quarta-feira, 22 de setembro de 2010

2353) A arte da definição (22.9.2010)



Sempre que falo em ficção científica, alguém me pede uma definição do gênero, e eu respondo que há uma fartura delas, centenas e centenas à escolha – e todas me parecem plausíveis. Nos meus tempos de movimento cineclubista, principalmente quando atrelado ao movimento estudantil, havia uma fase inicial da discussão que era chamada de “definição de conceitos”. O que é cinema? O que é mercado cinematográfico? O que é arte? O que é cultura? O que é povo? O que é povo brasileiro? O que é cinema brasileiro? E seguia nesse caminho. Em geral, as definições de conceitos levavam tanto tempo que o debate propriamente dito não começava nunca.

Responder essas perguntas não é tão fácil quanto parece. O que é cinema brasileiro? Ora, pensará alguém, são os filmes feitos no Brasil. Mas um filme feito no Brasil por uma equipe argentina e com dinheiro argentino é brasileiro? E um filme feito no Chile, com tema chileno, por uma equipe brasileira e com dinheiro brasileiro? Uma co-produção Brasil/EUA pode ser chamada de “filme brasileiro”? Se um filho de franceses roda em São Paulo uma adaptação de uma peça de Sartre ambientada na França, isso é cinema brasileiro? E assim por diante.

Uma definição é uma pequena utopia mental: o sonho de uma chave que abre todas as portas. Uma frase que descreve com exatidão centenas, milhares de exemplos. Suficientemente abstrata para poder abranger as características gerais de todos eles, e ao mesmo tempo suficientemente específica para poder dar conta do perfil único e peculiar de cada um. Definições precisas são um instrumento útil nas ciências, mas em se tratando de arte ou literatura é outra história. Como observou Todorov em sua análise da literatura fantástica, “a evolução segue aqui um ritmo completamente diferente: toda obra modifica o conjunto dos possíveis, cada novo exemplo muda a espécie”.

Uma definição pode ser definida como uma lista de características que incluem um conjunto de objetos numa categoria abstrata. Essas características devem ser necessárias, ou seja, um objeto só pertence à categoria se apresentar todas elas. Ela deve se situar a meio caminho entre dois perigos: o da definição excessivamente vaga, que acaba incluindo objetos que não pertencem à categoria, e o da definição demasiado restritiva, que acaba deixando de fora objetos que pertencem a ela.

Em literatura, uma definição nunca é conclusiva, porque toda obra literária é heterogênea. Se cada obra fosse uma coisa só, como as formas geométricas, seria fácil criar uma definição que cobrisse todos os exemplos de um gênero e não incluísse nenhum que aparenta pertencer a outro. Mas a existência de, digamos, O Homem Demolido, um romance policial ambientado num futuro em que existem telepatas, anula essa possibilidade. Qualquer definição de romance policial ou de FC que o inclua estará incluindo uma obra de, num certo aspecto, é “um estranho no ninho”.