Riocentro, evento que completou agora trinta anos. Eu estava numa barraca de Olinda, perto do famoso Bar Atlântico, tomando cerveja com a rapaziada, e a barraca tinha uma TV ligada. Passava da meia-noite, acho. De repente entrou uma chamada do telejornal da Globo e o cara da barraca aumentou o volume. Paramos a conversa para escutar, porque foram logo falando em bomba. Estava havendo um show musical no Riocentro e terroristas tinham jogado uma bomba num carro com dois oficiais do Exército. Ficamos de olho pregado na tela. Apareceu um carro todo esfrangalhado pela explosão. E então veio uma imagem da mala do carro aberta, e o repórter dizendo: “Foram encontradas outras bombas na mala do carro. Não há pistas sobre a autoria do atentado”. Quando terminou a matéria eu perguntei; “Olha, se os militares estavam no carro, e alguém jogou uma bomba neles, o que essas outras bombas estavam fazendo na mala do carro DELES?”.

Este é um episódio curioso na minha vida porque desde a manhã seguinte nunca mais ninguém tocou no assunto “outras bombas”. Em vão li jornais dos dias seguintes sobre o atentado, cada vez mais convencido do óbvio: os militares estavam ali para jogar a bomba em alguém e deram uma mancada. Por conta disso, escrevi uns versinhos, finalizando uma estrofe de martelo, que eram muito aplaudidos na época, quando os cantava em público: “Sou gangrena depois da infecção, sou a presa dum bicho peçonhento, sou a bomba no colo do sargento, explodindo o infeliz do capitão”.

Sigmund Freud tem alguns ensaios muito interessantes sobre o que ele chama de falsas memórias, ou memórias fabricadas. Ao evocar um episódio do passado distante, colocamos nele coisas que não estavam ali. Não colocamos pelo impulso de mentir ou de falsificar, mas porque estamos montando às pressas um quebra-cabeças e, quando falta uma peça, a gente inconscientemente fabrica uma peça antes inexistente, mas que se encaixa naquele lugar.

Terei imaginado as bombas na mala do carro? Talvez. Mas o fato estava acontecendo naquele instante, estávamos todos tomados de surpresa, e me lembro que foi a visão das bombas não-explodidas que me fez achar, perplexo, que aquilo não tinha sido um atentado terrorista. O pessoal dizia: “Mas o locutor falou que foram os terroristas que jogaram uma bomba no carro dos caras”. E eu dizia: “Ok, nada contra. Mas então o que estavam as bombas não-explodidas fazendo justamente no carro dos caras?”.

O atentado do Riocentro é um dos maiores escândalos jurídicos da época da ditadura, porque foi alvo de uma pseudo-investigação, conduzida pelo Exército com uma desfaçatez sem medida. Coube à imprensa e às organizações de direitos humanos montar o quebra-cabeças ao longo dos anos. Mas ainda não sei se a imagem daquelas bombas na mala do carro existiu mesmo ou é fruto da minha fértil imaginação.

domingo, 8 de maio de 2011

2551) Agitação no Circo Bigorna (8.5.2011)




Houve um reboliço no sábado de madrugada, quando o Homem Sem Braços tentou entrar na marra dentro do trailer do Prestidigitador. 

Estava bêbado, mais uma vez, e berrava: “Faço coisas muito mais extraordinárias do que você, seu judeu imbecil! Assim é fácil! Quero ver como eu!” 

O outro botou a cara e um revólver na janelinha: “Vai dormir, senão eu te apago aqui e agora”. 

A essa altura a Mulher Serpente já estava agarrada a ele, puxando-o de volta: “Venha, Helmut, não se rebaixe discutindo com essa gente!”. 

Saíram outros artistas, de pijama, de calção, e a ajudaram a levar o bêbado de volta, mas Mimi-a-Cartomante começou a fazer um discurso: 

“Enquanto permanecermos desunidos, seremos explorados. Estou cansada de ver artistas como nós cedendo sua mais-valia para Monsieur Bigorna, e passando por essas humilhações!”. 

Os Três Anões, que nunca perdiam uma chance, começaram a cantar em coro um hinozinho pornográfico sobre Madame Bigorna, acompanhando-se com palmas de mão. 

