sábado, 10 de julho de 2010

2255) Filme B de intelectual (30.5.2010)



O melhor tipo de filme que existe é filme B feito por intelectual. É muito melhor do que filme A feito por gente tapada. 

E é juntar o melhor de dois mundos: um filme B é por definição um filme que não tem muitas ambições de bilheteria ou de crítica, um filme feito apenas para se pagar, sumir e dar lugar ao próximo. Não quer invadir mercados, não quer disputar espaço em centenas de salas, não foi feito sob uma enorme expectativa de desempenho nas bilheterias, não teve ações negociadas numa bolsa de mercados futuros. Só tem obrigações para consigo mesmo. 

O filme B é feito por uma turma, não por uma equipe de grandes estrelas. O que reúne essas pessoas não é o sonho da fama nem a ambição da fortuna, é a excitação de fazer um filme.

O problema dos filmes B em geral é serem feitos por pessoas cuja cabeça é uma mistura confusa de influências mal assimiladas e de idéias próprias sem relação entre si. 

Se não existissem as fórmulas de gênero (terror, policial, bang-bang, noir, zumbis, FC, etc.) os realizadores de filmes B não saberiam direito o que dizer ou filmar. Os gêneros lhes dão de bandeja um cardápio completo de temas, situações, personagens e enredos. Eles agradecem, e entregam-se à volúpia da filmagem. 

O resultado? Filmes B que seguem as fórmulas, admitindo vez por outra algumas surpresas e transgressões, mas que só não afundam porque a fórmula lhes serve de bóia. Sem ela, sumiriam como pedras.

Daí que o filme B feito por intelectuais não apenas nos traz algo de novo, como geralmente se eterniza. Não é outra coisa o melhor cinema de Glauber Rocha, Jean-Luc Godard, Alejandro Jodorowsky, Quentin Tarantino, Buñuel, Jim Jarmusch, Rogério Sganzerla. 

Todos trabalham com moedas contadas, mas suprem em criatividade e inovação as limitações de orçamento. 

Como são diretores de filme B, têm amor pelos gêneros e pelas fórmulas. Como são intelectuais, refletem criticamente sobre elas, uns questionam, outros interferem, outros aprimoram. 

É preciso ter a cara-de-pau de um Godard para dizer que Alphaville é um filme de ficção científica, a cara-de-pau de um Jodorowsky para dizer que El Topo é um faroeste, a cara-de-pau de Buñuel para dizer que Belle de Jour é um melodrama, a cara-de-pau de Glauber para dizer que Deus e o Diabo é um filme de cangaço. São – e não são.

Howard Hawks deu sua fórmula para um bom filme: “Três cenas boas e nenhuma ruim”. É uma definição exemplar para um filme normal. 

Um filme B, em contrapartida, seria: “Se tiver três cenas boas, todas as outras podem ser ruins”. 

O filme B não tem medo de atingir os abismos, desde que confie no próprio impulso para, cinco minutos depois, atingir um pico de qualidade. O filme B feito por intelectuais é o último reduto de liberdade criativa, desde que seja assumidamente B em sua orgulhosa precariedade técnica. E que seja corajosamente intelectual ao dizer: “É só um filme B, mas toda a memória cultural do mundo cabe dentro dele”.


2254) Os pais monstros (29.5.2010)



O “Globo” de domingo passado deu uma matéria que, se conseguíssemos eliminar o tom descontraído de um artigo de jornal, poderia facilmente se transformar numa história de terror. O jornalista fala sobre um novo tipo de problema que está aparecendo no meio educacional do Japão: os pais monstros, pais que interferem de todas as maneiras possíveis na educação que seus filhos recebem nas escolas. Ao que parece, há uma faixa de pais (não muito larga, mas muito atuante) que toma para si uma responsabilidade excessiva quanto à educação dos filhos, e não deixa em paz nem a escola nem os professores. Segundo a matéria de Claudia Sarmento, nos EUA esses pais são conhecidos como “pais helicópteros”, porque fazem muito barulho e espalham poeira quando chegam.

