sexta-feira, 2 de julho de 2010

2224) O viveiro das serpentes (24.4.2010)





(Kris Kuksi, The House of Fascism)

A primeira estratégia do fascismo é desmoralizar a democracia. Enquanto o braço militar se arma em surdina, o braço propagandístico desencadeia uma antipropaganda: a divulgação maciça e constante de todos os erros e corrupções (que não são poucos) do regime democrático, para desmoralizar não só o Presidente, não só o partido governista, não só o governo, mas todo o sistema democrático de livre escolha.


Campanhas do tipo “Todo Político é Corrupto” servem ao fascismo porque induzem ao desânimo, ao desprezo pelos que se candidatam, e a uma receptividade a qualquer “solução excepcional” que se apresente, como o fascismo geralmente faz, com slogans moralizadores, falando em “limpeza”, em “expurgo”, em “eliminação” de todos que fazem mal ao país. 

O fascismo se aproveita de episódios de impunidade de toda natureza: esquemas de enriquecimento ilícito, desvios de verbas públicas, nepotismo, suborno do Judiciário, indo até a impunidade dos autores de crimes comuns que aterrorizam a população: assassinatos, estupros, sequestros com morte, chacinas, etc. 

Historicamente, muitos regimes fascistas chegaram ao poder sucedendo (pelo voto ou pelas armas) um regime democrático onde a corrupção era generalizada (havia “falta de moral”), a violência nas ruas era ascendente (“falta de autoridade”) e havia uma crise econômica (“falta de competência”). 

Ao mesmo tempo, grupos organizados elegem-se para o Congresso, garantindo uma base de suporte de que o fascismo precisará nos momentos em que, sob pressões internas e externas, tiver que passar uma tinta de legitimidade sobre a ferrugem das suas medidas.

Interessa ao fascismo fazer crer que a situação é gravíssima e requer medidas excepcionais. Interessa-lhe fazer crer que o povo é burro e não sabe votar, e que os que se apresentam como candidatos são, invariavelmente, malfeitores de algum tipo.

Quando maior o número de crimes impunes, mais receptiva estará uma parte da população à chegada de um pretenso líder “da mão forte”, que vem para punir de forma rápida e exemplar os culpados, sem se deixar enredar nas firulas e nas tecnicalidades de um processo judicial. Alguém capaz de prometer e de executar uma justiça sumária e rápida contra os criminosos mais notórios, ganhando, assim, credibilidade para quando quiser agir da mesma forma contra quem quer que seja.

O fascismo promete à população preencher essas três faltas. 

A primeira, através de um discurso moralista e conservador cuja primeira providência é eliminar a possibilidade de retorno dos políticos corruptos (cancelam-se as eleições). 

A segunda, através da repressão policial em todos os níveis. 

A terceira, através do atrelamento a alguma potência estrangeira para a importação de tecnocratas, conselheiros militares, empresas, projetos, know-how e um conjunto de medidas bombásticas com efeito paliativo a curto prazo. A população se entusiasma com os “novos tempos” e ajuda o fascismo a fincar raízes.






2223) Brasília 50 Anos (23.4.2010)



Brincando, brincando, Brasília completou cinquenta anos e o Brasil ainda não sabe direito o que fazer com ela. É uma cidade cheia de homens, mulheres, histórias, destinos, acasos, dramas, comédias, tragédias como qualquer outra; mas virou símbolo visual e concreto daquela entidade abstrata a que chamamos Governo. Isto tem certa lógica inevitável, pois foi uma cidade criada com esse fim. Tudo que não presta nos Governos é atribuído à cidade, e tudo que não presta na cidade (que para muitos é a cidade como um todo) a culpa é do Governo. Moro no Rio há quase trinta anos e não conheço um carioca, um sequer, que goste sinceramente de Brasília. O que é compreensível. O Rio perdeu para Brasília a importância de ser Capital, as benesses de ser Capital, e essa ferida talvez não feche nunca. Menos mal que, na mentalidade do carioca, a Capital continua sendo aqui.