Diante daquilo a janela do trailer de Vanda Rumbeira se abriu e sua voz de contralto, carregada de cigarro e alcaçuz, se ergueu sobre o vozerio: 

“Queridos, se quiserem fazer comício, façam amanhã, na frente da platéia, não agora, quando não tem ninguém olhando e a gente precisa dormir. E você, amorzinho, vá botar cartas para si mesma pra ver se cai alguma ficha”. 

Mimi começou uma resposta impregnada de vitríolo mas nesse instante Bigorna, vindo por trás do Domador Mascarado, puxou o chicote que este trazia sempre enrolado na cintura, e o estalou com violência, erguendo poeira do chão e fazendo todos saltarem de susto. 

“Cambada de vagabundos, será que não se pode dormir depois de uma noite de trabalho?! Você, Mimi! Trate de arranjar um homem, pra ver se sossega o formigueiro! Tem alguém aqui mal satisfeito? Tem alguém? Se tiver se apresente!” 

Mimi ergueu o queixo: “Está todo mundo nervoso, Monsieur Bigorna! Houve uma altercação, só isso.” 

 Ele retrucou: “Altercação é a cabeça do meu dedão-do-pé, sua hippie desorientada! Volte já pro seu mufumbo, e trate de ficar calada. E vocês, seus marginais, o que era mesmo aquilo que estavam cantando?...” 

“Ninguém estava cantando nada”, disse Megabyte. “Era só uma brincadeirinha”, falou Gigabyte. “Quem compôs foi o Palhaço Randevu”, explicou Terabyte. 

 “Eu devia assar os três num espeto só, mas não faço em honra da memória da mãe de vocês, que Deus a tenha”, disse Bigorna, devolvendo o chicote ao Domador. “Vão dormir! Já!”. 

Os três disseram “Bença, pai!” e rapidamente se escafederam. Todos foram se retirando para seus trailers e por alguns instantes pareceu que ia reinar a tranquilidade, mas Mimi retornou com um megafone: “Mercúrio em trânsito na casa do Sol prenuncia grande mudanças!...” 

Ouviu-se um tiro e o megafone voou pelos ares, Mimi começou a chorar, mas Djeck Tonelada aproximou-se, passou-lhe o braço no ombro e a conduziu entre sussurros para o altar dos sacrifícios.



sábado, 7 de maio de 2011

2550) Obama vs. Osama (7.5.2011)



Depois da execução sumária de Osama Bin Laden num aparelho subversivo instalado numa cidade do Paquistão, saiu na Internet: “Não confunda Obama com Osama. Um deles é o líder de um grupo terrorista. O outro está no fundo do mar.” A morte de Bin Laden não foi muito diferente de morte de Carlos Marighella ou de Carlos Lamarca, dois dos mais famosos terroristas brasileiros. Terroristas, em geral, escolhem morrer mediante uma execução sumária, impiedosa. Eles sabem disso. Foram eles que impuseram, aos regimes que combatiam, as regras do combate. As regras dos terroristas são sempre adotadas pelos governos que os perseguem. Essas regras envolvem: violência planejada; desprezo pelas tecnicalidades jurídicas e pelos preceitos constitucionais; ação rápida, implacável, cruel; intensa participação da mídia, para que o maior número possível de pessoas saiba o que aconteceu; retórica bombástica, salvacionista, sempre invocando princípios abstratos e clichês com que pessoas de mente rudimentar podem se identificar sem muito esforço.

Isto é posto em prática tanto pelos insetos quanto pelos descupinizadores; vale para as “almas sebosas” e para os “justiceiros”. O terrorismo não pertence ao universo da política, pertence ao universo da literatura de terror. Seu objetivo não é substituir um governo por outro, um partido por outro, um regime por outro. Seu objetivo é produzir o terror. Acho que todo mundo conhece aquela fábula do escorpião que pede carona a um sapo para atravessar um rio. O sapo diz: “Eu, hein, você é capaz de me ferroar durante a travessia”. O escorpião retruca: “Ora, eu não sei nadar, se eu ferroar você eu morro afogado”. O sapo acha que aquilo tem lógica, bota o escorpião nas costas e começa a atravessar o rio. No meio da travessia, o escorpião o ferroa. Morrendo envenenado, o sapo grita: “Mas assim você vai morrer também!”. E o escorpião: “Eu sei, mas, não posso evitar, é minha natureza”.

