quinta-feira, 15 de abril de 2010

1918) As HQs de Roberto (2.5.2009)



A Jovem Guarda, onda em que aprendi a surfar na prancha do rádio, foi um reduto de uma forma que está caindo em desuso: a canção narrativa. A canção que conta uma historinha como começo, meio e fim. Eram histórias bobas; mas uma parte do seu charme era essa ingenuidade de história em quadrinhos, de histórias de amor bobinhas, que pouco lembravam o rude mundo roqueiro de James Dean ou Marlon Brando. As letras da Jovem Guarda lembravam os quadrinhos de Marge, a criadora de Luluzinha & Bolinha. (Alguém ainda sabe tocar “A Festa do Bolinha”?)

Assim era o repertório de Roberto Carlos. “O Gênio” (“Andando um dia na rua notei / alguma coisa caída no chão...”) é a historinha divertida do cara que encontra a lâmpada de Aladim na rua, pede garotas e dinheiro, e vê o Gênio ficar com tudo para si e se instalar na sua casa. Em “Os 7 cabeludos” (“Tudo começou quando Lili foi à esquina / a turma da outra rua se empolgou com a menina...”) há uma tentativa de recriar brigas de rapazes por causa de uma garota: “Brigamos muito tempo / rasgamos nossa roupa / fugimos da polícia que já vinha feito louca”, mas são as briguinhas leves e sem consequências dos musicais de Elvis Presley.

“História de um Homem Mau” (“Eu vou contar pra todos / a história de um rapaz / que tinha há muito tempo / a fama de ser mau...”), com suas modulações ascendentes, é um faroeste que vai criando um suspense comparável ao de filmes como Matar ou Morrer ou Appaloosa. Mas a maior parte das historietas são pequenos episódios do cotidiano, como “Pega Ladrão” (“Estava com meu broto no portão / quando um grito ouvi: pega ladrão!...”). O narrador vê todo mundo perseguindo e subjugando um sujeito que roubou um coração. Sem acreditar nisso, ele interfere: “Não pode um coração alguém roubar!” Aproveitando a distração, o ladrão volta a fugir, e ele fica sabendo “que o tal coração / era uma jóia pendurada num cordão”.

Automóveis eram um dos temas preferidos de Roberto, tema que lhe deu clássicos desde “O Calhambeque” até “As curvas da estrada de Santos”. Um dos meus preferidos nesta linha é “Parei na contramão”: “Vinha voando no meu carro quando vi pela frente / na beira da calçada um broto diferente / joguei o pisca-pisca para a esquerda e entrei / a velocidade que eu vinha, não sei / pisei no freio obedecendo ao coração e parei – parei na contramão...” Ele buzina para a moça, e a buzina não funciona. O guarda cai em cima e lhe aplica uma multa. Ele vai embora sem ver mais o broto, mas diz que da próxima vez “a buzina vai funcionar”. No show, isso era pretexto para uma buzinaria vocal ensurdecedora: “bibí... bibí...”

E não esqueçamos a ficção científica de “O Astronauta”, em que ele diz que prefere “desligar os controles da nave espacial / para ficar para sempre no espaço sideral...” As canções-HQ de Roberto são o retrato mais inocente de um tempo épico, trágico, o ponto de mutação em que, para o bem e para o mal, o Brasil virou outro Brasil.

1917) Quem matou Roger Ackroyd (1.5.2009)




Como sabem os aficionados, quem matou Roger Ackroyd fui eu. O assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie (1926) é um dos livros mais famosos do romance policial. Quando o crítico Edmund Wilson escreveu um artigo devastador contra o gênero, que ele detestava, intitulou-o: “Quem diabo quer saber quem matou Roger Ackroyd?”. 

O livro é famoso por uma razão maior e uma razão menor. 

A menor é que nele aparece Caroline Sheppard, solteirona fofoqueira de vila do interior, que se mantém informada sobre a vida de Deus-e-o-mundo através de uma rede invisível de carteiros, leiteiros, empregadas domésticas, etc. Ela serviu de modelo para que Lady Agatha criasse depois sua “detetive” Miss Marple, que viria a desvendar dezenas de mistérios. 