Como não sou carioca e essa briga pra mim é tão remota quanto um Gre-Nal, ouso dizer que gosto de Brasília. Pode ter qualquer defeito, mas é uma cidade com perfil único, dinâmica interna única, uma cidade que não pode ser confundida com nenhuma outra. Já fui a certos subúrbios no Rio ou São Paulo em que, virando uma esquina, me acreditava no bairro do Centenário ou do Quarenta. Uma quadra de Brasília só pode ser confundida com outra quadra de Brasília, e aliás é o que acontece o tempo todo.

Eu nunca moraria lá porque não dirijo carro, e aquela é uma cidade em cujas veias circula gasolina, não foi feita para pedestres, flâneurs, noctâmbulos ou peripatéticos. Tirando isso, eu me sentiria totalmente à vontade naquele xadrez geométrico, naqueles setores de serviços que parecem traçados na prancheta de um escritor de ficção científica do século 19. Brasília é uma das raras utopias que passaram do papel para o cimento. Se foi estragada é outra coisa; tudo que é essência platônica se estraga quando vira carne e osso, argamassa e ferro. Paciência. O que sei é que ali existe uma relação entre a terra e o céu que nenhuma outra cidade tem. As cidades litorâneas admitem o céu, mas só porque isto lhes é imposto pelo mar. Brasília, não. Em Brasília, à noite, tocamos a Via Láctea com a ponta do dedo.

Em 1969 o escritor Frederik Pohl veio para um Simpósio de Ficção Científica organizado no Rio de Janeiro por José Sanz, e aproveitou para conhecer Brasília. Diz ele: “Brasília é uma estranha cidade futurista no planalto. É o único lugar onde já fui em que os guias turísticos apontam um cruzamento e lhe dizem, não o que aconteceu ali em 1066, mas o que vai acontecer no próximo ano. Existe lá um impressionante edifício chamado Museu da História de Brasília. Está vazio”. Pohl visitou a cidade meros nove anos depois de criada, mas ainda hoje Brasília é uma cidade onde o futuro pesa mais do que o passado. Outras cidades mostram o que foi feito por todas as gerações de brasileiros. Brasília é a única que foi feita inteiramente por nós.

2222) Bolando um comercial (22.4.2010)



Raimundo era diretor de criação de uma agência de publicidade. Chegou-lhe às mãos um cliente, Seu Alfredo, em busca de um bom comercial de TV. Seu Alfredo era dono de uma loja revendedora de ferragens que recentemente tinha se expandido para absorver todo tipo de equipamento elétrico: serras, grampeadores industriais, máquinas de aplicar rebites, limas elétricas, soldadoras, enfim, tudo que funcionasse eletricamente e que fosse voltada para a manipulação de placas e máquinas de metal. Seu Alfredo gastou pesado na aquisição das lojas de um concorrente, e sentiu que era preciso investir também na publicidade, porque precisava de altos retornos dentro dos doze meses seguintes. Ele se reuniu com Raimundo e passou-lhe todas as informações. O publicitário pediu-lhe um prazo para apresentar o projeto. Algum tempo depois Seu Alfredo foi chamado à agência, e Raimundo abriu à sua frente um gigantesco storyboard.

“Vai ser um balé”, disse ele. “Uma estrutura metálica suspensa no ar, com vigas de ferro se entrecruzando, e quinze dançarinos executando essa coreografia... começa aqui... vem assim... se cruza aqui, depois ali... Eu sei que o sr. vai perceber, mas, para poupar tempo: é o movimento dos elétrons num átomo de ferro”. “Um átomo de ferro,” repetiu Seu Alfredo, olhando o desenho das dançarinas com “collants” metálicos, seios pontiagudos e coques futuristas no cabelo. “O ferro e a eletricidade são os conceitos básicos”, concordou Raimundo, tamborilando com o lápis no queixo. “Isso exprime ao mesmo tempo modernidade e tradição, porque ambos são a base da ciência do século 19, e ao mesmo tempo estão presentes em tudo no século 21”. “Pois é,” disse Seu Alfredo, espreitando as folhas de baixo, “já pensou?!”.