É da natureza do terrorismo morrer, desde que alguém mate. É de sua natureza transformar o mundo da paz no seu mundo da guerra, o mundo da tranquilidade no seu mundo do medo, o mundo do contrato social no seu mundo com sangue nos dentes e nas unhas. Osama Bin Laden quer mostrar ao mundo que quem governa o mundo não são as intenções de Barack Obama, mas as suas. Vejam só que terrível e cruel ironia a História nos proporciona. Barack Obama subiu ao poder nos EUA prometendo extinguir a prisão de Guantánamo, prometendo acabar com as guerras, prometendo, sei lá, uma porção de coisas. Talvez tenha acreditado (como tanta gente acredita, inclusive no Brasil) que ser presidente dos EUA é ser “o homem mais poderoso do mundo”. Já bombardeou a Líbia, torturou prisioneiros em Guantánamo, invadiu o Paquistão, executou um homem desarmado, destruiu provas, jogou (ou alega ter jogado) seu corpo ao mar. Obama virou Osama, e isso mostra que Osama venceu.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

2549) Libertadores da América (6.5.2011)



Estou escrevendo estas linhas na noite de quarta-feira passada. (Nada como a literatura para comprimir o tempo de uma maneira tão elegante.) Foi para o futebol brasileiro “A Noite Triste”, e para os clubes de vários países latino-americanos “La Noche Buena”. Em quatro jogos na disputa pela Taça Libertadores da América, quatro times brasileiros foram eliminados numa mesma noite, uma marca que não sei se é recorde ou se tem precedentes nas décadas anteriores. Derrotas ainda mais dolorosas porque em três dos jogos os times brasileiros, tendo tido um bom resultado no jogo de ida, se consideravam praticamente classificados – e perderam. O Cruzeiro tinha derrotado o fraco Once Caldas na Colômbia e jogava em casa pelo empate; perdeu de 2x0. O Internacional tinha empatado com o Peñarol no Uruguai, e jogando em casa fez 1x0 no primeiro minuto de jogo; perdeu por 2x1. O Fluminense tinha derrotado o Libertad do Paraguai por 3x1, no Rio, e podia até perder por um gol de diferença; perdeu de 3x0. O que tinha a tarefa mais difícil era o Grêmio, que perdeu em casa para o Universidad Católica por 2x1, e agora perdeu de novo por 1x0.

É voz corrente na nossa imprensa esportiva que a Taça Libertadores da América é uma competição dificílima para os times brasileiros. Em 51 edições, os times do Brasil ganharam 14. Ainda assim, somos o segundo maior vencedor, e a Argentina é o primeiro com 22 títulos ganhos por seus clubes. Nossa imprensa fala sempre das viagens cansativas, das numerosas conexões aéreas, dos aeroportos pequenos, dos hotéis desconfortáveis. Agora, com a globalização dos serviços turísticos, isto pode ter se atenuado um pouco. Os estádios continuam verdadeiros caldeirões ou alçapões: arquibancadas muito próximas ao campo, torcidas exaltadas, arbitragens parciais, policiamento cúmplice; um pesadelo.

Há outro aspecto, no entanto, um aspecto simbólico. Não chego ao ponto de dizer que jogadores, técnicos e dirigentes estão preocupados com isto, ou sequer que têm consciência disto. Mas a Taça homenageia aqueles generais e líderes políticos que lutaram pela independência dos países latino-americanos: Artigas, Bolívar, San Martín, Sucre, O’Higgins... e D. Pedro I. Posso estar sendo injusto, mas pelo que sei esses líderes contribuíram em campo de batalha para a independência da Argentina, do Uruguai, da Venezuela, da Colômbia, da Bolívia, do Equador, do Peru, do Chile. Combateram no campo de batalha os exércitos espanhóis, e a maioria deles agiu de forma interligada, ajudando à libertação de países vizinhos. Já o Brasil libertou somente a si próprio. Sua maior façanha político-militar na América do Sul foi a destruição do Paraguai. Somos até hoje estrangeiros em nosso próprio continente. Um país imenso, poderoso, orgulhoso, que dá as costas aos demais e fita embevecido a Europa e a América do Norte. Somos o vizinho rico que todos os moleques da vizinhança querem derrotar.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