Alguns pais plugam gravadores no uniforme dos filhos para gravar todas as aulas e em casa, à noite, examinar o que os professores disseram, e, muitas vezes, discordar deles. Como a cultura japonesa é extremamente formal, uma reprovação no fim do ano é quase uma catástrofe familiar. Nas competições esportivas, os colégios são coagidos a distribuir medalhas com os alunos de acordo com as expectativas ou as ansiedades destes (para que o fracasso não os traumatize), e não com o resultado das provas.

Diz a matéria: “Há mães que exigem que professores busquem seus filhos em casa ou lavem seus uniformes; outras obrigam o colégio a refazer o álbum de fotos escolar porque seus filhos apareceram ao lado de coleguinhas mais bonitos”. E há episódios hilários como o da montagem de uma peça de “Branca de Neve e os 7 Anões” sem anões (ninguém quis o papel) e em que todas as meninas faziam o papel da Princesa. Quando eu vejo essas coisas, sinto um profundo alívio por ter desistido de seguir a carreira de professor.

Pressão sobre professores não é raridade aqui no Brasil. Quem mexe com educação sabe que saímos de um século em que a regra eram professores tirânicos que perseguiam, oprimiam e apavoravam os pobres alunos, para um século em que alunos tirânicos apavoram, oprimem e perseguem os pobres professores. Ninguém é bonzinho a priori. Em escolas públicas de periferia, vemos professores pacatos, fatigados por excesso de trabalho, sofrendo para ajeitar a vida dentro do salário minguado que recebem, e tendo que enfrentar adolescentes belicosos, desafiadores, insubordinados e que muitas vezes vão para a aula drogados ou com armas. E em escolas caras, escolas selecionadíssimas, onde se formam nossas elites econômicas e políticas, já vi professores se queixando de serem humilhados pelos alunos riquinhos. Uma amiga minha ensinou numa escola, aqui no Rio, em que todos os alunos dela vinham para a aula de carro blindado e motorista particular. E quando levavam uma nota baixa ou uma repreensão em sala, diziam: “Vou me queixar de você ao meu pai, você tem idéia de quem é meu pai?”. É assim, amigos. Num país que perdeu seu centro, tudo é periferia.

2253) A forma e o espírito (28.5.2010)




(www.imagesavant.com)

Me perguntam se é possível, para quem não é nordestino, escrever literatura de cordel, e o que era necessário para isso. Respondi que eram necessárias apenas duas coisas: domínio da forma e compreensão do espírito. Dominar a forma do cordel não é apenas conhecer as estrofes básicas e saber recitar sua descrição: “Uma sextilha tem seis linhas, cada uma com 7 sílabas, e a segunda, a quarta e a sexta rimam entre si”. É saber derramar o texto nessa fôrma como quem derrama água num copo, sem sobrar nem faltar uma gota. O que é compreender o espírito? É ter lido uma variedade e quantidade suficiente para ter o discurso do cordel como uma segunda natureza, sentir-se livre o bastante para criar o que lhe der na telha e saber que tudo que criar não irá produzir um curto-circuito de estranheza.

O que é necessário (digamos) para escrever um bom romance policial? A mesma coisa: domínio da forma e compreensão do espírito. Dominar a forma não é imitar o estilo de A,. B ou C, até porque o gênero tem um alfabeto inteiro de idiomas. É saber que existe uma mecânica básica (ou um conjunto de mecânicas) que postas em ação dão a um romance o direito de pertencer ao gênero. E o que é compreender seu espírito? É entender que esse gênero não cresceu por acaso nem por injunções do mercado, mas devido a uma troca permanente de estímulos entre os contadores dessas histórias e as pessoas que procuram nelas, sempre, as mesmas coisas e coisas diferentes.

