quinta-feira, 31 de março de 2011

2518) Diplomacia, a hipocrisia do bem (31.3.2011)




Houve um jantar na embaixada da Ruritânia, tendo como convidados de honra o Príncipe e a Princesa da Maldívia. Naquela tarde, o Embaixador da Ruritânia tinha passado a tarde lendo um livro de auto-ajuda intitulado Ser Honesto... Ser Sincero... Ser Feliz!

Os casais se cumprimentaram diante dos flashes dos fotógrafos, e sentaram-se para o jantar. O Príncipe disse que era uma honra ser recebido pelos representantes de uma nação irmã. O Embaixador respondeu: “Fico muito grato, mas gostaria de dizer que o senhor tem mau hálito, e sua esposa é uma perua horrorosa”. 

A julgar pela crise diplomática e pela guerra subsequente entre as nações irmãs, a auto-ajuda não serve muito para situações específicas.

O fato é que a diplomacia é uma forma institucionalizada de hipocrisia, mas é uma hipocrisia do bem. Nem sempre dá para você ser sincero e honesto em tudo que diz. Não estou aqui desculpando os mentirosos de mau caráter nem os corruptos profissionais. Mas a vida real exige um jogo de cintura que não cabe em nenhuma prescrição rígida do tipo “Não mentirás”. 

Já li dezenas de entrevistas com diplomatas brasileiros ou estrangeiros relatando episódios delicados que viveram, desde declarações de guerra até bufê estragado. Um diplomata é (ou devia ser) um sujeito capaz de manter a tranquilidade, a rapidez de raciocínio, a cortesia e o bom humor nas situações mais espinhosas. Isto requer, muitas vezes, que para não agravar uma situação já de si tensa ou hostil, ele precise recorrer à mentira. 

Ou melhor, recorrer a certos modelos diluídos de mentira: o circunlóquio, o eufemismo, a elipse, a tautologia... Ou outros de origem mais popular: os panos quentes, o cerca-lourenço, a cara-de-pau, o agá, o migué, o drible de corpo...

Isso vale para a diplomacia internacional e para a do cotidiano. Você vai jantar pela primeira vez na casa de um colega de trabalho. A sopa está muito salgada? Você diz que está ótima, mas toma menos do que tomaria se estivesse ótima. Se for na casa de amigos mais próximos você se sente mais à vontade para dizer: “Eita, Fulana, carregasse a mão no sal! Inda bem que eu tenho pressão baixa!”, ou algo assim. 

Na dúvida, é sempre prudente não ferir os sentimentos alheios com uma verdade fora de hora.

A verdade fora de hora, e desnecessária, pode ser mais prejudicial do que uma mentira. Um dos gêneros literários onde isso é bem explorados é o romance policial, em que muitas vezes acontecem crimes ou tragédias devido ao comportamento de uma pessoa que insistiu em falar a verdade quando nada lhe custava dizer uma mentira inofensiva, e o fez por razões politicamente corretas, por personalismo, por mera estupidez.  

A mentira é condenável quando é dita para beneficiar quem a diz e prejudicar quem a ouve. Muitas vezes, entretanto, ela não traz nenhuma vantagem indevida para o mentiroso, e poupa de tal forma o ouvinte que nesses casos é perdoável mentir.





quarta-feira, 30 de março de 2011

2517) A epifania da mente (30.3.2011)



A mente humana funciona a pleno vapor no período do nascimento até os três ou quatro anos. Nessa época aprendemos a pensar, aprendemos a ver e a ouvir, aprendemos a entender, aprendemos a aprender. Adquirimos o conhecimento sensorial das coisas em volta e do nosso próprio corpo; adquirimos controle motor sobre nossos órgãos e membros; adquirimos a linguagem, a socialização, a distinção entre imaginação e realidade. Aprendemos o nomes e as funções de cada objeto ou pessoa, e ao mesmo tempo aprendemos que tipo de comportamento cada uma delas espera ou exige de nós. Depois dessa época, amigos, paramos de aprender. Vivemos no piloto automático, correndo atrás quando a barra pesa, tocando a bola no meio de campo quando o placar é favorável. Mas paramos de pensar.

Talvez seja isto o que distingue os cientistas e os artistas: são pessoas que não pararam de pensar. Claro que há exceções para tudo, mas a ciência e a arte são atividades em que se espera do sujeito que tenha idéias novas, idéias únicas e pessoais. Num certo sentido, são obrigados a permanecerem crianças a vida toda, ou a manter uma banda de sua cabeça pensando como criança. Vendo as coisas como se fosse pela primeira vez.

Às vezes o cientista vê algo que só está ali virtualmente. Galileu estava um dia olhando uma carruagem que passava devagar e imaginou um pingo de lama caindo no aro de uma das rodas da carruagem. Imaginou que à medida que a roda rodava o pingo de lama descrevia um círculo, mas como a carruagem avançava horizontalmente o traçado desse círculo avançava também: surgiu daí a ciclóide. Esta curvazinha invocada já tirou pontos de muitos vestibulandos que não tiveram o prazer de descobri-la por si mesmos e sentirem-se Deus por um segundo.

Conta-se também (Zsolt Harsaniy, A Vida de Galileu) que ele quando jovem foi desprezado por uma namorada e decidiu se matar, jogando-se ao rio. Debruçou na ponte e ficou vendo as coisas que passavam na correnteza. A flutuação de alguns objetos começou a lhe parecer diferente da flutuação de outros, e, como o marinheiro na “Descida ao Maelstrom” de Edgar Poe, ele percebeu uma lei matemática naquilo. Mandou a namorada pastar e correu pra casa para fazer os cálculos.

Alejandro Jodorowsky, numa entrevista à revista carioca Azougue, contou este episódio: “Darei um exemplo do que faz a poesia. Eu estava nessa época no Chile, era um adolescente, um garoto de uns 20 anos e era muito amigo de um psicanalista. E um dia ele me disse que acabara de passar algo incrível, porque, ele disse, você sabe que um trauma é algo desagradável, mas tenho um caso de alguém que se tornou louco devido a um pensamento poético que teve. Há um rio em Santiago, o Mapocho, e no poente ele se pôs a observar o rio. As águas do rio passam, passam... o reflexo das estrelas permanece. Ficou louco. Isso se deu porque era uma pessoa comum. O primeiro pensamento poético que teve tornou-o louco”.

terça-feira, 29 de março de 2011

2516) “Meu negócio é problema” (29.3.2011)



Li Trouble is my Business, de Raymond Chandler, que reúne alguns dos primeiros contos que ele publicou entre 1933, quando começou a colaborar nos pulp magazines de seu tempo, até 1939, quando publicou seu primeiro romance, The Big Sleep, que o tornou famoso. Chandler é um escritor pouco típico da literatura policial dos EUA, a começar pelo fato de que nunca foi um grande leitor do gênero. A Depressão o fez perder o emprego que tinha numa companhia petrolífera, e ele começou a escrever contos policiais, o que na época dava dinheiro. Entre 1930 e 1950 era possível viver de publicar contos em revistas como Black Mask, onde Chandler se tornou rapidamente um autor “da casa”.

Na introdução a este volume, escrita em 1950, Chandler afirma que a pulp fiction foi “uma espécie de literatura que, mesmo em seus momentos mais maneiristas e artificiais, fez a maior parte da ficção de sua época ter o sabor de um copo de consomê morno numa sala-de-chá cheia de solteironas”. Ele viveu numa terra-de-ninguém literária, esnobado por muitos intelectuais porque escrevia pulp fiction, e desprezado por parte da pulp fiction porque era um intelectual. Chandler criticava a visão curta dos críticos literários de seu tempo: “O crítico médio nunca reconhece um fenômeno literário quando ele acontece. Ele só o explica depois que ele se torna respeitável”. E cita “aquele tipo de esnobismo que aceita a Literatura de Entretenimento do Passado, mas somente a Literatura Iluminista (“the Literature of Enlightenment”) do Presente”.

Esta última crítica é interessante, porque é onde me enquadro como crítico. Gosto de pulp fiction, gosto de folhetins do século 19, mas não gosto de equivalente a isto hoje em dia, que é a novela de TV. (Na verdade até gosto, mas mil vezes menos que os outros exemplos.) Por que pensamos assim? Acho que, em parte, é porque a literatura de entretenimento do passado está meio esquecida, e saboreá-la é um prazer para poucos, ao passo que os folhetins de hoje, principalmente porque passamos do livro para a TV, nos incomodam pelo alarido ensurdecedor que provocam.