2548) A simples arte do assassinato (5.5.2011)



Volta e meia estou citando Raymond Chandler nesta coluna, não porque ele seja o melhor autor de histórias policiais, mas porque ele foi um dos que melhor refletiram sobre elas. Chandler trouxe para a pulp fiction recursos narrativos de alguns de seus escritores preferidos (Somerset Maugham, Joseph Conrad, etc.). Ele antipatizava com o romance policial clássico (não tinha Agatha Christie em boa conta) e queria escrever histórias rudes, violentas, como as de Dashiell Hammett, mas com um refinamento de estilo que Hammett não tinha. Chandler foi um cara que disse para si mesmo: Vou escrever histórias assim mas vou tratá-las como se fosse (sei lá) Dostoiévski ou Henry James. Ao invés de se nivelar pelo nível das histórias já existentes, ele pensou consigo, “custa nada puxar a qualidade disso pra cima?”. E puxou de tal maneira que hoje o padrão de qualidade é o dele. Como se diz por aí, ele “elevou o patamar”.

Curiosamente, Chandler não menosprezava o romance policial ou a pulp fiction do jeito que menosprezava seu trabalho de roteirista em Hollywood. Certamente porque neste último caso o que ele desprezava era a arrogância, a presunção, a mediocridade banhada a ouro. Ele disse uma vez: “Se meus livros fossem muito ruins eu não teria sido convidado para trabalhar em Hollywood; e se fossem muito bons eu não teria aceitado”. O desdém e o sarcasmo com que ele via a si mesmo eram, de certa forma, um atenuante para as coisas terríveis que ele dizia sobre o trabalho alheio.

Isto não quer dizer que Chandler fosse impecável. Era um escritor cuidadoso, mas seus enredos, como aliás qualquer enredo de romance “hard boiled” ou de “filme noir” (o que é praticamente a mesma coisa) se baseiam em fatos surpreendentes acontecendo sem aviso e sem explicação a um detetive, e ele tendo que resolver os problemas à medida que eles desabam sobre sua cabeça, sem saber que diabo de complicação é aquela (e o leitor está na mesma condição). Há um episódio famoso sobre a filmagem britânica de The Big Sleep. O pessoal do roteiro virou a noite tentando deslindar aquela série de crimes. Não conseguiu e ligou para a Califórnia: “Chandler, afinal, quem matou o motorista?” E ele: “Não faço a menor idéia”. O romance “hard boiled” tem crimes demais, criminosos demais, histórias entrelaçadas demais.

Uma coisa preciosa que Chandler, se não inventou, executou com perfeição, é a técnica do narrador na primeira pessoa cujos pensamentos o leitor não compartilha. Seu detetive, Philip Marlowe, pratica uma porção de ações aparentemente irrelevantes (“fiz isso, fiz aquilo”) e só daí a 50 páginas a gente fica sabendo o que ele tinha em mente naquele instante. Num momento assim, sentimos a mão firme do autor, que não se permite fundir-se com o narrador, e só nos revela dele o que lhe convém. Todo livro existe num triângulo: autor, personagem e leitor. Quando os dois primeiros se misturam demais, perigo à vista.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

2547) A decadência das novelas (4.5.2011)



(Lauro César Muniz)

Eu tenho uma relação ambivalente com as telenovelas. Por um lado, divirto-me muito em criticá-las. Desde a adolescência me acostumei a agir assim porque se pressupunha que um intelectual de verdade deveria ridicularizar as novelas. Depois que me tornei um intelectual de verdade (OK, há controvérsias), descobri que as novelas são em essência algo muito parecido com duas coisas que eu gostava: os folhetins do século 19 e a pulp fiction dos anos 1930. E surgiu daí o outro lado. Continuo a criticar as novelas, hoje, mas não mais porque considere o gênero um fenômeno imbecilizador das massas. Nada disso. Critico-as porque passei a achar que uma telenovela é um gênero cheíssimo de possibilidades criativas, mas que tem sido consistentemente mal aproveitado – por falta de inteligência e de talento, às vezes; outras vezes, por falta de ousadia e de coragem para fazer algo de novo e de diferente.

