segunda-feira, 24 de maio de 2010

2069) Aquele de Nós (25.10.2009)




Aquele de Nós que escreve estas linhas é um dos que têm condições materiais menos propícias, pois é obrigado a trabalhar para sobreviver. Seu desenvolvimento embrionário permite-lhe alimentar as ilusões costumeiras sobre sua individualidade e livre-arbítrio. Como nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos, cabe-nos dar-lhe apoio, transmitir-lhe energia, para que evolua e possa mais adiante equiparar-se a Nós. Voltamos para ele nossa atenção, mesmo ao custo de nos isolarmos dos variados ambientes em que estamos, e de nos afastarmos durante algumas horas das atividades que nos ocupam em várias partes do mundo. Mas quando sentimos bruxulear, indecisa, a luz de sua inteligência, temos que nos fazer presentes para avivá-la. É a lei única, a única maneira de agir. Ele é um de Nós.

Estamos tendo cuidado, neste instante, de não permitir que ele revele sobre Nós mais do que já é sabido. Tudo precisa ser dito como um texto de ficção ou uma crônica fantasiosa, como tantas que ele produz. Nós o monitoramos o tempo inteiro, porque na verdade somos Um Só o tempo inteiro, e sabemos o quanto lhe é possível afirmar ou especular sem despertar suspeitas da nossa existência.

Apesar do fortíssimo vínculo que nos unifica, cada um de Nós tem uma existência humana individual, sujeita a variações, a flutuações estatísticas. Se não fosse assim, seria difícil integrar-nos a uma sociedade humana, em que o conceito de individualidade é ainda mais importante do que o de Divindade (pois mesmo entre os que se afirmam ateus não existe um só que duvide da sua própria existência como indivíduo). Permitir que tenham nome, que acumulem memórias pessoais e desenvolvam personalidades aparentemente distintas é uma forma de abrigar com segurança, por trás desses milhares de máscaras, o rosto uno e idêntico que é o nosso.

Por isto, ao que escreve estas linhas é permitido revelar ou sugerir muito do que a outros seria vedado. A cultura em que está imerso privilegia a ficção, as invenções, o devaneio imaginativo. É uma cultura de projeções coletivas num enorme écran que eles acabam por supor mais real do que eles próprios. É irônico que, numa civilização que acredita na existência de mentes individuais, todas se esforcem tanto para absorver imagens alheias refletidas em filmes, livros, espetáculos. Crêem-se únicos, e talvez esse excesso de segurança lhes provoque o desejo de se projetar em heróis, em personagens, em líderes.

O de Nós que aqui escreve é um dos que se beneficiam dessa indústria de personalidades postiças e colabora com ela, inventando enredos, inventando personas. Essa profissão talvez contribua para que ele seja tão desatento a si mesmo, tão desprendido, tão indiferente ao culto do próprio rosto e do próprio nome. Ele sabe que todos os seus semelhantes são ficções, e que ele próprio não passa de um Terminal através do qual se manifesta a Nossa existência.

2068) Auto-ficção (24.10.2009)




O “Segundo Caderno” do Globo fez um grupo de matérias sobre literatura autobiográfica. Fiquei sabendo da existência da cidadezinha (13 mil habitantes) de Ambérieu-en-Bugey, na França, que se auto-intitula “Cidade da Autobiografia”. Foi ali que o pesquisador Philippe Lejeune instalou em 1992 a Associação pela Autobiografia e pela Preservação do Patrimônio Autobiográfico (APA), cuja missão é “receber, ler, comentar e preservar todo e qualquer escrito autobiográfico que lhe seja encaminhado”. Há um inevitável encontro anual que estimula o turismo e o comércio do lugarejo, mas o mais importante é que essa entidade não se volta para os autobiógrafos famosos. A APA recebe cerca de 180 textos por ano, dos quais 75% são autobiografias, 20% diários e 5% conjuntos de cartas, “cuja extensão varia de 20 a 13.000 páginas, geralmente (mas não apenas) escritos por pessoas nascidas nas décadas de 1920 e 1930”.