Imagino que é isso que Chandler chama de esnobismo: nossa recusa a entrar na onda, a gostar do que o grande público está consumindo com prazer. O que não queremos é nos deixar arrastar na maré popularesca do “todo mundo gosta”. Depois, esse sucesso meio fogo-de-palha desaparece no passado. (Quem lê, hoje, Eugene Sue ou Xavier de Montepin? Quem lê Perry Mason ou o Detetive Fantasma?) Esses autores que foram lidos por milhões levam somente uma ou duas gerações para desaparecer da memória. Quando são redescobertos e relidos, estão valendo pelo que valem como livros. Não há “hype” nem zum-zum-zum em torno do seu nome. Os que são realmente bons viram cult – passam a ser uma literatura de entretenimento inofensiva, aceita por quem, da literatura de hoje, cobra voos um pouco mais altos e volume um pouco mais baixo.

segunda-feira, 28 de março de 2011

2515) Contracapa de pendraive (27.3.2011)



(www.imagesavant.com)

& ciberneticamente não há muita diferença entre um cardume de peixes e uma revoada de pombos & por que será que as mulheres costumam esconder suas jóias mais preciosas no meio da lingerie? & pop: o barulho de mais uma bolha de sabão estourando para sempre & quando eu vejo esses moralistas que discursam e esbravejam entendo por que a melhor defesa é o ataque & aquela atriz já está chegando à idade em que pode fazer o papel da própria mãe & um paradoxo é como um ímã, só tem energia porque tem lados opostos & às vezes basta pensar um título e a gente já está com a história prontinha da silva & se nos fosse possível escolher, preferiríamos a imortalidade do corpo ou a da mente? & o capitalismo é daquele tipo de câncer que mata mas não dói & uma socialite anunciou que vai fazer greve de fama, passar um mês sem sair em tablóides & não sei pra quê enfeitar a sala com plantas, acho mais legal uma réplica de sarcófago & viajo de ônibus olhando aquelas pessoas na beira da estrada e sabendo que em outras vidas já fui cada uma delas & é a beleza das mulheres que nos atrai, mas o que nos prende a elas é o que acontece na hora H & para apagar um fogo não é preciso apagar cada graveto individualmente & nesses conflitos de rua, por que ao invés de gás lacrimogêneo não experimentam usar gás hilariante? & um raio nunca sabe onde vai cair morto & um paranóico que tinha medo de que seu quarto fosse invadido por tubarões & tradução literária é um jogo onde a gente ou empata ou perde, pois é antiético ganhar & cada vez que eu resolvo um problema sinto uma euforia como se tivesse resolvido todos, e para sempre & na fase inicial ninguém distingue uma grande chance de uma grande roubada & certos autores são como chacretes cinquentonas, vivem de aludir ao que já foram & a Lua é uma TV transmitindo a luz do Sol & uma montanha soterrada cujo pináculo ficou embaixo de uma rodovia & a religião é uma tentativa de preencher o vácuo do Universo começando pelas mentes humanas & uma cidade subterrânea protegida por uma floresta que é proibido desmatar & uma locomotiva em movimento perpétuo que produz novos vagões de tantos em tantos dias & todos somos telepatas, mas só nos instantes em que não estamos pensando nisso & todo homem depois dos 50 vira uma caricatura 3D de si mesmo & a essência do capitalismo é tornar possível comprar ou vender um dólar por mais ou por menos do que um dólar & a primeira vez a gente nunca esquece, mas também nunca deixa de comparar com a segunda & tudo bem, disse o rato, mas então quem vai pregar o chocalho no rabo dessa cobra? & um concurso de mísseis, onde quem se inscreve como concorrente aceita ser também um alvo & os desdentados herdarão a Terra & um livro de poesia em cada sala-de-espera de consultório, por que não? & tem gente que desenterra tesouros, tem gente que constrói uma choupana sobre o local e começa a sonhar &

sábado, 26 de março de 2011

2514) Uma nova forma de arte (26.3.2011)



Nos meus tempos de cineclubista, quando estudava a história do Cinema, eu tentava me colocar no lugar dos contemporâneos dos irmãos Lumière ou de Georges Méliès e imaginar o que eles, acostumados apenas à fotografia estática, sentiam diante daquela novidade: fotografias luminosas projetadas numa parede, e em movimento! E mais ainda depois dessa fase inicial, a fase em que essas fotografias luminosas em movimento começaram a contar histórias de cowboys, de detetives e bandidos, de lutas de espadas, de perseguições e aventuras. E mais adiante ainda, quando surgiram os primeiros grandes criadores que deram profundidade humana, psicológica, social e dramatúrgica àquelas histórias: Griffith, Chaplin, Fritz Lang, etc.

Hoje, cem anos depois, estamos testemunhando a criação de novas formas de arte que estão atravessando um momento parecido com o do cinema. E que, como o cinema, são artes desprezadas pelos intelectuais, porque são artes bastardas, uma espécie de diversões de circo ou de quermesse, coisas feitas para adolescentes iletrados, formas bárbaras de narrativa que se resumem a violência, historietas repetitivas, pouco cérebro, nenhuma cultura, nenhuma tradição... Bem, não vou enumerar as críticas, que são num tom muito parecido com o tom de cem anos atrás. Mas a verdade é que o que se dizia para esculhambar o cinema em 1911 não era muito diferente do que, em 2011, se diz para esculhambar os videogames.

Terminei a leitura de um livro bem informado e reflexivo sobre o assunto: Extra Lives – Why Videogames Matter de Tom Bissell (New York, Pantheon, 2010). Bissell é um escritor de 30-e-poucos anos, e em seu livro comenta em detalhe alguns dos seus jogos preferidos, comentando as vantagens e os defeitos de cada um. (Entre outros, ele fala de Grand Theft Auto, Mass Effect, Oblivion, Fallout, BioShock, Far Cry, Braid.) Ele tenta suprir a carência de crítica séria aos jogos. As revistas de jogos comentam cada jogo apenas no contexto dos demais jogos no mercado. Bissell tenta colocar os jogos no contexto geral da cultura, que envolve cinema, literatura, teatro. Diz ele: “Os críticos das revistas de jogos raramente perguntam: Este jogo se encaixa em que tradição estética? De que maneira o jogo faz com que eu me sinta, quando estou jogando? Quais as emoções que ele desperta, e essas emoções são apropriadas ao tema e à mecânica do jogo?”.

Bissell reconhece estar correndo um risco ao tentar ver nos videogames uma forma de arte, porque, de um modo geral, quem gosta de games não se interessa por Arte, e quem gosta de Arte menospreza os games. São duas culturas diferentes, porque os games (assim como o cinema) não surgiram num contexto “artístico” e sim no contexto de uma nova tecnologia de produção de imagens que rapidamente se converteu numa diversão popular e numa indústria lucrativa. A Arte talvez seja o próximo passo para os games, como foi para o cinema, cem anos atrás.

sexta-feira, 25 de março de 2011

2513) “Como funciona a ficção” (25.3.2011)



Foi publicado pela Companhia das Letras o livro Como funciona a ficção (“How fiction works”) de James Wood, em que ele comenta a literatura de ficção em capítulos como “Detalhe”, “Personagem”, “Uma breve história da consciência”, “Simpatia e complexidade”, “Linguagem”, “Diálogo”, etc. Seus exemplos são geralmente de autores clássicos (Flaubert, Henry James, Tolstoi, Joyce, etc.) mas também recorre a contemporâneos como V. S. Naipaul, Saul Bellow, Muriel Spark, José Saramago.

Este livrinho me foi muito útil (como leitor e como escritor), porque me fez ver coisas que eu nunca tinha visto, e me fez arrumar no juízo coisas que estavam dispersas e separadas. Ler ficção é interpretar o que está sendo dito, como está sendo dito, por quem está sendo dito, e por que está sendo dito assim. A literatura não é só um diálogo entre o autor e o leitor, é algo mais complexo. O diálogo se dá entre os personagens, entre o autor e cada personagem, entre o leitor, o autor e cada personagem. São consciências que se superpõem, e não faz mal se algumas delas (as dos personagens) são inexistentes, porque o objetivo da ficção (um dos) é justamente nos dar a possibilidade (ou a ilusão útil) de ver o funcionamento de outra mente por dentro, de ver uma pessoa pensando.

O Globo publicou uma entrevista de Wood no caderno “Prosa e Verso” de 12 de março (http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/) e ao lado uma crítica arrasadora de Flora Sussekind, que caiu sobre o livro com gosto de gás. Flora vê no livro uma “dimensão farsesca” e uma “reaplicação anacronizante e redutora (em geral, sem qualquer crédito) de categorias e perspectivas analíticas alheias”. Ela diz que Wood “procura deslizar com estilizada naturalidade, e sem maiores paradas reflexivas, pelas questões da narrativa e teoria da ficção que mal deixa virem à tona em seu texto”. E que nenhum dos processos de análise do texto que Wood aplica foi inventado por ele. Queixa-se de que ele simplifica e empobrece conceitos alheios e não dá o devido crédito aos seus criadores, que ela cita: Eric Auerbach, Chklovski, Wayne Booth, Ann Banfield, Genette, Roy Pascal, Wolfgang Iser, Roland Barthes, Mieke Bal, Dorrit Cohn...