Sempre que me pedem exemplos de uma novela boa, dou logo três: Roque Santeiro de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, Vale tudo de Gilberto Braga e Renascer de Benedito Rui Barbosa. Muito diferentes entre si, cada uma dela possivelmente com alguns problemas de narrativa, de elenco, sei lá; mas cada uma delas mostrou que dentro das óbvias limitações do gênero é possível fazer coisas boas. Para não dizerem que só elogio as antigas, eu diria que A Favorita de João Emanuel Carneiro provavelmente foi tão boa quanto estas. Só não o afirmo pra valer porque não a acompanhei, mas vi numerosos capítulos salteados, e achei originais a idéia e a execução.

Li há pouco uma entrevista de Lauro César Muniz à Revista E, do SESC de São Paulo (abril 2011, número 10). Lauro César é o autor de clássicos da novela como O Casarão, Espelho Mágico, O Salvador da Pátria, e de minisséries como Chiquinha Gonzaga e Aquarela do Brasil. É, portanto, alguém de dentro do mundo das novelas, alguém sem preconceito com o gênero. Não é um intelectual que esnoba a TV, longe disso. Pois vejam o que LCM tem a dizer sobre o estado atual da telenovela.

“[A perda de qualidade da dramaturgia ocorreu] no momento da queda do muro de Berlim, com o fracasso total do socialismo. Quando esses fatos históricos ocorreram, em 1989, a sociedade tinha a ilusão, com o início da globalização, de que não haveria mais conflitos entre os países. Com a abertura política no Brasil, nós, que fazíamos uma dramaturgia política, passamos a ser mal vistos. Estava em voga a crônica da felicidade. A telenovela tornou-se pouco crítica aos costumes sociais. Hoje, encontro uma juventude que nega a história política do país. Estão preocupados apenas com o presente. Não os condeno, pois nasceram sob outra ótica”.

É irônico perceber que as novelas que ridicularizávamos nos anos 1970, feitas durante a ditadura, são imensamente mais politizadas e mais questionadoras do que as de hoje, na época da liberdade. Liberdade pra quê, cara pálida?

terça-feira, 3 de maio de 2011

2546) As lições do frevo (3.5.2011)



Ao invés de comparar o forró com o forró-de-plástico, no entanto, ganharíamos muito comparando-o com o frevo pernambucano. Os gangsters que estão derrotando o forró não têm força contra o frevo. Por que? Eu diria que, por variados motivos, o frevo é uma comunidade musical unida, solidária e forte há mais de um século. Surgiu no meio urbano, entre comunidades suburbanas ligadas por uma profissão. O frevo surgiu de um movimento ao mesmo tempo espontâneo e organizado, popular e erudito. Popular pela origem social (classes trabalhadoras), erudito pelo grau de educação musical necessário para praticá-lo. Todo músico de frevo lê partitura desde cedo, e aprendeu a ler partitura tocando todos os clássicos do frevo, que são talvez milhares. O forró, por seu lado, brotou de comunidades rurais, distanciadas entre si, sem grande mobilização política ou social, sem uma preparação teórica e prática. O músico de forró típico é um autodidata, que toca de ouvido, sem ter passado por uma escola, e trabalha por conta própria.

O frevo se beneficia do fato de que as orquestras de frevo contam com grande número de músicos, dezenas às vezes, enquanto o forró se estilhaça em milhares de pequenos trios tocando na base do “cada um por si e salve-se quem puder”. O forró só teria a ganhar se hoje (estou dizendo hoje mesmo, no dia de hoje) houver uma ação coordenada entre os que o praticam (e os que gostam dele à distância, como eu) para que escolas de sanfoneiros sejam criadas e interligadas, ensinando a tocar por música. Quem é capaz de tocar por música toca qualquer coisa, e ganha liberdade para tocar o que quiser. A diferença de oportunidades entre um músico excelente que só toca de ouvido e um músico excelente que lê partitura é a mesma que existe entre um poeta excelente que não sabe ler nem escrever e um poeta excelente alfabetizado. Não se discute talento (e aliás talento não se ensina, não se planta, não se fabrica). O que se discute é: criação de oportunidades profissionais.