Lejeune é autor de um livro, O pacto autobiográfico (saiu no Brasil pela Editora da UFMG) onde diz que a autobiografia é um gênero “definido por um pacto, no qual o autor promete ao leitor contar a verdade a respeito de si e de sua vida”. Ora – como diria Pilatos, o que diabo é a verdade? É sobre este mais elusivo dos conceitos que a autobiografia funda seus castelos de palavras. Como confiar na verdade alheia, na palavra alheia? Eu próprio já defini autobiografia como “um livro em que um cara prova que quem tinha razão era ele”. O que há de fascinante na autobiografia é justamente que ela absorve todas as nuances possíveis da palavra “verdade”.

Diz Lejeune, com muita argúcia: “A autobiografia não é um texto onde alguém diz a verdade. Ela é um texto onde alguém diz dizer a verdade. Na prática, há portanto autobiografias perversas, lúdicas, brincalhonas etc. Mas essas perversões e desconfianças só podem existir no campo do discurso aberto pelo pacto autobiográfico. A ficção pode, de maneira interna, construir sistemas vertiginosos, mas é incapaz de fazer essa coisa simples, mentir, porque ela em momento nenhum promete a verdade”.

No Brasil, temos o Museu da Pessoa (http://www.museudapessoa.net/), que cumpre uma função parecida, e ao qual já recorri para pesquisar trabalhos. Meu maior problema era que baixava os relatos autobiográficos para checar dados, e passava a semana inteira lendo as vidas (fascinantes, surpreendentes, enriquecedoras) de gente anônima que fazia suas autobiografias em forma de entrevista. (Não sei se os critérios de Lejeune incluiriam esse formato; para mim, não há muita diferença). Coleridge falou que qualquer vida humana, bem contada, daria um belo romance. Talvez a vida de um cara como Pedro Nava, por exemplo, não tenha sido muito diferente da vida de seus companheiros de geração e de classe social, mas a questão é que Nava tinha uma observação arguta, uma memória imensa (cujas lacunas, sem dúvida, a imaginação supria) e uma magnífica capacidade de narrar.

2067) Os melhores planos dos vilões (23.10.2009)




(Gert Frobe, como Goldfinger)

O saite FilmCritic tem, para desocupados como eu, aquela tradicional seção de listas dos “10 Melhores Isto”, “12 Piores Aquilo”. 

Uma que chamou minha atenção foi a dos Dez Melhores Planos de Vilões. Um bom filme de ação, policial, etc., depende em grande parte do plano maluco ou megalomaníaco concebido pelo vilão. 
 Alguns deles são comentados no saite: http://www.filmcritic.com/misc/emporium.nsf/reviews/The-Ten-Best-Evil-Plans

O plano de Goldfinger no filme homônimo da série James Bond foi, na época, de grande originalidade. Ao invés de tentar roubar o pesadíssimo ouro de Fort Knox, nos EUA, o vilão pretendia torná-lo radioativo com a explosão de um pequeno artefato nuclear, para inviabilizar as reservas norte-americanas, valorizando o ouro do vilão.

Outro golpe hábil é o do vilão do filme Duro de Matar. Querendo ter acesso a um cofre super protegido, ele invade o edifício e anuncia ser aquele um atentado terrorista. Começa a ameaçar os reféns, exigir a libertação de presos, etc., por saber que uma das medidas inevitáveis da polícia, em tais circunstâncias, é desligar a eletricidade do prédio – justamente o que ele precisa para poder ter acesso ao cofre.

O golpe urdido pelo maligno Keyser Soze em Os Suspeitos é igualmente hábil, mas este é um filme que não pode ser livremente discutido sem se estragar a surpresa dos seus minutos finais, que nos forçam a (como fiz) rever o filme inteiro sob outro paradigma. O roteiro é brilhante, e o golpe se baseia numa espécie de gambito no xadrez – a tática que nos faz entregar ao adversário uma peça de menor valor para com isto conseguir algum tipo de situação mais vantajosa.

O pessoal do FilmCritic coloca entre os “melhores planos” alguns que eles mesmos consideram não-tão-melhores-assim. Entre eles, dois de filmes de ficção científica que aprecio bastante, mesmo considerando que seus enredos se baseiam em premissas absurdas. 