Esta crítica me chamou a atenção porque Flora Sussekind é uma crítica competentíssima de quem já li numerosos ensaios e guardo com carinho o excelente livro O Cinematógrafo das Letras (1987) sobre as relações entre a literatura brasileira e a tecnologia. Sua crítica (por mais justificável que possa ser do ponto de vista acadêmico) me pareceu excessiva. O mundo acadêmico, pelo que sei, é um mundo de saber compartilhado, de instrumentos de análise que depois de criados tornam-se de uso corrente. (Que utilidade teria um instrumento teórico que só pudesse ser usado pelo seu criador?) Wood mostra como a ficção funciona; Sussekind me deu uma lista de nomes para que eu possa aprofundar este estudo. Agradeço a ambos – e recomendo o livro.

2512) Drummond: "Igreja" (24.3.2011)



Nelson Gonçalves cantou, num bolero famoso de Herivelto Martins e David Nasser: “Nas orações que eu faço / eu encontro os olhos teus... / Me deixa ao menos, por favor, pensar em Deus!”. Seria o caso de alguém investigar, na história universal da literatura, qual é a obsessão mais profusamente decantada pelos bardos, se é Deus ou a Mulher Amada. Páreo duro.

Um dos atributos divinos é a onipresença, e grande parte da nossa cultura parece corroborar essa idéia, inclusive na obra dos grandes agnósticos. Carlos Drummond, por exemplo, pertence àquela estirpe dos sujeitos que dizem não acreditar em Deus mas pensam nele o tempo todo, e falam nele sempre que alguém lhes dá uma deixa. Como Jorge Luís Borges, Luís Buñuel e outros notórios incréus, Drummond foi criado num ambiente cristão que lhe deixou marcas. Borges costumava dizer de si mesmo que era o contrário dos argentinos médios: “Acreditam em Deus mas não se interessam por ele, enquanto que eu me interesso e não acredito”. Quanto ao poeta de Itabira, dizia não acreditar, mas o não-acreditamento dele produziu alguns dos melhores poemas sobre Deus do nosso idioma.

Não é o caso de “Igreja”, mais um dos pequenos cartões postais religiosos de que está cheio seu livro de estréia, Alguma Poesia (1930), quando o autor ainda esgrimia contra a crença o florete delicado da ironia modernista. O poema é uma recatada desmistificação das pompas divinas, que na enumeração inicial ele reduz a “Tijolo / areia / andaime / água / tijolo...”, como que equacionando a arquitetura cristã com o frenesi urbanizador que estava, com ímpeto pouco espiritual, botando abaixo a Belo Horizonte de outrora (vide, no mesmo livro, os poemas “”Construção”, “A rua diferente”).

Sem a agressividade de um Augusto dos Anjos (cuja relação com Deus era a de um filho que é rebelde porque receia ser bastardo) e sem a doçura das dúvidas existenciais de um Vinícius, Drummond nessa fase limitava-se a reduzir a religião a uma lista de pequenos equívocos: “O padre que fala do inferno / sem nunca ter ido lá”, “um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida”. E ele resume o poema num pequeno quadrilátero verbal: “No adro ficou o ateu / no alto fica Deus”.

Na repressiva criação cristã, o sexo é um boneco de molas pronto para saltar por qualquer tampa que se abra. O poema faz algumas pequenas interferências linguísticas para reforçar essa desmistificação. Quando diz que “pernas de seda ajoelham mostrando geolhos”, a contaminação dos olhos pelos joelhos talvez ficasse melhor se ele tivesse mantido o “j” da palavra original. O sino da igreja, ao bater, ao invés de “Blim blão” ou outra onomatopéia qualquer (Guimarães Rosa não conseguia se decidir entre “Dão-Lalalão” e “Lão-dalalão”), ele reduz o repicar do sino a um “bem bão” bem mineiro. E no final os anjos entoam “quirieleisão”, grafia que sempre quis me sugerir, de maneira solerte, “queria eleição”... Será?

quarta-feira, 23 de março de 2011

2511) O bloqueio criativo (23.3.2011)




Reza a lenda que quando Charles Chaplin estava filmando Luzes da Cidade embatucou numa cena que não conseguia resolver. 

O filme era mudo. Ele queria fazer Carlitos conhecer uma moça cega que vendia flores na calçada, e precisava fazer com que ela pensasse que ele era rico. Era preciso bolar uma pequena cena que criasse (de preferência sem diálogos) esse pequeno equívoco do qual dependia o desenrolar da história. 

A equipe estava toda a postos, centenas de técnicos e atores, recebendo diárias, alimentação, etc. E Chaplin não filmava. Todo dia ficava andando no “set” pra lá e pra cá, sem conseguir ter uma idéia (e certamente se amaldiçoando por não ter contratado um roteirista). 

O prejuízo aumentava a cada dia. Até que ele teve a idéia de fazer os carros ficarem parados num sinal e Carlitos, que atravessava a rua, cortar caminho por dentro de uma limusine: ele abre a porta, entra, atravessa o banco traseiro, sai pela outra porta, bate a porta atrás de si e, na calçada, começa a conversar com a moça cega. Como ela identificou o som da porta da limusine, pensou que estava falando com o dono dela. E as filmagens foram retomadas em paz.

Li agora um relato de quando William Friedkin, arrogante e inseguro, começou a filmar O Exorcista

O primeiro plano no primeiro dia de filmagem era de um bacon fritando no fogão, e a câmara recuava para mostrar a cozinha. Só que o cenário tinha sido construído sem atentar para esse recuo. Não havia espaço para a câmara se afastar do fogão. 

Friedkin parou a filmagem, e mandou construir outro cenário. A cena foi feita, mas Friedkin implicou com o bacon, que ficava enrolado rapidamente ao ser frito. Reunião. Debate. Alguém observou que era um bacon com conservantes, e a filmagem parou de novo enquanto um contrarregra ia procurar bacon sem conservantes (coisa rara em 1972). 

Diz o autor do livro: “Friedkin avançava tão lentamente que quando um integrante da equipe voltou ao set após uma licença de três dias por doença, o diretor ainda estava na mesma tomada”.

Episódios assim são geralmente arquivados na pasta “Perfeccionismo”, mas há muitas outras coisas envolvidas. 

No caso de Chaplin, um certo pendor pelo improviso, gerado no tempo do cinema mudo, em que um roteiro era apenas um resumo de vinte ou trinta linhas, e tudo o mais era resolvido no momento da filmagem. Quando a produção cresce (e os problema colaterais se multiplicam), nem mesmo um gênio improvisa com a mesma fluência de antes. 

No caso de Friedkin, juntavam-se a arrogância cineclubística de querer fazer a imagem perfeita (sonho que os diretores pragmáticos e realistas abandonam bem depressinha) e a megalomania dos que querem que o mundo inteiro pare enquanto eles mudam de lugar um alfinete. 

Este é um cacoete de grandes diretores como Kubrick ou Welles que diretores menores mas ansiosos, como Friedkin, procuram imitar, porque acham que é ali que se oculta a genialidade deles. (Não é.)









terça-feira, 22 de março de 2011

2510) A arte de fazer ressalvas (22.3.2011)





Um leitor me escreveu certa vez questionando alguma afirmação que fiz. Não lembro bem o que era, mas era uma dessas generalizações que a gente faz no meio de um texto, quando quer poupar conversa e ir logo ao cerne da questão. 

Digamos que tenha sido algo como “as idéias da ficção científica são inventadas pela literatura e popularizadas pelo cinema”. Não se pode sintetizar uma situação tão complexa num frase sem aparar milhares de pequenas arestas contraditórias, sem ignorar ou suprimir milhares de minúsculos exemplos que contradizem a generalização.  

Tudo que a gente fala pressupõe esse arredondamento. Quando digo que tudo que os Beatles gravaram é bom estou dizendo a verdade. Mas é uma verdade imprecisa, porque tem umas 20 ou 30 faixas que aqui pra nós são muito bobinhas ou incompetentes, mas, fazer o quê? O outro lado da balança pesa muito mais, e é para lá que vai a frase.

Não dá para comentar qualquer assunto sem fazer generalizações. A generalização não é feita por estupidez ou preguiça, mas para ganhar tempo, estabelecer um fato e logo passar adiante para comentar suas consequências, sem precisar se deter para reconhecer as numerosas instâncias em que aquele fato não vigora.  

É muito chato ficar lendo um autor cheio de minúcias, cheio de pontas-de-dedos, que fica o tempo inteiro antevendo críticas e defendendo-se contra elas, ao invés de dizer logo o que veio dizer.

Por outro lado, fazer ressalvas é importante quando se está tratando com assuntos delicados, que podem mexer com a suscetibilidade alheia. A gente escreve “os atores brasileiros não sabem fazer cena de bêbado”, e recebe, além de uma notificação hostil do Sindicato dos Atores, uma chusma de emails onde pesquisadores especializados nos apontam numerosas cenas que (para o gosto deles) estão ótimas. Melhor dizer: “Em geral, os atores...” 

Eu entendo. Se alguém disser algo generalizante e preconceituoso como “Todo paraibano é imbecil”, escreverei ao jornal uma carta de protesto, dizendo: “Mentira! Olhe o preconceito! Todos, menos eu!”.