“Note que todas as bailarinas são mulheres”, continuou Raimundo. “O contraste entre Eros e Tecnologia, Afrodite e Vulcano”. Seu Alfredo criou coragem e perguntou: “Não dá pra ter uma foto da loja?...” “Pensei nisto”, disse Raimundo, “mas escolhemos privilegiar o impacto estético.” “E essas vigas de ferro?...” perguntou timidamente o comerciante. “Tudo virtual. Computação gráfica, feita aqui mesmo. Ninguém nunca fez um comercial destas dimensões na Paraíba”. “Que bom,” murmurou Seu Alfredo. “Mas vai ser um balé? Esse negócio de música clássica não é fora de moda?...” “Quem falou em música clássica?! Vai ser um rock!” Raimundo apertou um botão e das caixas de som brotou um rangido de guitarras que lembrava um duelo de esgrima entre serras elétricas texanas. “Heavy metal. Entendeu – a alusão?…”

Meia hora depois Seu Alfredo saiu, levando na pasta três páginas de orçamento e pelo menos um mês de insônia pela frente, e uma admiração desmedida pela época cosmopolita em que tinha o privilégio de estar vivendo. Raimundo enxugou o suor da testa. Tinha conseguido, numa só tacada, encomendas para a firma de computação gráfica do sobrinho, o balé da cunhada e a banda de rock do filho. Ufa!

2221) Neymar (21.4.2010)



Dias atrás fiz nesta coluna uma porção de rapapés diante das chuteiras de Lionel Messi, o craque argentino que joga no Barcelona. Meu senso de equilíbrio me obriga a fazer o mesmo, agora, diante das chuteiras coloridas (e cheias de chinfra) de Neymar, o craque adolescente do Santos. Não só por equilíbrio, mas por patriotismo, porque eu, curiosamente, só concebo a Pátria como algo que calça chuteiras. Não existe melhor expressão do Brasil do que os nossos defeitos e virtudes na prática do futebol. Mais do que a literatura, o cinema ou a música, é ele quem nos descreve e nos revela de maneira mais imediata e não negociada pela Razão.

A Razão, que nunca dá o braço a torcer, me traz pela mão até este teclado, dizendo-me: “Está na hora de escrever sobre Neymar, você é o único cronista do Brasil que ainda não falou dele”. Neymar e o Santos são hoje, por uma espécie de consenso, o melhor jogador e o melhor time do Brasil. Domingo passado o Santos eliminou o poderoso São Paulo numa das semifinais do Campeonato Paulista: aplicou-lhe 3x2 no Morumbi e 3x0 na Vila Belmiro. Só uma catástrofe lhe tirará o título, a ser disputado contra o Santo André.

O Santos é um time que dá alegria ver jogar. Como o Barcelona de Messi e a Holanda da Copa de 1974, é um time de jogadores rápidos, leves, habilidosos, que raciocinam em frações de segundo e quase invariavelmente escolhem a melhor jogada a fazer sem precisar ficar pensando. O futebol de hoje é cheio de jogadores que, quando recebem um passe perto da área, iniciam uma sessão de Meditação Transcendental. Concentram-se, começam a rodar como dervixes, fecham os olhos, avaliam as mil possibilidades do que fazer. Nisto, algum jogador do Santos já lhes roubou a bola com asas de beija-flor, e Neymar já a empurrou para o fundo das redes.

Neymar vai ser convocado para a Seleção? É o que a imprensa pergunta, e eu ouso responder que não. Por mim, iria, mas Dunga é um prussiano da velha guarda. Não direi que tem raiva do talento, mas ele segue a filosofia de que talento é como ar, só tem poder de empuxo se for comprimido. Neymar é enjoado, encardido, usa um cabelo moicano horroroso, faz dancinhas bestas a cada gol que marca, é catimbeiro, arengueiro, gosta de fingir pênaltis, de provocar o adversário. Ou seja, na alfândega de Dunga ele teria todo o seu repertório confiscado.

