sexta-feira, 23 de julho de 2010

2301) Alugue um homem branco (23.7.2010)




Por falta de emprego eu não morro mais! No saite da revista The Atlantic li este artigo de Mitch Moxley, americano que mora em Beijing, a quem ofereceram um emprego de mil dólares por semana numa província chinesa de que nunca tinha ouvido falar, trabalhando para uma empresa norte-americana igualmente desconhecida. Não exigiam experiência prévia (o que era ótimo, pois ele não tinha nenhuma). Exigiam apenas boa aparência e o uso de terno. O artigo de Moxley não é muito longo, e se eu pudesse o transcreveria inteiro aqui, mas prefiro dar o link (http://tinyurl.com/25533zx). Ele explica que o trabalho consistia apenas em viajar, comparecer a reuniões, ler um texto que lhe era entregue, apertar mãos, e sorrir. Tecnicamente, estava contratado como “expert em controle de qualidade”, mas na prática não se tratava disso. Diz ele:

“E foi assim que eu me tornei um falso empresário na China, um trabalho bem lucrativo para migrantes desempregados. Um amigo meu, um norte-americano que trabalha com cinema, era pago para representar uma empresa canadense e ler discursos defendendo o controle de emissões de carbono. Outro sujeito viajou para Xangai para representar o papel de comprador de presentes. Recrutar falsos homens de negócios é uma técnica usada por empresas da China para produzir a imagem de quem tem conexões com o Ocidente. Meu instrutor de chinês, que a princípio ficou de mau humor ao saber quanto eu estava ganhando, colocou assim a questão: -- Pois é, exibir estrangeiros vestindo ternos caros dá credibilidade às empresas”.

Alugar um homem branco para dar credibilidade a uma empresa oriental pode ser considerado racismo? Pode ser considerado uma espécie de prostituição semiótica, ou seja, o sujeito vender a própria imagem para usos inconfessáveis por parte de outrem? Ou o trabalho de Moxley não será apenas um trabalho de ator, interpretando um papel concebido e dirigido pelo grupo que o emprega? Enfim – contratar gente para dar uma boa imagem não é novidade, basta ver a quantidade de mocinhas bonitinhas, todas bem vestidas, que nos recebem em todo tipo de evento por aí. O interessante no caso é que Moxley se apresenta como o que não é: finge ser especialista em algo de que não entende patavina. Mas como é americano, e, mais do que isto, parece americano, ganha mil dólares por semana para ler discursos, apertar mãos e sorrir para fotógrafos.

Dizia Mário Lago: “Eu não quero e não peço, para o meu coração, nada além de uma linda ilusão”. Nosso mundo é feito de aparências, fingimento, fantasias encenadas, espontaneidade coreografada, verdades “fake”. Moxley é tão ator, ou tão pouco ator, quanto os rapazes bonitos e as moças bonitas que aparecem em nossas novelas de TV. Não são atores nem atrizes: fazem o papel de atores e atrizes. São “fake” e não alugam talento, alugam boa aparência, fingem ser atores para uma platéia que não quer ver interpretação, quer ver “pessoas com boa aparência”.



2300) Os Ulisses do mundo inteiro (22.7.2010)



(Joshua Cohen) 

O escritor Joshua Cohen é autor de um romance de 800 páginas intitulado Witz, uma história cheia de trocadilhos em diversas línguas, tendo como tema a lenda do Judeu Errante. Um amigo lhe disse: “Seu livro é o Ulisses judeu”, aludindo ao romance de James Joyce (1921). Cohen ponderou que o próprio livro de Joyce já é o “Ulisses judeu”, além de ser também, claro, o “Ulisses irlandês”. Mas isto o deixou com a pulga atrás da orelha, e ele publicou um artigo no saite The Daily Beast dando um balanço dos “Ulisses” em diferentes culturas, ou seja, o que cada literatura nacional tem de mais parecido, em forma e/ou espírito, com o livrão de Mestre Joyce. 

Ele cita doze livros, dos quais li apenas um, e conheço outros quatro de ouvir falar. 

Começo pelo décimo título de sua lista, que é justamente Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa (1956). Diz Cohen: 

“A intrincada e hipnótica história de Riobaldo, um velho fazendeiro que vive no interior do Brasil. Rosa faz uma evocação dos ritmos da fala, das repetições e dos diferentes registros verbais que torna seu livro um exemplo de ponta no modernismo latino-americano. É também um dos poucos épicos da Modernidade - um movimento nascido na cidade – a abordar as regiões mais remotas e selvagens”. 

Uma descrição interessante, mas para um leitor europeu não dá uma idéia muito clara da imensa complexidade linguística e temática do livro. 