A razão maior para a fama do livro envolve a revelação de quem é o criminoso. Basta dizer que na Inglaterra houve uma verdadeira onda de inteligências ultrajadas quando o romance foi lido. Incontáveis leitores queixaram-se de que a autora não fez jogo limpo, sonegou informações essenciais, etc. Ms. Christie defendeu-se, mostrando que espalhara pistas ao longo de todo o livro dando dicas (para quem soubesse interpretá-las) sobre a identidade do assassino. 

Processo, aliás, característico de seu estilo, e um dos seus pontos fortes. Em todo livro seu, quando Hercule Poirot mostra suas deduções finais, a gente dá uma tapa na testa: “Como eu sou burro! Eu prestei atenção nisso, mas pelo motivo errado!”. 

Saiu há poucos anos na França o livro Qui a tué Roger Ackroyd, de Pierre Bayard, um professor de literatura cujo livro de maior sucesso, já traduzido no Brasil, é Como falar dos livros que não lemos? (Rio: Objetiva, 2008). 

Bayard disseca o romance de Ms. Christie, aponta as contradições do enredo, as falhas e omissões, etc. Faz uma análise tão impiedosa (e reveladora) quanto a que Thomas L. Stix fez com um conto clássico de Conan Doyle no seu ensaio “Os 7 erros em ‘A Liga dos Cabeças-Vermelhas’”. 

Na segunda parte do livro, Bayard reexamina o mito de Édipo, o primeiro detetive, e recolhe elementos para, no final, recontar o enredo do romance e mostrar quem foi o verdadeiro assassino. 

Os críticos christianos devem ter ficado se mexendo na cadeira, porque Bayard faz, com a vantagem da visão retrospectiva, claro, uma articulação de pistas e de provas muito mais sensata do que a de Poirot no romance original – e sugere um novo e imprevisto assassino. Ele propõe, para um romance policial clássico, uma reinterpretação que lhe muda o sentido. 

 Estamos acostumados a essas releituras na literatura erudita. Capitu, Raskolnikov, Leopold Bloom: a toda hora tem alguém trazendo uma luz totalmente nova sobre eles. Mas isto é novo no romance de detetive, que é uma estrutura fechada, de uma só resposta e um só final. A bibliografia de Bayard mostra que ele já fez o mesmo com O Cão dos Baskerville de Conan Doyle e com o Hamlet. Creio que vale conferir.






1916) Eldorado e Juventa (30.4.2009)



Eram dois os mitos principais que atraíam conquistadores portugueses e espanhóis para as florestas, para os platôs, os cerrados, as cordilheiras e os sertões da América recém-descoberta. O primeiro era o Eldorado, a cidade fabulosa cujas ruas eram calçadas com pedras de ouro. O segundo era a Fonte de Juventa, onde brotava uma água que dava vida e juventude eternas a quem a bebesse. As ramificações literárias dessas duas idéias encheriam uma biblioteca estadual. Claro que nenhuma das duas nasceu com a América, e nas mitologias grega, nórdica, etc. encontramos suas versões beta. Mas ressurgiram como mitos tropicais da era do descobrimento. E se fincaram em nossa memória cultural.

Estão na literatura por toda parte. O País da Cocanha de Voltaire, em Cândido e o País de São Saruê de Manoel Camilo dos Santos, em seu cordel clássico, são versões diferentes do mito da riqueza a-dar-com-o-pé, dos torrões de ouro espalhados pelo chão, da fortuna banalizada porque inesgotável – mas que voltaria a ser fortuna se trazida para uma Europa depauperada pelos marajás da monarquia. “O Imortal” de Jorge Luís Borges fala de um rio cujas águas dão a imortalidade a quem as beba, e restituem a morte a quem conseguir reencontrá-las e beber de novo. É o mesmo prodígio proposto pelo suco do pajé em “O Imortal” de Machado de Assis, que foi visto pela crítica como uma sátira à homeopatia (“similia similibus curantur”, ou seja, um pouco mais daquilo mesmo produz o efeito contrário ao efeito inicial), e depois por Coelho Neto em Imortalidade (1925).