Um famoso qualquer, acho que foi Goethe, afirmou certa vez na introdução de um dos seus livros algo como (não tenho o texto, estou parafraseando): 

“Peço ao leitor que não leve excessivamente ao pé da letra cada frase que ler neste livro. Estou fazendo afirmativas que, todas elas, admitem ressalvas e exceções; além disso, estou dando opiniões pessoais que de modo algum quero impor como verdades absolutas. Acontece que ficaria muito chato ler um livro no qual o autor está, em cada linha repetindo expressões como ‘geralmente’, ‘em grande parte dos casos’, ‘parece que’, ‘eu acho que’, ‘minha opinião é que’, e assim por diante. Portanto, sempre que se deparar com algo que parece questionável ou soa magisterial, coloque antes desse trecho alguma das expressões acima, ou outra equivalente. Foi nesse tom que a frase foi pensada e escrita.” 

E nada mais direi, nem me seja perguntado.



("Borges", de Adolfo Bioy Casares)

domingo, 20 de março de 2011

2509) A Seita das Carrascas (20.3.2011)



Suponhamos que num reino medieval foi instituída uma pena de morte diferente. Ali, os executores públicos tinham sido uma casta abominada, sinônimo de crueldade e opróbrio. O fato de serem recrutados entre ex-guerreiros e ex-mercenários lhes tisnava a reputação. A Rainha teve a ideia de convocar, entre as sacerdotisas da corte, um contingente de noviças para assumir essas funções. Deu-lhes treinamento de artes marciais e de esgrima, além de cursos em jurisprudência e ética. O intuito da soberana era que a pena de morte deixasse de ser uma execução brutal e se transformasse num processo educativo, em que o condenado tivesse uma última chance de elevação espiritual.

Proferida a sentença, era o condenado transferido para uma cela onde, sob forte vigilância, deveria ficar preso durante os últimos meses antes da execução. A Irmandade escolhia então a Executora a quem caberia guiá-lo durante seu percurso final. Seu primeiro papel seria o de Confessora, quando, em visitas diárias, ajudaria o preso a narrar sua história e a se libertar do seu fardo de culpas. Em seguida, assumiria a função de Educadora, explicando-lhe a letra e espírito das leis, a natureza dos seus crimes, a necessidade de expiá-los. Em seguida, quando o condenado fosse julgado apto, ela seria sua Orientadora, sugerindo-lhe normas de conduta moral a serem adotadas em sua próxima reencarnação. E no dia aprazado ela seria enfim a Executora. Diante da congregação reunida, aos primeiros raios do sol no amanhecer, ele subiria ao patíbulo, pousaria a cabeça sobre o cepo e ela, trajando as vestes rituais, ergueria com as duas mãos a pesada lâmina e libertaria sua alma.

A plebe, que mal compreendia as nuances de funções tão diferenciadas, as chamava de Carrascas, e afastava-se à sua passagem quando elas, sempre em dupla, cruzavam a praça ou percorriam o mercado, trajando véus de musselina por sobre a cota de malha que lhes protegia o torso, e conduzindo espadas leves e mortais à cinta. Eram muitas as histórias que se contavam sobre o que ocorria por trás dos muros da prisão. Histórias de como, além de instrutoras espirituais, elas também serviam aos condenados como objetos de prazer, para o castigo adicional de lembrar-lhes os deleites que estavam a ponto de perder para sempre. Histórias de como criminosos empedernidos eram manietados à cadeira durante as visitas, sendo obrigados a ouvi-las e vê-las durante intermináveis sessões. Histórias de paixões violentas surgidas entre uma Executora e um Condenado, e que, descobertas a tempo, resultaram na execução simultânea de ambos. Histórias de como homens transgrediam propositalmente as leis para terem direito a uma Carrasca. Histórias de como esposas entravam para a Ordem e maridos tornavam-se criminosos, a fim de se reencontrarem num outro patamar de direitos e deveres, no qual o fio da espada lhes vedava o direito à mentira, à pusilanimidade, à tergiversação.

sábado, 19 de março de 2011

2508) A jogabilidade (19.3.2011)



(Shadow of the Colossus)

Certos neologismos são meio intragáveis, mas correspondem a uma noção tão nova que os perdoo. A palavra “jogabilidade”, tão associada aos videogames, surge a toda hora nas resenhas. É de certa forma o primeiro conceito importante surgido a partir dos jogos eletrônicos. Esses jogos sempre são analisados e avaliados através de conceitos herdados da literatura (personagens, enredo, suspense, diálogos, etc.) ou do cinema (textura visual, enquadramentos, movimentos de câmara, câmara subjetiva, ângulos, etc.). “Jogabilidade” não existe em nenhum dos dois, se bem que possamos (em retrospecto) enxergá-lo em embrião em outras formas de arte. Toda forma de arte é interativa, depende em certa medida da interferência ou da complementação mental do usuário. Os games se diferenciam pelo fato de fazerem disso o seu objetivo, a sua essência.

A jogabilidade de um jogo diz respeito, por exemplo, à facilidade de jogar. O jogo deve ser fácil o bastante para ser acessível, mas deve também oferecer dificuldades e desafios. Outros aspecto da jogabilidade é o que em inglês se chama “responsiveness”, e que é a rapidez e a clareza da reação do jogo às ações do jogador. O jogador precisa sentir firmeza no jogo, precisa saber o que acontecerá sempre que ele fizer tal-ou-tal coisa em tal-ou-tal circunstância. Jogabilidade também implica ritmo, andamento; há certos jogos que são de uma atividade frenética (fuzilar zumbis, p. ex.) e outros que requerem do jogador que tenha paciência, capacidade de espera ou disposição para ficar procurando algo até achar.

Jogabilidade implica também coerência. Todo jogo tem regras. Se não tem regras não é jogo, é Dadaísmo recreativo. Existem as regras que são explicadas logo no início e outras que são assimiladas ao longo da atividade. Quem joga games aprende desde cedo a, numa situação difícil (preso num quarto, p. ex.), sair tocando em cada objeto em volta e vendo como ele reage. Um deles vai se revelar útil para fugir dali. O jogo é considerado incoerente quando frustra de maneira desordenada essas expectativas do jogador.

Videogames são uma forma de arte? Provavelmente, porque nada nos obriga a considerar arte apenas o que é considerado assim há mil anos. O simples fato de ser mais uma encarnação da Arte da Narrativa (como a literatura, o teatro, o cinema, os quadrinhos) lhe dá a possibilidade de produzir obras de Arte com A maiúsculo (seja isso o que fôr). Não faz sentido dizer que um videogame nunca terá a profundidade das obras de Tolstoi ou Beethoven; é o mesmo que dizer que o que eles fizeram não tem jogabilidade. A jogabilidade existe em função da natureza do jogo. Se é um jogo de ação e aventura, deve existir em função da ação e aventura. Se é um jogo de mistério, idem. Se é um jogo de estratégia, de gerenciamento, deve ser jogável em função disso. Um jogo propõe uma experiência, e tem boa jogabilidade quando a experiência é vista pelo jogador como desafiante, prazerosa e enriquecedora.

sexta-feira, 18 de março de 2011

2507) O deserto dos mitos (18.3.2011)




A escritora paulistana Márcia Denser anuncia em sua coluna estar preparando um livro intitulado Politicamente Incorretos, em que comenta alguns autores com esse temperamento iconoclasta. Um deles é Oswald de Andrade, que ela vai comentando e a certa altura diz, num comentário lateral: “Paulistano é a única criatura deste planeta que não fica louvando a própria terra, algo unânime em todas as partes do mundo, de Belo Horizonte a Pago-Pago”. De fato, todo mundo ama com fé e orgulho a “terra em que nasceste”, mas os paulistanos parecem fazê-lo com um amor ácido, hiper-crítico e pouco louvaminheiro. Só quem elogia São Paulo de peito aberto e sem ressalvas são políticos em campanha ou os publicitários por eles contratados. No mais, o paulistano é antes de tudo um autocrítico, um sarcasta profissional.

Peguem o próprio Oswald, por exemplo. Sua melhor obra em prosa (pra mim) é o díptico Memórias Sentimentais de João Miramar / Serafim Ponte Grande, dois livros que compõem um só, como os poemas de Homero. São Paulo emerge dali como Los Angeles emerge dos livros de Raymond Chandler. O simples fato de sobreviver a tal devastação é prova de sua grandeza. Os escritores paulistanos que a louvam não a tratam como um paraíso perdido na infância, mas como um rito de passagem brutal a que conseguiram sobreviver. A paisagem de cimento cinzento e úmido de José Agrippino de Paula (Lugar Público) e a megalópole semifuturista de Ignácio de Loyola Brandão (Não Verás País nenhum) são dois retratos fantásticos desse inferno-de-Dante de onde não se escapa.