O primeiro é O exterminador do futuro de James Cameron. A premissa de mandar um cyborg ao passado para matar a mãe de um futuro líder rebelde é tão clichê na FC que ninguém faz a pergunta que o FilmCritic faz agora: não seria mais fácil matar o líder rebelde lá mesmo no futuro, quando os humanos não passam de um grupo precariamente armado e encurralado por milhares de robôs?

Outra premissa meia-bomba é a do filme Matrix, em que as máquinas dominam o mundo e usam os corpos humanos como fontes de energia, enquanto mantêm suas mentes ocupadas com uma realidade virtual onde eles imaginam viver uma vida suspeitamente semelhante à do nosso presente. 

Centenas de críticos já questionaram a relação custo-benefício dessa situação, e o FilmCritic indaga se não seria mais simples usar bois ou baleias para tanto. Afinal, são mamíferos cujo metabolismo os qualifica como “baterias biológicas” com muito mais energia, além de provavelmente não precisarem de realidade virtual nenhuma.








2066) “A Máquina do Tempo” (22.10.2009)



Revi no DVD esta adaptação dirigida por George Pal em 1960 para o romance clássico de H. G. Wells, em que um inventor, o fim do século 19, constrói uma máquina que o conduz ao ano 802.701. Vi este filme aos dez anos e é ainda hoje um dos que me produziram uma impressão mais forte. Quase meio século depois, algumas imagens estavam perfeitamente nítidas na minha memória, e neste intervalo creio só tê-lo revisto uma vez, na “Sessão da Tarde” da TV.

A longa sequência inicial do filme tem uma ambientação “steampunk”, na Londres vitoriana, reproduzida com fidelidade cinematográfica. Ou seja: o filme é fiel aos filmes anteriores, e é irrelevante se a Londres real era daquele jeito ou não. George Pal fez uma quantidade razoável de filme de FC sem genialidade mas cheio de pequenos toques brilhantes, principalmente quanto ao visual. Neste filme, a obra-prima é a máquina em si, uma espécie de trenó metálico em tamanho grande, com um painel de controle, um assento, e – este é um toque do filme, ausente no livro de Wells – um enorme disco rotatório por trás do assento, disco que se põe em movimento quando a máquina é acionada. O design da máquina é de William Ferrari, que voltou a trabalhar com o diretor em Atlântida, o Continente Perdido (1961), e também foi diretor de arte em episódios da série Twilight Zone (1959-1963).

A sequência da primeira viagem pelo Tempo, com câmara acelerada, flores desabrochando a olhos vistos, o sol percorrendo o céu a toda velocidade, é uma das melhores coisas do filme. Pal e seu roteirista David Duncan fazem o Viajante no Tempo fazer duas paradas intermediárias (que não constam do livro de H. G. Wells), uma em 1917 e outra em 1940, ambas durante as guerras mundiais, e mais uma terceira em 1966, quando está em curso uma outra guerra, desta vez com armas atômicas. É uma alteração no enredo que de certa forma o reforça, pois Wells foi um crítico feroz da guerra.

O filme cai um pouco quando o Viajante no Tempo chega ao futuro, porque a situação proposta por Wells sofre uma diluição braba. A humanidade está dividida entre os Elois, que são lourinhos, ingênuos, e vivem como hippies inofensivos, tomando banho de rio e comendo frutas; e os Morlocks, criaturas monstruosas, que vivem no subterrânea cuidando das máquinas. Os Morlocks do filme têm uma aparência grotesca e não parecem muito as criaturas albinas, fotófobas mas inteligentes do livro de Wells. E toda a especulação sociológica de Wells se dilui. Também está ausente do filme a ida final do Viajante para o futuro remoto, daqui a milhões de anos, quando o sol está a ponto de se apagar.

A não ser isto, o traçado geral do filme segue de perto a obra original. A primeira metade é melhor do que a segunda. É um filme de FC dos anos 1960 que merece ser visto e revisto, pelo charme com que reconstitui uma obra clássica numa recriação visual que em muitos momentos se equipara ao livro.