Dunga deveria convocá-lo, levá-lo à Copa e mantê-lo sob vigilância e custódia, para aparar as arestas do garoto, fazê-lo sentir o peso de uma disputa internacional. Dar-lhe o que Ronaldo Fenômeno teve em 1994, e Kaká teve em 2002: a chance de assistir uma Copa do banco de reservas, pensando: “Daqui a quatro anos estarei em campo”. Dunga dificilmente fará isso, o que é uma pena. O melhor jogador brasileiro de hoje só deverá estrear numa Copa do Mundo em 2014. Até lá pode explodir na Europa; pode também se perder, como tantos talentos iguais já se perderam, neste país carente de heróis e perdulário de talentos.

2220) Ler Maiakóvski (20.4.2010)




O mundo comemora os 80 anos da morte de Vladimir Maiakóvski, um dos maiores poetas que já existiram, ao menos pelo meu gosto. 

Conheci sua obra numa edição dos anos 1960, com traduções de Augusto & Haroldo de Campos e Boris Schnaidermann. A edição atual deste volume, Poemas, é da Ed. Perspectiva (São Paulo, 2002, Coleção Signos). Traz um bom número de poemas traduzidos, vários pequenos ensaios biográficos e críticos, e o texto completo de Eu Mesmo, um saboroso conjunto de fragmentos autobiográficos do poeta. É sua melhor coletânea de poemas traduzidos.

Depois, veio um volume que hoje é relativamente raro: Maiakóvski – Vida e Obra de Fernando Peixoto (José Álvaro Editor, 1969). Faz parte de uma inestimável coleção de capas amarelas, lançada nessa época, que também teve volumes sobre Sartre, Kafka, Brecht, Henry Miller... 

O livro de Fernando Peixoto, que é um homem de teatro, tem a vantagem de dar muito espaço ao trabalho de Maiakóvski no teatro e no cinema, onde ele foi muitíssimo atuante. E de dar traduções alternativas para inúmeras estrofes. 

Maiakóvski era um poeta complexo, fazia intrincados jogos de rimas, assonância, métrica, etc. Cada tradutor é forçado a puxar para um lado ou para outro, ao adaptar seus versos. Se o leitor não sabe russo (como eu), quanto mais traduções diferentes ler, mais tem uma idéia do que é o poema original, pois cada tradução o vê de um ângulo diferente.

O terceiro volume essencial para entender o poeta é A Poética de Maiakóvski de Boris Schnaidermann (também da Ed. Perspectiva, São Paulo). Schnaidermann faz uma detalhada e anotadíssima análise da obra do poeta, dando-lhe um contexto amplo e minucioso. E transcreve numerosos artigos do próprio Maiakóvski, entre eles a mesma versão de Eu Mesmo já referida acima, e uma versão completa do Como fazer versos?, o livrinho em que Maiakóvski explica seu modo de ver a poesia, suas técnicas, seus truques, seu processo de criação. É uma das melhores coisas já escritas sobre poesia por um poeta.

Se alguém pretende ser um poeta, a sério, irá ganhar muito não apenas lendo estes três livros, mas relendo-os a vida inteira, como tenho feito. 

Não que isto possa tornar a gente um grande poeta (no meu caso, por exemplo, não tornou – considero-me um poeta mediano, no contexto do meu Estado e da minha geração). Mas nos dá algo que pra mim é muito mais importante do que ser um Grande Poeta: ser capaz de entender um Grande Poeta. Em outros termos: ser um grande leitor de poesia. Porque nem todo mundo nasceu para escrever, não é verdade? Uns nascem para ser médicos, outros músicos, engenheiros, futebolistas, administradores, dentistas, o escambau. 

Nem todo mundo precisa ser Poeta. Mas todo mundo pode ser um Grande Leitor de Poesia. No momento de ler um poema de Maiakóvski, cada um de nós vive alguns minutos de ser Maiakóvski. E isto não tem preço.