Para Cohen, o “Ulisses britânico” é Mrs. Dalloway de Virginia Woolf (1925), cuja escolha ele justifica assim: 

“É a resposta feminina britânica à masculinidade irlandesa. A narrativa de Woolf segue um dis de junho na vida de Clarice Dalloway enquanto ela organiza uma festa a se realizar naquela noite. O que era externalizado em Joyce – detalhes físicos, ação – é internalizado em Woolf – detalhes mentais, psicologia. Seu livro é um triunfo da voz humana mais profunda”. 

Embora o livro não seja um calhamaço comparável ao de Joyce, a comparação procede, e está bem justificada. 

O “Ulisses alemão” para ele é Berlin Alexanderplatz de Alfred Doblin (1929): 

“Um relato epicamente incessante do ‘demimonde’ de Berlim. Repleto de crimes, prostitutas, uma prostituta assassinada. O obtuso Franz Biberkopf é solto da cadeia e sai para a prisão maior que é a República de Weimar. Doblin, um jornalista, psiquiatra e veterano da I Guerra, germanizou o olho e o ouvido panorâmicos de Joyce para captar a gíria urbana, e assim criou um dos melhores romances de decadência do século”. 

O último título que me é familiar é Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal (1948), sobre o qual ele diz: 

“O romance de Marechal acompanha uma fraternidade de aventureiros baseada nos amigos do autor, entre os quais Jorge Luís Borges. Em sete seções centralizadas na formação estética de Adán, um aspirante a poeta, a homenagem a Homero cede lugar à reescritura de Dante, na qual o espanhol da Argentina se torna um brinquedo a ser pervertido e reinventado”.




2299) Orkut e Facebook (21.7.2010)



No princípio era o Orkut, um planeta virtual, onde a humanidade se reunia para jogar conversa fora. Depois veio o Facebook, um dos “saites de relacionamento” que mais crescem no mundo. Há quem diga que é perda de tempo, coisa para adolescentes, para aposentados e outras pessoas de ocupação incerta e não-sabida. Há quem ache que é um Ágora ateniense, um Hyde Park londrino, um local onde cada um pode dizer o que quiser, postar fotos, postar textos, postar links para websaites, postar links para vídeos no YouTube.

Quinze anos atrás, eu próprio consideraria ininteligível o parágrafo acima. Não importa: foi graças ao Orkut e ao Facebook que reencontrei amigos que não via há trinta anos. Não direi que fiz novos amigos, porque uso esta palavra com parcimônia, mas fiz muitos conhecidos, gente legal, boa para trocar idéias, dar dicas, conversar abobrinhas ou coisas interessantes. O Orkut acabou me enchendo o saco pela dificuldade de navegação, era mais de um minuto para trocar de página. Não posso perder tanto tempo assim. Dizem que os jovens gostam de velocidade. Errado: quem gosta (ou pelo menos quem precisa de rapidez) são os velhos, que têm na mente uma contagem regressiva tiquetaqueando sem parar.

O Facebook, como o Orkut, emprega com liberalidade o conceito de “amigos”. A sua página anuncia: “Você tem 1.134 amigos”! É curioso, porque certamente nunca vi mais gordas 99% dessas pessoas. Amizade virtual pe um novo conceito antropológico. Li uma vez num almanaque que a gente devia ter um amigo verdadeiro por ano de vida. Como não tenho 1.134 anos, só me resta supor que os demais não são propriamente amigos, são simpatizantes, pessoas que ouviram falar de mim e querem ver as coisas que eu prego no meu mural. (Esta, amigos, é a definição da amizade facebookiana: pessoas que se dão o trabalho de querer saber o que você está pensando agora.)

Quando entrei no Orkut, temi que fosse uma complicada conspiração destinada a um dia me envolver com traficantes de órgãos ou viciados em drogas, provando que eles eram “meus amigos no Orkut”. Duas conversas e dois dedos de bom-senso me convenceram do contrário. Do modo virótico com que essas amizades se propagam, não há tempo para cada um saber o que os demais andam aprontando. Seriam necessárias evidências de outro tipo; já que não existem, relaxemos.

Facebook e Orkut são uma imensa “pesquisa do Ibope” destinada a ter – quando alguém precisar – um “perfil do consumidor” completo a respeito de cada um dos 500 milhões de indivíduos que os compõem. Que filmes veem, que livros leem, que músicas escutam, que links distribuem entre os “amigos”, que nomes próprios são mais citados em seus posts, que websaites visitam, quanto tempo livre têm para jogar Farmville ou outras bobagens. Que bom que o Facebook existe num mundo ocidental e democrático, porque no dia em que todas essas informações caírem nas mãos de um (digamos) Stálin ou Mao-Tse-Tung, eu não quero nem sentir o cheiro.