É fácil louvar a “casinha pequenina” em que nascemos, o sitiozinho onde fomos felizes por entre o gado e os pés de algodão. É fácil celebrar as cidadezinhas-natais do interior, praça, coreto, igrejinha. Todo artista que tem origem remota se sente poeticamente à vontade para decantar seus símbolos da inocência primordial, ainda mais quando os considera paraísos perdidos. Mas como louvar o exílio urbano? Que poesia existe nos viadutos cobertos de pichações, no lixo dos becos, nas cracolândias que se multiplicam? Márcia Denser tem razão quando vê nos paulistanos (nem todos, decerto) essa dificuldade em mitificar a si próprios e a suas origens.

Existem alguma arte saudosista na Paulicéia, por suposto. Saudosistas existem em todo lugar, mas é justamente por essa lei da natureza que é obrigatório o aparecimento de alguns deles entre o Brás, o Bexiga e a Barrafunda. Sempre haverá um poeta celebrando a saudade do lampião de gás, ou um músico tecendo loas aos vendedores de amendoim torrado. Mas o paulistano que louva São Paulo louva a São Paulo de seu agora, não a de um passado distante. O paulistano é como um migrante que já nasceu num vagão do trem; está se lixando para a fazendola de onde vieram os antepassados, é o trem que ele traz como referência, e esse trem, sempre em movimento, é para ele passado, presente e futuro.

quinta-feira, 17 de março de 2011

2506) Para compor uma canção (17.3.2011)




Reza a lenda que anos atrás encontraram-se num café de Paris os dois maiores poetas do rock, Bob Dylan e Leonard Cohen. (Existem outros igualmente grandes: Tom Waits, Lou Reed, John Lennon... Mas quando a gente conta uma historieta é bom fazer de conta que o mundo em volta não existe.)

Os dois trocaram impressões sobre o modo de compor de cada um. Dylan, que em seus shows já cantou “Hallellujah”, perguntou a Cohen quanto tempo ele tinha levado para escrever a canção. Cohen disse que a escreveu em cerca de dois anos, e Dylan quase caiu da cadeira.

Depois foi a vez de Cohen elogiar “I and I”, do álbum Infidels que Dylan tinha acabado de lançar; quanto tempo levou para compô-la? Dylan respondeu: “Quinze minutos”, e foi a vez de Cohen quase cair da cadeira.

Um leitor que não goste muito de Cohen pode ver nisso uma prova de que Dylan é um gênio e Cohen um pobre coitado que leva anos para fazer o que o outro faz num piscar de olhos. Em contrapartida, alguém também pode achar que Cohen é um artesão cuidadoso e que as canções de Dylan são feitas “nas coxas”.

Na verdade, o tempo gasto para produzir uma canção não é, por si só, indício de talento ou de falta dele. Mostra apenas que existem temperamentos criativos diferentes. E até momentos diferentes, num mesmo compositor.

E ainda assim esses cálculos não devem ser levados tão ao pé da letra. Se Fulano diz que levou dois anos para fazer uma música isto não significa dois anos de trabalho ininterrupto. Ele provavelmente está calculando o período desde a finalização do primeiro trecho (que pode ser a mera melodia sem letra, ou então algumas linhas da letra final) até o momento em que deu a música por pronta.

O tempo total de trabalho, ao longo desses dois anos, pode ter sido de apenas algumas horas. Isso é normal no processo criativo. A gente faz um pedaço, guarda. Meses depois se lembra, faz outro pedacinho, guarda de novo. Dizem que o recorde desse processo são os vinte anos que Dorival Caymmi levou para considerar pronta a valsa “Das Rosas”. (E pelo resultado valeu cada dia.)

Segundo Zuza Homem de Mello (A Canção no Tempo), Gilberto Gil compôs “Super-Homem – A Canção” em uma hora, e Caetano Veloso fez “Sampa” em poucos minutos, pegando morcego, aliás, na melodia de “Ronda”, de Paulo Vanzolini. (Atenção, estou falando em pegar morcego, não em plágio.)

Certas idéias surgem com tal originalidade e nitidez que são capazes de gerar em pouquíssimo tempo uma obra complexa. Dylan compôs “Sad-eyed Lady of the Lowlands” no estúdio, ao longo de várias horas, enquanto os músicos contratados, que mal o conheciam, jogavam baralho na sala ao lado. A versão gravada em Blonde on Blonde, sem ensaio, é a primeiríssima vez em que a canção foi tocada do começo ao fim, inclusive pelo autor.

Cada música tem seu tempo de maturação, e isso depende muito do ritmo mental de quem a produz. Nada tem a ver com o talento dele ou com a qualidade do produto final.





quarta-feira, 16 de março de 2011

2505) Medo de alma (16.3.2011)



Por que temos medo de alma do outro mundo? Pergunta que todo psicanalista deveria fazer aos clientes. Pouparia tempo e esforço aos dois. Uma réplica muito frequente seria: “E quem lhe disse que eu sequer acredito na existência delas?”. Diante do que, caberia ao doutor perguntar: “Por que não acredita?”. Encurralado por essa pergunta, eu, no divã, diria algo como: “Porque acredito que nós não temos alma. Somos apenas um corpo.” E ele: “Quer falar sobre o seu corpo?” E aí começaria a desenrolar o fio freudiano que conduz ao minotauro.

São várias as razões para ter medo. 1) Que a alma nos leve para o outro mundo. 2) Que ela nos demonstre (desmoralizando-nos) que o outro mundo existe, sim. 3) Que pelo fato de estar no mundo transcendental ela tenha tido acesso a uma versão resumida da Onisciência Divina e saiba uma porção de coisas que fizemos e pensamos. 4) Que ela prove, ao provar a existência da alma, que o corpo, “este excelente, completo e confortável corpo” (Drummond), não passa de ilusão; 5) Que o contato com algo que não existe prove simplesmente que você ficou doido. (Vide o argumento do cara que não viajava de avião: “Não tenho medo de que o avião caia. Tenho medo de morrer de medo.”).

Não: as “almas do outro mundo” pertencem a uma categoria, os corpos deste mundo a outra. As almas são projeções feitas por nós mesmos, e é o cacoete religioso que nos faz dar-lhes uma origem sobrenatural. Pergunte, a qualquer sujeito que já viu uma alma do outro mundo, como era a aparência dela. Ele dirá algo como: “Era meu avô, juro! Reconheci a barba branca dele, o rosto quadrado, o chapéu que usava... Estava com um casaco escuro, de bengala, parado perto da escada do porão”. Ou então: “Vi a alma da antiga dona da minha casa! Estava segurando uma vela acesa na mão, com um vestido do século 18, um xale branco...”

Quem melhor equacionou essa charada metafísica foi Rudyard Kipling no seu conto “O Riquixá Fantasma” (1888). Nele, o protagonista vive assediado amorosamente por uma mulher que não larga do seu pé, e vive no seu riquixá (uma espécie de carroça indiana) a assediá-lo. A mulher morre. Tempos depois, ele vai andando na rua e vê a morta, no mesmo riquixá, ainda a persegui-lo. E ele se pergunta: “Peraí... eu estou vendo a alma dela... mas o riquixá também tinha uma alma?!”.

É curioso que, quando vemos a “alma” de nossa bisavó ou de um escravo que morreu no engenho, essas almas estejam sempre vestidas, e nunca nuas. Se o que vemos fosse de fato a projeção visível de sua alma imortal, essa projeção deveria se deter nos limites do corpo biológico do falecido, porque a alma corresponde ao corpo. Não existem a alma do paletó, a alma do chapéu, a alma do colete, a alma do vestido, a alma dos sapatos... Não, minha gente. Se o fantasma aparecer vestido, é mera projeção alucinatória do nosso inconsciente. Agora, se a alma de Marilyn Monroe aparecer nua em pelo na minha frente... eu ajoelho e rezo.

terça-feira, 15 de março de 2011

2504) “O Besouro Verde” (15.3.2011)



Por tédio e por desfastio, topei assistir o mais novo filme de super-herói em cartaz nos bairros de Hollywood, essa rede urbana descontínua que se prolonga até os shopping-centers das cidades brasileiras. Cinema de shopping é algo tão norte-americano que em breve estarão dispensando as legendas, cobrando a pipoca em dólar e exigindo visto. E, por outro lado, não existe nada tão visceralmente norte-americano quanto o conceito de super-herói, o herói cheio de poderes sobrenaturais (Superman, Homem Tocha, Mr. Manhattan, etc.) ou tecnológicos (Batman, Wolverine, etc.). Neste sentido, os Estados Unidos vieram a produzir o mais complexo e impressionante panteão heróico dos tempos modernos, num delírio coletivo que se equipara ao da mitologia grega, mitologia nórdica e outras menos conhecidas (por mim).