O que é preciso para fazer um samba? Domínio da forma e compreensão do espírito. A forma envolve um feixe de raízes melódicas e rítmicas essenciais; podem ser primitivas, mas se o compositor é sofisticado demais, dodecafônico ou estocástico demais, não conseguirá dominá-las, pois o que domina já é tão rarefeito que as exclui. E compreender o espírito do samba é ter consciência das inúmeras camadas superpostas de samba que, a esta altura, constituem a história do gênero. Quem é sambista sabe que existem canções extremamente inteligentes e talentosas que são chamadas de sambas mas que não o são, e sambas medíocres que conseguem sê-lo.

Filme de ficção científica? Mesma coisa. Fazer um filme de FC não é contar uma história que envolva espaçonaves, alienígenas e efeitos especiais. O que basta é apenas isto: domínio da forma e compreensão do espírito. O filme de FC tem um repertório de situações, de pontos de partida dramatúrgicos e de tensões internas que vai muito além dos clichês que ele próprio acabou produzindo. São poucos os gêneros em que chega a tal ponto a interdependência entre domínio da forma e compreensão do espírito. Porque é preciso ter lido muita FC (e visto muitos filmes de FC) mas saber seu objeto não é a espaçonave mas a Viagem, não é o alienígena mas o Estranho, não é o robô mas o Duplo, não é o computador mas a Máquina, não é o monstro mas o Inconsciente, não é o mutante mas a ruptura de conceitos e a transcendência rumo a uma realidade mais complexa.





2252) A Maldição do Estorninho (27.5.2010)



(foto: Fernando Gonçalves)

Os artistas plásticos não inventaram os conceitos de Intervenção e de Instalação, que no frigir dos ovos têm o mesmo espírito. Pode-se criar uma obra de arte sem pintar uma tela ou esculpir uma pedra: pode-se produzir uma obra que é apenas uma ação pensada, deliberada, com uma intenção específica, para produzir um acontecimento. O século 20 foi o rito de passagem entre o Moderno e o Pós-Moderno. O Moderno foi o ambiente cultural em que os artistas se dedicaram a estilhaçar e recompor tudo que tinha sido criado antes; foi o momento da derrubada de barreiras, da interpenetração de mundos que até então eram estanques, mutuamente inacessíveis. O Pós-Moderno foi por um lado a radicalização desse processo (para os mais críticos foi um exagero grotesco desse processo) e por outro lado a tentativa de recompor novas fronteiras, novas linhas demarcatórias (p. ex., novos gêneros) no meio do vale-tudo que estava imperando, aquele ambiente amorfo em que tudo é arte, todo mundo é artista, todo gesto é um gesto estético e assim por diante.

Vou dar um exemplo de gesto estético que se transforma em algo inesperado. Existem as pessoas com mente catalográfica, como os autodidatas que se dedicam a ler, por ordem alfabética, todos os livros de uma biblioteca (vide A Náusea, de Sartre). Existem pessoas nominalistas, para quem o nome da coisa é igual à coisa, como o artista plástico que organiza uma exposição numa cidade distante só porque o nome dela é o mesmo sobrenome dele (vide Paulo Bruscky expondo em Brusque, SC). Existem pessoas ritualizadoras de simulacro, que se dedicam a reproduzir, na vida real, coisas que só existiam em obras de ficção (a cavalgada da Pedra do Reino, em Belmonte).

Na década de 1890, Eugene Schiffelin, um entusiasta norte-americano da obra de Shakespeare, teve a idéia de trazer para a América casais de todas as aves citadas nas peças do Bardo. Fez uma lista, e começou a trazer os passarinhos. Entre eles estava o estorninho (“starling”), que é um pássaro capaz de imitar a voz humana (algo como um mainá). É citado apenas uma vez por Shakespeare, na peça Henrique IV (ato 1, cena 3), quando Hotspur, proibido pelo rei de falar no nome de Mortimer, diz: “Quando o rei dormir, gritarei ao seu ouvido: Mortimer! Não, melhor ainda: ensinarei um estorninho a dizer apenas ‘Mortimer!’, e lho darei de presente, para manter sua ira em funcionamento”.

