domingo, 4 de julho de 2010

2228) Maiakóvski e a FC (29.4.2010)



A comemoração dos 80 anos da morte de Vladimir Maiakóvski tem trazido aos suplementos culturais em geral novas traduções e adaptações dos seus poemas. Suas peças de teatro também têm sido lembradas, tendo novas montagens no palco ou merecendo estudos críticos. Um aspecto pouco conhecido da obra do grande poeta é a sua ligação com a ficção científica. Os poetas futuristas russos flertaram com o Futuro, literalmente, em numerosas obras. Maiakóvski foi exposto à FC como qualquer garoto de sua época. Em seu texto autobiográfico Eu Mesmo, ele diz, falando de sua época de curso ginasial: “Leio Julio Verne. O fantástico em geral”.

Fantástico que teria influência em duas de suas peças principais. A primeira, O Percevejo (“Klop”), de 1929 (há uma tradução brasileira recente da Editora 34, São Paulo). Nela, a primeira parte descreve o casamento do burocrata Prysipkin e a destruição de sua casa por um incêndio. A segunda parte se passa no futuro, em 1979, quando escavações no local onde ficava a casa descobrem Prysipkin ainda vivo, congelado num bloco de gelo. A partir daí, seguem-se as costumeiras situações satíricas em que um personagem, como o Dorminhoco de Woody Allen, acorda num mundo futuro e dá origem a uma infinidade de mal-entendidos. No final, Prysipkin acaba sendo confundido com um inseto, o percevejo do título, e trancafiado num jardim zoológico.

A segunda peça futurista foi O Banheiro (“Banya”) de 1930, em que um cientista inventa uma máquina do tempo e precisa de financiamento do Estado soviético para finalizá-la, ao mesmo tempo em que é perseguido por uma espécie de espião industrial britânico que pretende roubar a idéia para a viagem no tempo. Quando a máquina é posta em funcionamento, traz para o presente uma “mulher fosforescente” vinda do futuro. Ela anuncia que o socialismo é triunfante e que levará para o futuro todos os que comungam do seu verdadeiro espírito; e quando a máquina parte, deixa para trás, no presente, todos os burocratas que tinham passado o tempo inteiro dificultando as coisas para o cientista.

Na Revolução Soviética, o futuro era real para esses artistas que viviam a construção de uma projeto de Utopia (que havia na cabeça deles), de construção da sociedade ideal, e ao mesmo tempo a tragédia de ver essa Utopia desfigurada pela violência, pela burocracia e pela visão tacanha dos políticos. O Percevejo salta de um 1929 corroído pela ganância dos burocratas ignorantes para um 1979 insuportavelmente asséptico, que para os críticos lembra Nós, o clássico da FC escrito em 1920 por Yevgêni Zamiátin. O livro de Zamiátin circulou clandestinamente até sua tradução em 1924 (a primeira edição oficial em russo só ocorreu em 1952). Sua descrição de um Estado totalitário e cerebralista influenciou o 1984 de George Orwell, e também o teatro de Maiakóvski, cujo entusiasmo pela Revolução não o impediu de perceber desde cedo o abismo stalinista para onde ela marchava.

2227) E tudo acaba num samba (28.4.2010)



(Jamelão)

Diz um clichê que os artistas são uns sujeitos talentosos que vivem tentando criar, e sofrem pressão de indivíduos poderosos que tomam as rédeas do processo, prejudicam sua criação, etc. Quem não acha familiar a imagem do cineasta genial cujo filme, depois que vai parar nas mãos do produtor, é irremediavelmente mutilado, distorcendo por completo as intenções do autor? Quem não conhece mil histórias sobre o cantor-compositor de talento que entra no estúdio com um punhado de canções geniais e sai dali com um álbum cheio de versões pasteurizadas?

Nem sempre é assim. Artistas também são preguiçosos, ou se equivocam, ou simplesmente não conseguem se focar no que estão fazendo. Produtores, editores ou administradores em geral podem não saber criar, mas muitas vezes sabem coordenar o esforço dos artistas a quem promovem, exigindo e extraindo o melhor deles. Nem toda interferência num artista é para castrá-lo ou censurá-lo. Artistas precisam muitas vezes de uma sacudidela, uma crítica negativa, uma pressão para que deixem de ser comodistas e façam algo melhor. A interferência de um editor pode transformar um ótimo poema numa obra-prima – foi o que Ezra Pound fez com “The Waste Land” de Eliot.