O Besouro Verde não é um bom filme. Não porque tenha grandes defeitos, apenas porque não tem qualidades. Suas qualidades são as mesmas que poderiam ser encontradas num gibi de 2 reais. Não é preciso gastar tanto dinheiro para colocá-las na tela. (Segundo o IMDb, o filme custou 120 milhões de dólares.) As qualidades são uma imageria bizarra e aquela sensação de um sonho-em-forma-de-desenho-animado, que torna assistível qualquer filme de super-heróis, desde os que são bons (Watchmen, Batman Begins, etc.) até os que são totalmente irrelevantes e descartáveis, como este. Gastarei agora algumas linhas criticando o que sempre critico: as perseguições em automóveis, as explosões, as brigas de socos destruindo a mobília, a corrida contra o relógio para evitar que o mundo se acabe... O gênero se construiu em cima dessas besteiras; é pegar ou largar. Até os seus bons filmes precisam mostrar isso, senão perdem metade do público e dão prejuízo.

Fui ver o filme porque foi dirigido (ou pelo menos assinado) por Michel Gondry, que fez um dos mais intrincados e criativos filmes de FC dos últimos anos (Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, de 2004, com Jim Carey). É como ficar sabendo que um mesmo sujeito dirigiu O Show de Truman e Uma Noite no Museu. O Besouro Verde não é um filme de Gondry; ao que tudo indica é um filme de Seth Rogen, que escreve o roteiro e interpreta o Besouro. Rogen é um desses adolescentes de 30 anos que veem o cinema como um imenso PlayStation onde podem se divertir à vontade. Seu roteiro e sua interpretação se sobrepõem a tudo. O filme é um “buddy movie”, um filme sobre dois carinhas imaturos que enfrentam inimigos, brigam, explodem metade da cidade, salvam a vida um do outro de dez em dez minutos; e ao mesmo tempo se comportam como um casal homossexual, cheios de ciúmes, de arrufos, de crises de possessividade e de “não-falo-mais-com-você”. O Besouro Verde e Kato (interpretado por Jay Chou) são mais um casal Batman & Robin que poderia dizer (como disse Antonio Carlos Magalhães de sua convivência com Fernando Henrique Cardoso): “entre nós houve tudo, menos sexo”.

domingo, 13 de março de 2011

2503) Um quarto só para si (13.3.2011)




(o gabinete de trabalho de J. G. Ballard)

Maurice Leblanc é o criador de Arsène Lupin, o ladrão de casaca, uma mistura de gatuno, espião, detetive, herói de folhetim, etc. Lupin está na mesma galeria de outros personagens que formataram a cultura de massas do século 20: Rocambole, Fantomas, The Shadow, Sherlock Holmes, Raffles, Doc Savage.

Não posso dizer que tenho as obras completas de Leblanc, mas tenho os 30 e poucos volumes lançados no Brasil pela saudosa Editora Vecchi, além da extensa biografia de Jacques Derouard (Séguier, 1989).

Leblanc não escreveu apenas romances policiais, mas também ficção científica (O Enigma dos Três Olhos, 1919) e novelas românticas e de costumes. Pertence a este grupo o volume de contos A Carta Anônima (“Le robe d’écailles rose”), “aventuras sentimentais e trágicas”, onde aparece o conto “Les fleurs mortes”, de 1911.

Neste conto, a sra. Jeanne Damoin começa a suspeitar que seu marido, Raul, tem uma amante. Os dois moram no 5o. andar de um prédio em Paris, e ela começa a perceber algumas ausências inexplicáveis do marido. Raul, que é escritor, reclama às vezes do excessivo carinho e da agitada vida social da esposa.

Jeanne acredita que está sendo traída; encontra no chaveiro do marido uma chave desconhecida (e faz uma cópia para si, que não é besta); e descobre através da “concierge” que um apartamento no 4o. andar do seu prédio foi alugado recentemente.

Assaltada por fúria e por presságios, ela aproveita uma ausência de Raul e entra no apartamento do quarto andar. Descobre com surpresa que o apartamento está vazio e empoeirado, com exceção de um quarto, cuja janela se abre para o céu. O quarto está limpo e mostra sinais de uso frequente; e tem apenas uma poltrona, uma cadeira e uma escrivaninha onde ela encontra um cinzeiro cheio de pontas de cigarro, e pilhas de papéis manuscritos, com a letra do marido. Num jarro, flores mortas, murchas. Jeanne não diz nada, compra flores novas e as coloca no jarro; e o casal nunca toca no assunto.

Este conto precede o famoso ensaio de Virginia Woolf Um quarto só para si (“A room of one’s own”, 1928), em que a autora defende a literatura feminina explicando que uma mulher, para ser escritora, precisa de dinheiro e privacidade. Precisa, acima de tudo, de um aposento em que não seja interrompida a todo instante para resolver querelas domésticas, familiares, etc.

Woolf parte do princípio de que os homens dispõem disto, mas a verdade é que nem sempre é assim. Por mais patriarcal que seja o mundo, sempre há homens que pedem aos céus (mesmo quando agnósticos) um quarto só para si, um lugar onde não sejam interrompidos pelos carinhos da esposa, pelos recados da empregada, pelas peraltices dos pimpolhos, pela cordialidade dos vizinhos, pelo Facebook, pelo Twitter.

Homens e mulheres podem ser adversários; escritores de qualquer sexo são parceiros de destino, e sabem do que um(a) escritor(a) realmente precisa: dinheiro para as despesas e um quarto só para si.






sábado, 12 de março de 2011

2502) A bazuca (12.3.2011)



Chegou-me pelo Correio um formulário impresso, pedindo-me para ir retirar a encomenda na agência, munido de um documento de identidade. 

Fui lá, entreguei o papel no balcão, o cara entrou, demorou e daí a pouco voltaram ele e outro puxando uma espécie de caixote comprido, com dois metros de altura, que parecia conter um poste de luz. Conferi o endereço: era mesmo para mim. Conferi o remetente: uma sigla incompreensível, com endereço numa cidade obscura, nos Estados Unidos. Como tenho amigos músicos por lá, pensei que se tratasse, sei lá, de algum instrumento, um rack de CDs... Mas, pra mim?! Cara de perplexidade. 

Com a ajuda dos funcionários do Correio levei a estrovenga até a rua, consegui enfiá-la dentro de um táxi e voltei para casa. Abri o caixote na sala e me deparei com a bazuca. 

Claro que soube logo do que se tratava, vejo filmes de guerra desde garoto, já vi centenas de vezes o sujeito pegando aquele cano largo e comprido, apoiando-o no ombro, agarrando a empunhadura, fechando o olho esquerdo para fazer mira, apertando o gatilho e disparando aquele morteiro mortífero que faz uma trajetória chispante pelo espaço e vai explodir em chamas lá na frente, a algumas dezenas de metros. 

Que era uma bazuca, não havia a menor dúvida; vinha inclusive com meia dúzia de projéteis, acondicionados de forma engenhosa nos espaços vazios da embalagem. Mas, quem a mandou? E por que para mim? 

Procurei no Google, sem sucesso, pistas que me levassem ao remetente: a cidadezinha alegada (Junction, em Nebraska) não existia. Havia um manual de instruções explicando como finalizar a montagem (alguma peças essenciais, por precaução, vinham um saco plástico).  Montei o parangolé, só por curiosidade. Deixei-a na sala, pronta para o uso, já com um morteiro na agulha. 

Isto já faz um mês e começo a me impacientar. Nada no mundo acontece de graça, não é mesmo? Se alguém me mandou uma coisa tão cara e trabalhosa, foi com alguma intenção. Se mandou para mim, ou é porque me conhece, ou porque acha que sou alguém que pode fazer bom uso. O instrumento é de excelente qualidade, novinho em folha. Não usá-lo seria, por um lado, um desperdício de dinheiro e de trabalho industrial; por outro, o desperdício da chance de uma nova experiência. 

Sou daquele tipo de sujeito que não vive à procura de oportunidades, mas que também não as recusa quando elas lhe caem no colo. Nada acontece de graça. 

Da minha janela, tenho uma paisagem variada. Uma quadra cimentada onde crianças brincam. Um campinho de pelada onde sujeito grisalhos e barrigudos jogam futebol. Um boteco sempre rodeado de mesas e cadeiras de plástico, com rodas de samba, etc. Ruas de trânsito intenso. Apartamentos que se iluminam à noite, cheios de gente atarefada e desconhecida. 

Nada acontece de graça. Se isso veio parar nas minhas mãos é por algum motivo, e alguma coisa me diz que o acesso à resposta está no dedo indicador de minha mão direita.






sexta-feira, 11 de março de 2011

2501) Drummond: poemas da política (11.3.2011)




O livro de estréia de Carlos Drummond, Alguma Poesia (1930) tem alguns poemas cujo tema é a política; e tem alguns poemas que eu chamo de não-poemas, porque não passam daquelas brincadeirinhas modernistas para apoquentar os conservadores. 

Toda vanguarda é feita por jovens, e por jovens que acreditam que estão mudando o mundo. Daí que eles demonstrem uma certa arrogância, um desdém pelos que pensam diferente, e uma tendência a fazer piadas provocativas não pelo teor da piada em si, mas para se divertir com o desconforto que a piada provoca nos destinatários. 