2219) Sobrado Mardito (18.4.2010)




Pense num caba teimoso era Dedé. Depois que ele bateu o olho no portão de ferro daquele sobrado ele num falava noutra coisa. Bora, maluco, ele dizia, se a gente meter o ombro aquela butina vem abaixo e a gente entra. É, eu dizia, e quando entrar vem o maior pitibu em cima da gente, tá ligado? Oxente, rapaz, ele dizia, ali num tem cachorro nem nada, uma noite dessa eu fiz o teste, joguei um peido-de-véia aceso e fiquei esperando, quando pipocou latiu cachorro no prédio da esquina, latiu na casa rosa em frente, latiu até na outra rua, e no sobrado nada.

Ele dizia que o povo do sobrado devia estar veraneando na Europa. A gente passava ali de vez em quando quando voltava do pega-bebo de Alaôr, era o caminho mais curto pra pensão. Eu trabalhava na obra dum viaduto e Dedé fazia bico de flanelinha. A viage dele era entrar em casa de bacana e passar dois três dias. Num era nem pra roubar, que se ele roubasse num ia nem saber como vender, era alesado, ia ser pego num instante. Ele dizia: dormir em lençol de seda, tá ligado? Abrir a geladeira, escolher coisa, sentar em sofá, andar nu por dentro da casa.

Aí um dia a gente tomou umas caeba e na volta putufo, botou o portão abaixo, arrodeou o jardim, quebrou uma janela e quando viu tava dentro. Só acendemo a luz depois de puxar as cortinas de pano. Rapaz, a festa não teve mais tamanho. A geladeira era cheia de comida. A gente abriu vinho, abriu uísque, fez um melelê danado na sala, logo na primeira noite! Lá mesmo dormiu. No outro dia, quedê que ninguém queria ia trabalhar? Trabalhar pra que, o caba dormindo num sofazão daquele? Eu saí, arrumei duas quenga e trouxe pra dentro, aí num prestou não. A gente não acertou a ligar o som mas ligou a TV, achou um canal de música e tome uísque, e tome sarrafo nas nega.

Foi só na outra noite que eu resolvi subir no primeiro andar. Dedé bebo, a nega dele fazendo espuma na banheira feito no cinema, e a minha dormindo, porque o serviço foi pesado. Subi e fui olhando de quarto em quarto. Um deles tava trancado por dentro, mas eu desci, busquei uns ferro e arrombei. Rapaz... melhor não tivesse feito. Era um quarto vazio, sem um móvel, sem uma coisa, nada, nada. Quer dizer – num recanto eu vi um negoço que parecia uma nuvem cinzenta, a meio metro de altura. Cheguei perto, era uma coisa redonda do tamanho dum prato, suspensa no ar. Eu arrodeei e olhei pelo outro lado. Era como uma lâmpada grande, um refletor, só que não projetava luz, projetava treva. Fiquei tonto e caí de joelhos. O rosto a um palmo de distância daquilo. Diante dos meus olhos um túnel cilíndrico, se alargando até virar uma esfera pelo avesso, e uma treva, absoluta e sólida como o mármore, fluiu para dentro de mim, saturou minhas retinas, galvanizou meus nervos, meus neurônios, minhas sinapses, e me petrificou e eternizou como estátua sólida de treva, me transformou no menor grão de treva num universo só de treva feito, e ficou assim para sempre.





2218) Música Erudita e Música Espontânea (17.4.2010)




Um dos clichês mais frequentes no jornalismo cultural (como este que eu pratico) é o de contrapor música erudita e música popular. 

Qualquer leitor de suplementos culturais entende o que é isso. Eruditos são Bach, Beethoven, Chopin; populares são Roberto Carlos, Michael Jackson, Luiz Gonzaga. Parece que, mesmo que não exista uma linha nítida separando os dois grupos, eles são mesmo dois, e diferentes um do outro.

Existem, entretanto, artistas que tanto podem ser incluídos num grupo quanto no outro. Wagner Tiso, Edu Lobo, Paulo Moura, são eruditos ou são populares? Eu acho que esta é uma falsa questão, e direi por que.