Os cem estorninhos trazidos da Europa e largados no Central Park, em Nova York, prosperaram inesperadamente (a maioria das aves sucumbe fora do seu habitat nativo). São hoje mais de 200 milhões no país inteiro. Extinguiram espécies nativas. Adaptaram-se ao local e invadiram os lugares de aves migratórias que, quando retornam, vêm sua área ocupada. Foi um gesto poético, artístico – e uma instalação biológica, que alterou para sempre a fisionomia da fauna de um país. Arte pós-moderna em que o Acaso e a Intencionalidade se potencializaram mutuamente.

2251) O ataque e a defesa (26.5.2010)



Leio muito sobre futebol, principalmente em jornais, revistas e saites da Internet. Também passo noites inteiras (quando poderia estar lendo Proust) perdendo meu tempo diante das mesas-redondas da TV. Isto certamente prejudicou minha carreira literária, não apenas pelos livros que não escrevi, mas porque assistir esses debates reforça minha neurose existencialista, minha convicção na falta de sentido da presença do ser humano sobre a Terra.

Um assunto dominante nesses espaços da imprensa é a beleza do futebol ofensivo, daquilo que os jornalistas brasileiros gostam de chamar “o futebol ágil, veloz, moleque, buscando o gol”. Mais ou menos o que o time do Santos e o do Barcelona fazem hoje em dia. É muito raro, pelo menos na imprensa a que tenho acesso, aparecer uma voz discordante, dizendo que não prefere esse futebol de ataque. E os técnicos, quando entrevistados, também elogiam com veemência esse tipo de jogo. Acontece, porém que quando os técnicos pegam um time para treinar, a primeira coisa que fazem é colocar três zagueiros e quatro volantes – para defender. Futebol atacante é bonito no time dos outros, no meu não. Quem quiser que ataque. Eu, que não sou besta, vou é me defender.

É muito fácil ser adepto do imprevisível quando se está teorizando, mas na hora de praticar a gente quer as coisas sob controle, e a melhor maneira de conseguir isto é reforçar a defesa. No futebol, ficar na posição passiva é uma maneira de ter o controle da situação. Delega-se ao adversário toda a iniciativa; e prepara-se a própria equipe para destruir qualquer iniciativa dele, pela razão elementar de que é mais fácil (em teoria) destruir do que criar, é mais fácil interceptar um passe do que fazer um passe certo, é mais fácil derrubar com um esbarrão um jogador driblador do que dar um drible. E pode-se fazer isso com talento: é o que fazem Julio César, Maicon e Lúcio, do Inter de Milão e da Seleção Brasileira.

Quando estamos teorizando, pensamos no Ideal, pensamos no Futebol do Monte Olimpo. Quando vamos dirigir uma equipe, pensamos em garantir nosso emprego. E é mais fácil garanti-lo impedindo que o adversário jogue do que jogando. No futebol (na maioria dos esportes) o ataque é o reino do imprevisível, da criatividade, da surpresa, do imponderável. A defesa é o reino da nitidez, do planejamento, da previsão de todas as possibilidades. O ataque é a Arte, a defesa é a Administração de Empresas. O ser humano vive eternamente dividido entre dois impulsos contraditórios: Aventura e Segurança. Precisamos dos dois, e quanto mais nos esforçamos para ter um mais sentimos falta do outro. São o Yin-Yang da nossa existência, e em nenhuma esfera isso aparece de forma tão nítida quanto no futebol. Quem joga melhor, a defesa do Inter ou o ataque do Barcelona? Um ou dois jogos entre eles não nos dão a resposta. Teriam que jogar entre si toda semana, para que a gente pudesse ter uma idéia.