2298) “Recife Frio” (20.7.2010)



Este curta-metragem de Kléber Mendonça é um ótimo exemplar do “cinema brasileiro” de “ficção científica”, ou seja, é filho de um pai eternamente na pindaíba e de uma mãe estrangeira que ainda não obteve cidadania. Com cerca de 15 minutos, é um documentário fictício, narrado quase todo em espanhol por um repórter de alguma TV latino-americana que faz a cobertura de um fato inusitado. Depois da queda de um meteorito numa praia, a região litorânea de Pernambuco, em volta do Recife, sofre um fenômeno meteorológico inexplicável. Por cima dela instala-se uma camada de nuvens pesadíssimas, fazendo a temperatura cair a cerca de 5 a 10 graus, e provocando chuvas constantes. De cidade tropical, Recife passa a ser uma cidade que lembra a Suíça no inverno: chuva, neve, gelo, gente encapotada.

A idéia é interessante e bem realizada, porque nos letreiros finais ficamos sabendo que o diretor filmou cenas em cidades de vários países, e depois montou essas cenas com outras filmadas no Recife, dando a impressão de que tudo se passa ali. Não há como não rir e não se emocionar com a imagem final de Lia de Itamaracá toda agasalhada, de cachecol e luvas, comandando um grupo de 15 pessoas numa ciranda, numa praia vazia e congelada.

O pseudo-documentário aborda o tema de vários ângulos, inclusive da cultura popular. Uma dupla de emboladores de coco, encapotados e friorentos, descreve em versos o sofrimento dos pernambucanos, desacostumados àquelas temperaturas. Lojas de artesanato mostram bonecos de barro reproduzindo gente cheia de agasalhos, xales, luvas, gorros e toucas, para se protegerem do frio. Nas ruas, céu cinzento e chuva constante. Nas praias, crise econômica dos bares e das pousadas que ficam vazias de turistas, pois o sol deixou de aparecer. Nos apartamentos de classe média, todo mundo briga pra dormir no quarto de empregada, o lugar mais quente da casa.

O filme não dá explicações científicas sobre o que aconteceu, mas constrói uma ambientação bem urdida misturando cenas reais e situações encenadas, o que acaba tornando plausível a situação. Mais do que saber por que ocorreu aquilo, ficamos interessados em ver como as pessoas se adaptam à situação e tentam tocar suas vidas. Por coincidência, vi este filme quando estava lendo 50 Degrees Below de Kim Stanley Robinson, em que ele descreve uma situação semelhante em Washington, quando a temperatura cai bruscamente devido à conjunção de fatores ambientais, congelando os rios e lagos e prendendo todo mundo em casa. O que ocorre no filme de Kléber não é tão improvável assim, se bem que mais provável ainda, em termos de catástrofe, seja a invasão do Recife (e outras cidades litorâneas) pelo mar, criando um ambiente como o da Manhattan semi-submersa mostrada por Spielberg em Inteligência Artificial. Enquanto isso, o filme de Kléber Mendonça mostra que não precisamos de orçamentos spielberguianos para fazer cinema de ficção científica. Basta criatividade.

2297) Futebol e pensamento mágico (18.7.2010)



Uma Copa do Mundo sempre traz de volta a qualquer torcedor uma reincidência do pensamento mágico. Como dizia Freud em O Estranho, somos ainda vítimas da concepção animista do Universo, de que o Universo não apenas pensa mas é também capaz de ler os meus pensamentos, e, melhor ainda, obedecer a eles. Freud chama a isto “a supervalorização narcisista dos próprios processos mentais”, gerando a idéia de que o Universo obedece aos meus desejos. Ele pode de início ser recalcitrante, resiste um pouco, etc., mas se eu for persistente e enérgico acabarei dobrando-o à minha vontade.

Nada como o clima vertiginosamente irracional de um jogo de futebol para fazer idéias desse tipo despertarem em nossa mente com toda a força pré-histórica de algo que foi enterrado sem estar morto. Por exemplo: houve uma época em que durante um jogo do Brasil eu ia ao banheiro de cinco em cinco minutos, porque no primeiro jogo da Copa, que estava emperrado num 0x0, o gol só saiu quando eu saí da sala para “tirar água do joelho”. Daí em diante, cada vez que o Brasil pegava na bola eu corria para o WC. Nada acontecia e eu achava que estava faltando realismo. Passava a tomar latas e mais latas de cerveja para que o ritual fosse cumprido à risca. A incidência estatística de minhas idas ao banheiro era tal que, uma ou outra vez, acabava coincidindo com outro gol, o que me dava a certeza científica do processo.