O saite Cifrantiga (cifrantiga.blogspot.com) conta uma história interessante sobre o samba clássico “Exaltação à Mangueira”, gravado por Jamelão para o carnaval de 1956, e que todo mundo conhece: “Mangueira, teu cenário é uma beleza / que a natureza criou... / O morro com seus barracões de zinco / quando amanhece, que esplendor!” Composto por Enéas Brites e Aloísio Augusto da Costa, dois trabalhadores de uma cerâmica que ficava próxima ao morro, o samba é uma beleza de composição, gravada por muita gente. O samba (diz o saite) foi uma idéia de Enéas, e os dois o compuseram um dia, num intervalo de almoço (ver aqui: http://tinyurl.com/y2lq526). Acontece que na sequência da letra os dois poetas escreveram os seguintes versos: “Todo mundo te conhece / até no interior / não é bafo de boca / nem mania, não senhor”. O presidente da Mangueira, que se chamava Hermes Rodrigues, não gostou destes versos, e disse aos compositores que trouxessem alguma coisa melhor. Algum tempo depois, eles voltaram com os versos imortais: “Todo mundo te conhece ao longe / pelo som dos teus tamborins / e o rufar do teu tambor... / Chegou, ô-ô-ô, a Mangueira chegou, ô-ô”.

A interferência de um mero presidente de clube deu aos compositores a chance de substituir um verso medíocre por um verso que exprime a essência do que eles queriam dizer, porque se há uma coisa de que os mangueirenses de fato se orgulham é a batida característica de sua Escola. É o mesmo samba de todos, mas é diferente, assim como o pandeiro de Jackson é o mesmo coco de todo mundo, mas é diferente. Os compositores sabiam disso, mas só foram buscar lá dentro depois que alguém lhes fez uma cobrança e os forçou a focar melhor a criatividade. .

2226) Utopias e horrores (27.4.2010)



(Lúcifer, por Gustave Doré)

Isaac Asimov, num artigo famoso sobre vilões literários, comentou o Paraíso Perdido de John Milton dizendo: “O Satã de Milton é indomável mesmo derrotado, e apresenta lampejos de piedade, e por isto é um personagem interessante, enquanto que o Deus de Milton nunca se permite ser menos do que perfeito, e por isto é tedioso”. Isto me parece uma regra geral para a contraposição entre heróis e vilões. Os heróis populares de 50 anos atrás eram muito mais certinhos e mais politicamente corretos do que os de hoje. Deixaram de ser: vejam Batman, Superman, etc. O que causou essa mudança foi o fato de que o público – principalmente o público jovem, consumidor de filmes e de histórias em quadrinhos – começou a se impacientar com heróis muito bem comportados e a ficar fã dos vilões. Os vilões eram muito mais excitantes! Para recuperar o terreno perdido, os roteiristas e escritores tiveram que tornar os heróis mais complexos, dando-lhes traços de cinismo, uma certa crueldade, uma esperteza malandra, etc.

Quando um herói tem que ser um modelo de conduta, ele perde a liberdade – que é o que mais fascina o público jovem. A rapaziada começa a se interessar pelo vilão, porque este, sim, é livre, faz o que lhe dá na telha, não dá satisfações a ninguém, não tem medo de nada, não tem superego, não tem código de conduta... Leitores jovens são mais seduzidos por isto do que por um diploma de bom rapaz. Essa falta de liberdade implodiu os heróis clássicos, dando origem, principalmente nos quadrinhos, aos moralmente complexos heróis contemporâneos, com quem os leitores se identificam melhor.

Isto me lembra uma frase de Evelyn Waugh: “A mente humana é muito inspirada quando se trata de inventar horrores, mas quando se trata de inventar um paraíso ela mostra suas limitações”. Se dermos uma olhada nas Utopias clássicas da literatura, da poesia, do cinema, veremos que nenhuma delas se sustenta como algo plausível, e algumas chegam mesmo a se aproximar da Distopia, do pesadelo. Por outro lado, para inventar pesadelos nosso talento parece ilimitado. (Existe também uma espécie de consenso de que o Inferno de Dante é muito mais vívido, interessante, movimentado e bem escrito do que seu Paraíso).