Acho que estou errado em chamar esses textinhos de não-poemas; talvez devesse chamá-los de “poemas casca-de-banana”.

Não vejo outra maneira de interpretar esse primor de bobagem que Drummond intitulou “Política Literária”, e que diz, textualmente: 

O poeta municipal 
discute com o poeta estadual 
qual deles é capaz de bater o poeta federal. 
Enquanto isso o poeta federal 
tira ouro do nariz. 

O poema é dedicado a Manuel Bandeira, e é certamente uma alusão ao fato de que a imensa maioria dos poetas brasileiros minimamente significativos, naquele tempo, era composta de funcionários públicos, que trabalhavam para algum órgão dos três poderes.

O texto sugere a rivalidade (talvez real e agastada; talvez uma mera suposição lúdica de rivalidade) entre três amigos, poetas, com empregos diferentes. Não é difícil imaginar um empregado do prefeito indo tomar cafezinho no escritório de um empregado do governador e ficarem os dois por ali, mexendo o açúcar e destilando o veneno contra um colega mais bem aquinhoado que habita uma mesa de mogno do Palácio, na Capital Federal. 

É significativo também o uso da expressão “tirar ouro do nariz”, que exprime menosprezo e indiferença, e literalmente significa tirar meleca (ou tirar catôta, como dizemos na Paraíba). Existe aí uma sugestão freudiana (ouro = meleca = fezes) que não deixa de significar algo mais redondo abarcando as vidinhas dos três personagens. Teu emprego público, tão importante? Porcaria. Tua poesia, tão preciosa? Porcaria.

Essa correntezinha de invejas ao longo de uma cadeia hierárquica não passa sem me lembrar também o famoso soneto de Machado em que um vagalume inveja uma estrela, uma estrela inveja a lua, a lua inveja o sol, e o sol se queixa: “Por que não nasci eu um simples vagalume?”. 

Leio numa pequena cronologia biográfica que Drummond, quando publicou Alguma Poesia, trabalhava na Secretaria de Educação estadual, e só se tornaria “poeta federal” em 1934, ao acompanhar Gustavo Capanema quando este foi nomeado Ministro, levando o poeta consigo para o Rio, como chefe de gabinete.  

É de se supor, então, que fosse ele o poeta estadual. Seria Bandeira o municipal? Sua biografia no saite da ABL registra que de 1927 a 1929 ele trabalhou no Recife como “fiscal de bancas examinadoras de preparatórios”. 

É típico dos poetas exercerem, para sobreviver, as menos poéticas das funções.






quinta-feira, 10 de março de 2011

2500) A tradução sonora (10.3.2011)





(ilustração: Wolstenholme)



Traduzir literatura é como fazer caricatura. 

Como é impossível reproduzir o original (como reproduzir, com nanquim preto sobre papel branco, um rosto em três dimensões, a cores, de carne e osso, cheios de nuances incapturáveis?), o caricaturista precisa identificar alguns detalhes que “saltam aos olhos” e passá-los para o papel de modo que qualquer leitor olhe aquilo e numa fração de segundo diga: “É Fulano de Tal! Puxa, está igualzinho!”. 

Não, não está igualzinho, perderam-se inúmeros aspectos do rosto e da expressão de Fulano. Mas alguns, essenciais, foram trazidos para o papel de modo reconhecível.

Mesma coisa é traduzir qualquer texto que vá além do “the book is on the table”. E um aspecto que muitas vezes se desdenha é traduzir o som, além do sentido. Porque a expressão literária é feita das duas coisas. O som das palavras (na poesia como na prosa) é uma melodiazinha que faz parte de sua essência. 

Como traduzir, por exemplo, o mero título do poema de Eliot, The Waste Land? Uns dizem “A Terra Sem Vida”, outros dizem “A Terra Devastada”, outros “A Terra Destruída”, outros “A Terra Desolada”; já vi em espanhol “La Tierra Baldía”. 

Talvez “devastada” seja o melhor adjetivo, porque a partícula /vast/ evoca a palavra /waste/ do original; e foi isto que levou Paulo Leminski a sugerir a tradução híbrida “Devastolândia” que é a de sonoridade mais próxima a “The Waste Land”. 

Uma tradução anticonvencional, ousada, que pelo seu próprio exagero caricatural (na sua tentativa de chegar ainda mais perto do som da expressão inglesa) mostra a dificuldade de traduzir sentido e som ao mesmo tempo. 

A principal restrição que se pode fazer ao termo proposto por Leminski é estilística: ele destoa das três palavras comuns e severas usadas no título original, propõe um neologismo surpreendente, e com isto se afasta do tom de voz (toda poesia tem por trás de si uma voz) usado por Eliot.

“Le Bateau Ivre”, o grande poema de Rimbaud, é traduzido em português como “O Barco Bêbado”, “O Barco Embriagado” e “O Barco Ébrio”. As três se equivalem em sentido; mas a tradução mais próxima, para meu gosto, é a terceira, porque “ébrio” tem a sonoridade mais próxima de “ivre” e reproduz, sem forçar o sentido, a melodiazinha do título original.

Reli dias atrás as traduções feitas por Carlos Drummond de algumas canções do Álbum Branco dos Beatles. 

Ele traduz “Blackbird” por “Melro”. Eu discordo, não semanticamente, mas no aspecto sonoro. “Melro” tem também duas sílabas, mas “blackbird” são duas sílabas fortes, explosivas, sendo que “melro” tem uma forte e uma fraca. 

Além do mais, “melro” não é uma palavra tão instantaneamente visualizável. A saída (se não for uma tradução para ser cantada) talvez fosse esquecer o ritmo do original e apelar para o aspecto visual: talvez “Pássaro Preto”, com o /pp/ evocando o /bb/ do termo inglês. 

Dizem os grandes tradutores que toda tradução é perda; mas é preciso, sempre, vender caro a derrota!






quarta-feira, 9 de março de 2011

2499) Os 400 queijos (9.3.2011)



Sempre que se fala em políticas públicas para a cultura eu me lembro da frase impaciente do General De Gaulle, quando era presidente da França: “Como se pode governar um país que tem 400 marcas de queijo?”. A beleza deste desabafo é que ele não vem de um “enfant terrible” como Daniel Cohn-Bendit ou de um contestador como Sartre. Vem de um dos mais caretões dos militares que já encarnaram A França Profunda; vem da reserva moral da velha Gália. Pois é, general. Uma coisa é acreditar em símbolos, outra muito diferente é produzir uma legislação que acomode e contemple reivindicações específicas. Ora que diabos, 400 tipos de queijo?! Por que não resumimos isto a uma dúzia, e estamos conversados?!

A cultura tende a se diversificar e a se ramificar fractalmente, subdividindo-se cada vez mais, em instâncias minimamente particularizadas e individuais. A cultura é o reino do único, do personalizado. Por outro lado, a administração (e as suas correspondentes legislações e instâncias regulatórias) tende a generalizar, a colocar mil coisas diferentes sob uma única denominação, para ganhar tempo e poupar papel, além de deixar claro que todos são iguais perante a lei. Ou seja, a lei que organiza a produção e comercialização dos queijos tem o dever republicano de tratar todos os queijos como iguais. Só que cada queijo francês (e “queijo francês” se pronuncia com o tom de voz de “catedral gótica” ou “concerto barroco”) exige ser tratado como algo excepcional, fora de série, irredutível às generalizações. E chegamos àquele impasse tão comum quando tratamos com objetos culturais: a Cultura é uma regra composta totalmente de exceções a ela mesma.

Um governo resolve eliminar um imposto qualquer sobre o livro, para ajudar a literatura. Mas os romancistas reclamam que a mudança favorece também os livros de auto-ajuda, que, segundo eles, são mais inimigos da literatura do que as fogueiras da Inquisição. O que fazer? Liberar do imposto apenas os romances? Apenas os bons romances? Apenas os romances bem escritos? Apenas os romances com mensagem social e verdade filosófica? E o que dizer dos livros de contos? E da poesia? Por outro lado, talvez os romances publicados pelas pequenas editoras talvez precisem mais dessa isenção do que os das editoras grandes, que têm mais jogo-de-cintura financeiro. E por aí vai.

Toda lei é uma desumanização, porque implica numa generalização, numa recusa a reconhecer o que cada Ser tem de único. Temos o hábito de dizer que “cada caso é um caso”; essa frase bate de frente com um dos pilares da democracia, que é a noção de que todos devem ser iguais perante a lei. Todos acreditamos que a lei não pode favorecer ninguém, não pode abrir exceções para beneficiar alguém considerado “um caso especial”. O fato de que mesmo assim toda lei abre tais exceções mostra o quanto é difícil praticar a democracia (que se baseia na pressuposição de igualdade) no reino da diferença.

terça-feira, 8 de março de 2011

2498) Literatura e joguinhos (8.3.2011)




Os videogames são uma das formas de narrativa mais interessantes inventadas nas últimas décadas. (Neste caso, estou colocando no mesmo saco produtos distintos, como o game de PC, que roda através de um CD-Rom ou DVD, e o game de console, que é plugado na TV e roda com cartucho). Ele é a confluência entre os jogos de mesa-e-tabuleiro como War ou Banco Imobiliário, o cinema de animação e a TV.