A certeza científica muitas vezes é fundada em coincidências, mas coincidências tão precisas que justificam uma tomada de posição. Se cada vez que minhas juntas doem acontece chuva pouco tempo depois, quem me impede de considerar que existe uma relação de causa e efeito embutida nesse processo? Não digo que a dor das juntas seja causa da chuva; basta-me supor que alguma ocorrência barométrica produz os dois fenômenos. Já falei aqui sobre o vício filosófico apelidado de “postoquismo”, o que se baseia na frase “post hoc, ergo propter hoc” – “se aconteceu depois disso, aconteceu por causa disso”. Dois fatos que se sucedem, mesmo que se sucedam várias vezes, não criam necessariamente uma relação causal. No futebol, um exemplo clássico é o de Carlito Rocha, folclórico diretor do Botafogo do Rio, e extremamente supersticioso. Um dia, pouco antes de um jogo decisivo, Carlito estava no vestiário do time e viu um jogador fazer xixi acidentalmente na perna do outro, quando estavam de pé no mictório. Como a “vítima” acabou fazendo nesse dia o gol da vitória, Carlito exigiu que todas as vezes o ritual do xixi fosse repetido. Postoquismo puro. Se o fato ocorre com um goleador de verdade, cada nova ocorrência serve de prova para o pensamento mágico de Carlito.

Um dos mandamentos do pensamento mágico é: não anuncie o que vai fazer, se não dá azar. Preocupado com meus rituais supersticiosos, deixei para publicar esta coluna depois da Copa, porque se a tivesse publicado antes corria o risco do Brasil não ganhar o hexa.

2296) A máquina e a droga (17.7.2010)




Podemos dizer que existe gente viciada em computador do mesmo jeito que falamos em gente viciada em cocaína? Será que o uso compulsivo do automóvel tem algo a ver com o uso compulsivo do cigarro? A necessidade de ter uma televisão ligada o tempo todo dentro de casa pode ser comparada à necessidade de tomar um drinque a toda hora? 

Pergunto porque estes são comportamentos que observo o tempo inteiro nos outros ou em mim, e os observo sem preconceito ou repulsa, apenas constato que para certas pessoas algumas das coisas acima são imprescindíveis, e para outras não.

George Orwell afirmou certa vez: 

“As máquinas têm que ser aceitas, mas provavelmente é melhor aceitá-las do mesmo modo como aceitamos um remédio, ou seja, resmungando, e com alguma desconfiança. Assim como um remédio, uma máquina é uma coisa útil, mas é perigosa, e tende a estabelecer uma dependência. Quanto mais vezes recorremos a elas maior o poder que adquirem sobre nós”. 

Tudo que se torna indispensável é perigoso.

O celular, por exemplo, este bravo símbolo do século 21, tornou-se indispensável para muita gente – para mim, pelo menos, que tanto relutei em comprar um. Não adianta vir alguém me dizer: “Ora, e como você resolvia as coisas quando não existia celular?”. É uma pergunta sem sentido. É o mesmo que eu dizer que sou feliz sendo adulto e alguém perguntar se não era feliz quando vivia de fraldas dentro de um berço. Provavelmente era, mas nem por todo o Leite Ninho do mundo eu trocaria minha vida atual por aquela. 

As verdadeiras transformações são irreversíveis. Morreu. Cabô. Aquele tempo, tchau. Sem celular eu sou apenas um ser unicelular, uma ameba abobalhada e muda.

A distinção entre dependência-da-máquina e dependência-da-droga é acima de tudo de ordem moral. Irritamo-nos com quem depende da Internet, do carro, do telefone; mas não sentimos uma repulsa instintiva por essas pessoas. Por outro lado, quando ficamos sabendo que Fulano de Tal usa drogas continuamente, várias vezes por dia, e se ficar sem usá-las perde o controle, não apenas nos preocupamos pela sorte de Fulano, mas passamos a vê-lo como alguém inferior, corrompido, digno não só de pena mas também de desprezo. 

Talvez porque a droga esteja historicamente associada ao submundo, exploração de pessoas indefesas, chantagens obrigando os viciados a cometer atos inomináveis para obter a próxima dose. 

Como a tecnologia de celulares e internets não apenas não é proibida, mas é fortemente incentivada (eu quase diria: imposta goela abaixo), fica mais fácil passar a mão na cabeça dos que pela manhã ligam o computador antes mesmo de escovar os dentes.

A diferença principal é que a droga produz dependência psicológica ou química, e as máquinas produzem dependência psicológica e social. Criamos uma nova forma de conviver através das máquinas e por alguma razão ela nos satisfaz a ponto de não podermos mais conviver sem elas.