A verdade é que a Realidade é muito mais próxima do Horror do que do paraíso ou da utopia. O propósito da ficção é alçar voo elevando-se desse horror, mas sabendo que o céu é inatingível. As coisas terríveis nos parecem mais vívidas, mais fáceis de imaginar e de assimilar porque são parte da nossa experiência real, ao passo que os paraísos são uma incógnita. Se pudéssemos visualizar o conjunto das literatura humanas em relação a esses dois extremos, veríamos que a maior parte do que criamos está bem mais próxima do pesadelo do que do paraíso, pelo simples fato de que o pesadelo é inteligível e tem abundantes exemplos, e o paraíso não. Nossas literaturas têm voo baixo: enxergam de longe o céu, mas mal conseguem se afastar do chão.

2225) O blues (25.4.2010)





(Mississippi John Hurt, por Douglas Egolf)

Alguém já disse que “blues” é qualquer canção que comece com a frase “I woke up this morning...” Se formos dar um balanço no gênero, vamos ver que milhares de músicas começam com essa frase, ou variantes. 

O blues é a crônica melancólica e reiterada de alguém que acorda mal, acorda sem forças e sem entusiasmo para começar um novo dia, acorda com a bateria descarregada. 

É o gênero musical preferido daqueles que, como Gregor Samsa, acordam de manhã sentindo-se o mais monstruoso e mais repugnante dos insetos, ou que, como Josef K., acordam de manhã com a sensação (geralmente justificada) de que o mundo inteiro conspira para encarcerá-los e destruí-los.

Existem dois tipos de pessoas. 

O Tipo A são aquelas cujo sono é repousante, restaurador das energias. Mal abrem os olhos, pulam da cama cheias de alegria e disposição, escancaram as janelas e gritam de braços abertos: “Bom dia, sol! Bom dia, mundo! Que coisa boa é estar vivo! Vamos à luta! Mais um dia maravilhoso vai começar! Mal posso esperar para fazer todas as coisas legais que estão à minha espera, inclusive resolver todos os problemas da minha vida, coisa que me dá indescritível prazer!!!” Tipo isso.

O Tipo B são aquelas pessoas que simplesmente wake up in the morning. Basta uma noite de sono para deixá-las exaustas, derrubadas, com a bateria descarregada a zero, pegando no tranco. Abrir os olhos é como abrir dois alçapões que dão acesso a um porão de cenas boschianas, dantescas. Para o Tipo B, o mundo é, como dizia Drummond, “um vácuo atormentado, um sistema de erros”. Seu corpo está embrutecido e sem forças, a mente destroçada e sem foco. Não lhe dirijam a palavra. O indivíduo do Tipo B acorda todos os dias numa situação de pós-operatório.

Os grandes bluseiros dizem que o blues é a música que os faz emergir desse pântano de desassossego e pessimismo. Percutindo as cordas, repetindo aqueles três acordezinhos intermináveis, num loop que gira eternamente sobre si mesmo, o bluseiro vai produzindo em si mesmo a energia que lhe falta, vai recarregando a bateria por esforço próprio, vai encadeando frases, riffs melódicos e outras pequenas coisas que acendem na treva do seu mundo um fosforozinho trêmulo de prazer estético. 

A palavra “blues” significa duas coisas ao mesmo tempo. Significa a depressão, a tristeza, o abatimento físico e moral de quem acorda extenuado e sem perspectivas, e significa a música criada nessas circunstâncias, para atenuá-las. Canta-se o blues para escapar ao blues. 

Ouso imaginar que a maioria das grandes canções de blues foram compostas por um sujeito de cuecas, barba por fazer, em jejum, de ressaca, sozinho em casa, sem dinheiro no bolso, e que acabou de despertar. 

Toda a sua energia lhe permitiu apenas abrir os olhos, passar uma ou duas horas pensando na vida e no dia que o aguardava, depois sentar na beira da cama, pegar o violão que estava no chão e começar: “I woke up this morning...”