Dizem que os literatos e os intelectuais em geral têm preconceito contra os games. Bem, talvez esse preconceito exista “em geral”, mas sei de numerosos casos particulares em que sujeitos sérios (como eu) se afeiçoam a certos jogos e não acham que estão perdendo seu tempo. Nos casos em que o preconceito existe, ele usa, curiosamente, termos parecidos com os das pessoas que não gostam de ficção científica. Ou seja: 1) É coisa de garoto, não de adulto; 2) É coisa de americano, não tem nada a ver com a realidade brasileira; 3) Só trata de guerra, violência, monstros. São verdades parciais, e todo preconceito é alimentado por verdades parciais que alguém transforma em generalizações definitivas. Não importa se um milhão de negros são trabalhadores; basta o preconceituoso ver um negro com preguiça para dizer: “Tá vendo? Todo negro é preguiçoso”.

Sugiro a leitura deste artigo (http://tinyurl.com/6aupee5) no saite da Livraria Saraiva, em que escritores brasileiros jovens (Daniel Galera, Antonio Xerxenesky, Samir Machado, Simone Campos) dão seu depoimento sobre sua vivência com os games e o modo como eles estão sendo assimilados em seus romances e contos.

A grande contribuição dos games é quanto à narrativa, porque eles propõem uma interatividade que a literatura-de-livro só pode oferecer até um certo ponto. Existem games violentos, mas porque o mercado se estruturou assim. E por falar nisso, também existem livros violentos. Assim como temos hoje histórias em quadrinhos adaptando a obra de Proust, nada impede que daqui a algumas décadas tenhamos um videogame do Ulisses de Joyce, em que o jogador passeará por Dublin, terá acesso à infância de Stephen Dedalus, encherá a cara com Bloom num bordel, poderá bisbilhotar as aventuras extraconjugais de Molly... Se houver mercado para isso, acontecerá.

Nada impede que tenhamos um dia um game da Guerra de Canudos, usando material fornecido por Euclides da Cunha, Vargas Llosa, Manuel Bombinho e outros. Nada impede que o Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, possa virar um imenso universo interativo, reproduzindo antigas e novas aventuras. O que era literatura (texto, palavras, frases) pode virar game (imagens, som, movimento, narrativa, interatividade), com alguma perda estética neste processo, mas também com a possibilidade de ganhos estéticos. É irrelevante essa discussão boba de “quem é melhor, a literatura ou o game”. O melhor meio é o que atrai maiores talentos individuais. Já foi a literatura, mas nada obriga que seja assim eternamente.

2497) A Era do Monjolo (6.3.2011)




Nasci no Condado de Gurtz, no ano 2557 da Era do Monjolo. Minha infância foi uma fuga constante em lombo de burro, no temporal ou na poeira, comendo frutas verdes ou carne estragada, meu pai matando um salteador por dia, minha mãe perseguindo coelhos e acendendo fogueiras. Às vezes demorávamos numa choupana o tempo suficiente para que eu me acostumasse ao desenho das palhas no teto, ao som do vento, ao meu cantinho de dormir, o mesmo canto todas as noites, e pensei uma vez que gostava daquele canto como se ele fosse uma pessoa. Nunca demorava muito, porque chegavam os cavaleiros do Khan, archotes em punho, devastando aquela aldeia, incendiando as florestas e cravando cabeças nas estacas. O Khan demonizou nossas vidas até quando, na época da minha primeira barba, conheci jovens rudes e queimados do sol que me levaram para uma reunião numa gruta. Fiquei sabendo que ali se reuniam os inimigos do Khan, que preparavam a sua derrubada. Perguntaram-me se gostaria de me unir a eles. Minha resposta foi puxar a faca que trazia à cinta, cravá-la no chão e ajoelhar-me.

Deram-me um fuzil, um nome novo, e treinamento. Assinei contratos com sangue, bebi pólvora misturada ao álcool, permiti que me fotografassem degolando um desconhecido, ou beijando a mão de um desconhecido, ou na Praça, erguendo um cartaz em língua desconhecida. Unimo-nos em volta dos exércitos comandados pelo Raij, a nêmese do Khan, o homem que jurara cortar sua cabeça pessoalmente e acabar com o terror na península. Possuídos por uma fúria sagrada, chocamo-nos contra os exércitos do Khan em sucessivos combates, até fazê-los refluir para dentro das muralhas da capital. Na véspera do assalto derradeiro, pude entrever o Raij à distância; ele passou em seu cavalo branco, exortando as tropas. No dia seguinte, desfilamos durante horas diante da estaca, à frente do palácio, em que a cabeça do Khan nos esperava, e a música das nossas trompas de caça emergiu das janelas do palácio, onde se debruçavam mulheres como nunca mais vi.

É duro implantar o Bem numa terra que o mal devastou durante gerações. A violência que o Khan propagara morava agora na memória dos aldeões, contaminava sua vida. Assaltos e emboscadas contra as tropas do Raij se multiplicavam. Descobrimos (a esta altura eu era centurião) que a morte do Khan não mudara muito o mundo, e que o Mal era como um monstro que sobrevive mesmo depois de decapitado. À frente das minhas tropas, comandei incursões de Norte a Sul, enquanto meus cabelos embranqueciam e os incêndios empobreciam as florestas. Vi erguerem-se contra nós as tropas andrajosas e mal-armadas dos seguidores do Valoong, o guerreiro envolto em peles de urso que jurou queimar vivo o Raij e seus seguidores. Hoje, à véspera de mais uma batalha, escrevo estas linhas à luz dos archotes, os mesmos que empunharemos amanhã no momento de massacrar outra geração de insurgentes, devastar suas florestas e cravar suas cabeças nas estacas.

2496) Contraintes (5.3.2011)




“Contrainte” (con-TRÉNT): palavra francesa que pode ser traduzida como “restrição auto-imposta”. É quando um artista diz: “Proponho-me a fazer uma obra sem ultrapassar tais e tais limites, ou na qual será obrigatório proceder assim ou assado”. 

Parece um convite à excentricidade, mas a verdade é que toda obra de arte principia por aí. Quem compõe uma música para cavaquinho só pode lidar com as notas que cabem num cavaquinho. 

O crítico Rudolf Arnheim escreveu um dos melhores livros sobre a linguagem do filme, A Arte do Cinema, defendendo com brilhantismo a teoria de que a riqueza da linguagem cinematográfica decorre de suas limitações iniciais: ser mudo, ser em preto-e-branco, ter a imagem limitada pra um retângulo, etc.

Na literatura temos “contraintes” famosa como o formato obrigatório de muitos gêneros poéticos, como o hai-kai, o soneto, etc. E existem aquelas “contraintes” excepcionais, como a de Georges Perec e de Ernest Wright, que escreveram romances inteiros sem usar a letra “E”. 

Fiquei sabendo agora de outra obra que para mim é prova da existência de mais um autor fora-de-esquadro. Trata-se do livro Never Again, de Doug Nufer (http://www.amazon.com/o/asin/0971248567/ws00-20), que parece ser a história de um jogador compulsivo que quer se regenerar. O livro tem uma “contrainte” que é coisa de maluco: como o título indica, o autor se compromete a não mais usar qualquer palavra que venha a aparecer no texto. 

Ou seja, cada palavra só pode ser usada uma vez. Imagine a dificuldade de alguém para omitir as palavras mais comuns da língua (o, a, os, as, um, uma, uns, umas, de, em, para, que...).

O livro começa parecendo um livro normal: “When the racetrack closed forever, I had to find a job. Want ads made wonderlands, founding systems barely imagined”. (“Quando a pista de corridas fechou para sempre, tive que procurar um emprego. Anúncios de ‘procura-se’ projetavam fantasias, criando sistemas que mal se poderia imaginar.”). 

Veja-se que logo no comecinho do livro o autor já queimou algumas palavras essenciais: “When”, “the”, “I”, “to”, “a”. E por aí vai. 

Quando chegamos à página 4, o autor já descarregou todo seu suprimento de conectivos e palavrinhas curtas, e as frases vão ganhando um aspecto assim: “Tilt? Nodded acceptance unclogs processional drainpipe. Headtalk gestures convey protodocuments: workpass, memo allocating stingy directional information”. Lamento, mas não vou perder meu tempo tentando traduzir.

Uma regra como esta pode produzir boa literatura? Talvez não, mas a verdade paradoxal é que a literatura não tem como objetivo apenas produzir boa literatura. A literatura serve para sabermos os limites do que é possível fazer com palavras. “Boa literatura” é uma pequena fatia dessa pizza, a fatia que uma cultura, numa época qualquer, resolve considerar mais significativa ou mais deleitável que as outras. A Boa Literatura é um efeito colateral, e não o objetivo da literatura.