A divisão entre Erudito e Popular é equivocada porque mistura critérios heterogêneos, que se referem a coisas diferentes. Parece aquele verso de Drummond em que ele se refere à “vitória do pequeno contra o muito”. Um não é o contrário do outro, é o contrário de algo que se parece com o outro.

“Popular”, por exemplo, é o contrário de “aristocrático”. Refere-se à origem social de uma cultura qualquer.

Aristocracia, em princípio, nada mais tem a ver com erudição. Pensamos que tem a ver porque essa música que chamamos de erudita foi criada no contexto da aristocracia, foi patrocinada por ela ao longo de séculos; identificou-se com ela; mas difundiu-se a tal ponto que perdeu essa exclusividade. Muitos grandes músicos compositores dessa própria música de origem aristocrática tiveram origem pobre. Hoje, a música erudita é ensinada em Conservatórios para rapazes de moças de qualquer origem social.

Qual é o contrário de Música Erudita, então? Eu diria que é “Música Espontânea”, música feita sem estudo teórico, formal, sistematizado.

Música ensinada e aprendida por mero lazer, num contexto familiar ou de amizade, ao invés de num contexto de ensino formal. Poderíamos usar como pedra-de-toque ou tira-teima, para diferenciar as duas, a prática da música escrita. No momento (eu diria) em que um músico é capaz de ler e escrever, é capaz de registrar algo numa partitura e de ler e tocar algo que está escrito em outra, ele deixa de pertencer à Música Espontânea e passa a pertencer ao mundo da Música Erudita, independentemente de sua origem social, ou do tipo de ritmo que está tocando, pode ser uma sinfonia ou um forró.

Um músico de frevo que toca por partitura é Popular por origem social e Erudito pela educação que recebeu.

Erudito e Espontâneo indicam os dois pontos extremos numa escala de absorção de uma norma culta musical, criada e mantida há séculos. Mais uma vez, não há uma linha nítida separando as duas; são gradações.

Qualquer tocador de cavaquinho que faça um acorde está se beneficiando de algo criado há séculos no contexto da Música Erudita. Esta, no entanto, não é mais sinônimo de Música Aristocrática, embora pareça, e seus rituais públicos (concertos, etc.) ainda se revistam, por tradição e charme, dos rituais da classe social que lhes deu origem.








2217) Jornalismo de emergência (16.4.2010)



A imprensa destacou, após a tragédia das chuvas no Rio de Janeiro, dias atrás, a importância das chamadas rede sociais eletrônicas, coisas como Facebook, Twitter, etc., para criar um canal extra de comunicação entre as pessoas. Eu destacaria também o papel das grandes redes de TV e de rádio. Quando acontece uma catástrofe ou pelo menos um gigantesco transtorno em nossas cidades é que a gente entende a utilidade dessa monstruosa rede de telecomunicações que começou a ser criada nos anos 1970 pelos governos militares. O Brasil é um dos países eletronicamente mais bem cobertos do mundo. Nossas TVs, nossas comunicações telefônicas e mais recentemente nossas comunicações via celular estão entre as melhores do mundo em abrangência, mesmo que não na qualidade dos serviços – porque as empresas, claro, estão mais preocupadas em abocanhar fatias do mercado, cortar custos e maximizar lucros.

Quando tivemos um enorme apagão no Sudeste e Centro-Oeste no ano passado, dias depois já havia uma camiseta à venda no Brasil todo: “Apagão 2009 – Eu twittei!”. Porque na hora em que deu uma falta de luz geral, foi no twitter via celular que milhões de pessoas passaram a trocar informações. Informações muitas vezes cruciais, tipo “não passa na rua tal que está havendo arrastão”, “trânsito engarrafado não sei onde”, etc. O Twitter surgiu como um canal urgente de informação rápida, breve e objetiva. E – ouso agora lançar minha teoria – é para isto que foi feito. Para casos de emergência. Não para que um “ex-BBB” desocupado fique escrevendo “fui no banheiro” para 10 mil desocupados ficarem sabendo que ele foi no banheiro.