A melhor maneira do poder público comprar essa briga é dar aos forrozeiros, ao longo das próximas décadas, uma estrutura semelhante à que os músicos de frevo criaram para si próprios ao longo de um século, e que faz com que o frevo nunca pare de evoluir e ao mesmo tempo que clássicos de 50 ou 70 anos atrás continuem a ser tocados, a ser conhecidos e amados por todos. Centros Culturais públicos e privados, escolas de música, conservatórios, entidades rurais e urbanas, colégios público e privados, todos podem se reunir e traçar um projeto de ação que inicie agora o ensino da música, com ênfase no forró. Para que os garotos aprendam a tocar através das músicas de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro ou Dominguinhos, assim como os músicos de frevo aprendem tocando os grandes frevos dos anos 1930 e 1940. Querem lutar? Organizem-se. Como se diz no Rio: enquanto o crime organizado fôr mesmo mais organizado do que os que o combatem, a luta está perdida.

domingo, 1 de maio de 2011

2545) Traduzir o obscuro (1.5.2011)




Numa entrevista recente ao jornal literário Rascunho, de Curitiba (março de 2011), o escritor e tradutor Marcelo Backes comentou, ao ser perguntado sobre o nível das traduções brasileiras em geral: 

"Acho que o nível da tradução tem melhorado, inclusive porque os tradutores mais críticos estão deixando de ser meros intérpretes das expectativas do leitor e, aos poucos, estão dando mais atenção à arte da obra original do que ao gosto do leitor da tradução. Deixam complicado o que está complicado, e mantêm poeticamente obscuro o que é poeticamente obscuro. (...) A simplificação da obra de arte não ajuda nada no sentido de torná-la mais compreensível”.

Um tradutor procura geralmente o equilíbrio entre tornar o texto inteligível ao leitor e respeitar o texto no que o texto tem. 

Um texto literário, não importa em que língua seja escrito, e não importa o talento de quem o escreveu, contém partes pouco compreensíveis, partes obscuras. Contém às vezes erros, ou trechos mal escritos. 

Por mais brilhante que seja um autor, ele não é brilhante o tempo inteiro, e sabemos que muitos grandes escritores têm um texto desleixado e cheio de furos (são grandes autores porque têm outras qualidades, em outros departamentos). 

É voz corrente no Brasil a galhofa de que os livros de Paulo Coelho são muito melhores traduzidos do que em português, porque lá fora os tradutores corrigem seus defeitos de redação e de estilo.

Corrigem mesmo? Se o fazem, que vergonha. Porque não cabe ao tradutor melhorar o texto alheio. Se a frase é cambaia, que seja traduzida por uma frase cambaia, de sentido equivalente, no idioma-alvo. Se é obscura, que permaneça obscura ao passar pelo filtro. 

É preciso mostrar ao leitor-alvo quem é o escritor, com suas pequenas incompetências, suas contradições, seus deslizes de ritmo, sua empáfia ou vulgaridade vocabular... Há autores que escrevem bem, mas pontuam mal. Outros não revisam o que escreveram. Se um autor repete um verbo dez vezes em dez linhas, o tradutor deve fazer o mesmo ou recorrer a sinônimos?

Muitas vezes me deparei com um parágrafo que se estendia por três ou quatro páginas. O editor aconselhava: “Divida. Faça um parágrafo novo de vinte em vinte linhas, pra clarear a página”. Eu dizia: “É um texto de 1880, publicado em jornal, naquele tempo os caras queriam aproveitar cada centímetro”. Ele dizia: “Sim, mas está sendo lido hoje. O leitor de hoje gosta de uma página com muitos parágrafos, uma página que respira.” 

Obedecer ao texto antigo ou ao leitor atual? Decisões assim são tomadas a cada passo da tradução de uma obra. Qualquer autor, por melhor que seja, tem pequenos cacoetes, hábitos ou defeitos que (num mundo ideal!) um tradutor deveria tentar reproduzir. 

Às vezes uma frase desmantelada em inglês nos sugere uma frase perfeita (e de sentido equivalente) em português. Devemos usá-la? Ou devemos traduzir as imperfeições da frase original?