É no jornalismo de emergência que as grandes redes dão um banho de informação, mesmo descontando todos os seus defeitos habituais (preconceitos, interesses políticos velados, demagogia às custas do sofrimento dos pobres, etc.). Num momento de emergência, o que eu quero é a maior quantidade e diversidade possível de informação, para poder me inteirar do que está de fato acontecendo e tomar, se for o caso, as minhas precauções. Em casos excepcionais dessa natureza a TV (e o rádio, etc.) mostra para que foi feita.

Durante o temporal do Rio eu estava na Paraíba. Não sou twitteiro, mas bastou-me acessar o Facebook para saber (sem necessidade de ligar para os amigos, de um em um) o que meus vizinhos de Laranjeiras estavam passando. O Facebook inclusive me proporcionou ver fotos tiradas da janela com legendas tipo: “Rua das Laranjeiras às 15:30” e assim por diante. Bastava ir na página principal e rolar as mensagens para saber onde continuava a chover, onde já tinha parado, onde estava inacessível; e acompanhar o drama de Fulano que teve de ir dormir fora e o de Sicrano que teve a casa interditada por um deslizamento. Para isso foram criadas nossas redes sociais. Não pra ficar dizendo: “20:00 – Vou tomar uma cerveja. 20:05 – Ih, a cerveja acabou. 20:10 – Vou lá embaixo comprar cerveja”.

2216) A estratégia das falsas soluções (15.4.2010)




Circula na Internet um documento atribuído ao linguista Noam Chomsky, um conhecido crítico das políticas dos EUA. O documento que circula talvez seja apócrifo, mas não importa. O autor enumera e comenta algumas das estratégias utilizadas pelos governos e pelas corporações para manter o controle ideológico da população e impedir que suas ações sejam questionadas.

Tudo isto faz parte do modelo de ação das atuais ditaduras, que, diferentemente das ditaduras violentas e repressivas do século 20, as que eu chamo de Ditaduras do Chicote, são ditaduras gratificadoras e dissipativas, o que chamo de Ditaduras do Chiclete. “Gratificadoras” porque perceberam (como no famoso prefácio de Aldous Huxley ao seu Admirável Mundo Novo) que dominar pelo prazer é mais eficaz do que pela violência e pelo medo; “dissipativas” porque ao invés de reprimir e perseguir as idéias que lhes são contrárias elas as dissipam e diluem numa enxurradas de idéias contraditórias, irrelevantes e neutralizadoras.

O documento atribuído a Chomsky refere o que chama de “Estratégia de Falsas Soluções”, que consiste no seguinte: “Criar problemas, depois oferecer soluções. Este método também é chamado ‘problema-reação-solução’. Cria-se um problema, uma ‘situação’ prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.”

As ditaduras atuais procedem assim, e não me refiro à Coréia do Norte ou à China. Ditaduras do Chiclete são a quase totalidade dos governos ocidentais e modernos. (Este “quase” entra aqui como ressalva retórica, mas se me pedirem uma exceção que o justifique eu não vou saber dizer.) No caso do Brasil, por exemplo, a ditadura não é Lula, não é o PT. O poder republicano de Brasília é um enorme aparato teatral de muita agitação e pouca eficácia, montado para distrair a atenção do público enquanto a verdadeira ação do poder (a ação econômica) se desenvolve em segundo plano.

Na “Estratégia das Falsas Soluções”, ninguém responsabiliza as grandes corporações pela criminalidade nas ruas: responsabiliza a prefeitura, o governo do Estado, e mais remotamente o governo federal. Os problemas não precisam ser criados por esse “governo invisível”, em geral eles são apenas efeitos colaterais de sua ação (exploração predatória de recursos naturais, desemprego em massa por fechamento de fábricas, etc.). Quando aparecem, no entanto, são úteis para ele, porque desviam na direção do “governo visível” a atenção da população e da imprensa, que cobra medidas para amenizar os efeitos, sem questionar as causas.