Uma cidade com ruas calçadas e ouro. Uma fonte cujas águas dão a juventude eterna. Eram mitos independentes, mas complementares. Porque - de que vale um sem o outro? De que valeria a riqueza inesgotável para um conquistador cinquentão, consumido pelas batalhas, enfraquecido pelo escorbuto e pelas doenças venéreas? A riqueza não traz a saúde nem mesmo hoje, como todo o nosso aparto high-tech, quando mais no século 16. Por outro lado, de que valeria a juventude eterna aliada à pobreza, à raiz plebéia que impedia a ascensão social num mundo de aristocratas? Ser miserável para sempre não é um bom prospecto, e mesmo que indivíduos mais aguerridos pudessem usar essa prazo-de-validade-indeterminado para tornarem-se ricos, a maioria preferiria desfrutar dos seus ilimitados vinte-anos erodindo uma ilimitada fortuna.

C. G. Jung afirmou que quando os alquimistas medievais buscavam a Pedra Filosofal, capaz de transformar os metais inferiores em ouro, na verdade estavam usando uma linguagem metafórica. Os anos e anos de trabalho obscuro, paciente, longe dos olhos do mundo, vencendo a preguiça, o desânimo e as tentações, não produziam um bloco de ouro, e sim uma alma humana incapaz de deixar-se corroer ou corromper pelo tempo e pela vida. O Eldorado, a Fonte de Juventa e a Pedra Filosofal são metáforas narrativas de uma intuição abstrata: eternidade é riqueza, e vice-versa.

1915) O texto do encarte (29.4.2009)




Seria uma experiência curiosa. Pegar vinte poemas de vinte poetas desconhecidos e misturá-los a vinte letras de canções desconhecidas, imprimir tudo misturado, e pedir a um crítico literário metido a esperto (eu, por exemplo) para distinguir ali o que era poema e o que era letra. 

 Seria mais ou menos como pegar dez quadros abstratos de gente que vale 5 milhões de dólares (Kandinsky, Jackson Pollock), misturá-los a dez quadros abstratos comprados na feira da Praça General Osório, chamar um grupo de críticos de arte e dizer-lhes: “Bote preço!”.

Por que isto? Porque os críticos são burros e só sabem o que é feijão e o que é arroz se alguém lhes disser antes? Acho que não. 

Uma obra de arte pode ser avaliada apenas pelo que apresenta aos olhos desprevenidos e ao espírito despreparado. É um texto para ser lido, uma imagem para ser vista, e o leitor ou observador que se identifique ou não com ela. 

Sem saber quem a fez ou de onde ela veio, o crítico que improvise ali seus próprios critérios de avaliação diante da obra nua e crua, não-assinada, não-identificada, não-contextualizada. Toda obra nos diz: “Te vira”.

Mas toda obra existe num contexto, e fica empobrecida em algum aspecto quando é despregada desse contexto. Curiosamente, isto desvaloriza algumas obras e valoriza outras. 

Voltemos ao exemplo acima. Um observador casual pode achar um quadro de Jackson Pollock “uma borradeira sem graça e de mau gosto” se o vir afastado do contexto dos museus e das galerias milionárias; talvez não achasse isto se a visse amparada e avalizada por este contexto. 

E, inversamente, um quadro que ele olharia com indiferença na feira hippie dominical poderia se valorizar, se afastado desse contexto de banalidade. Talvez fosse considerado uma obra revolucionária, até, por um espectador que, sem maiores referências, não soubesse distinguir nela o que há de diluição e de imitação do já visto.

Voltemos ao primeiro exemplo de todos. O que distingue, em primeiríssimo lugar, uma letra de música de um poema? Para mim, é o contato que temos com cada um. 

 O poema é lido num livro ou revista. 

 A letra de música é escutada nos alto-falantes de um aparelho de som. 

Porque aquilo que está impresso no encarte do CD (repetirei isto até a morte) não é a letra da música, é apenas um texto referencial que ajuda a entendê-la ou lembrá-la. A letra de uma música se perde, no papel, porque não é um conjunto de palavras impressas, é um conjunto de sons cantados, assim como a melodia da música não é um conjunto de notas escritas numa partitura, são os sons que escutamos quando a música é tocada.

O poema escrito é ele próprio, é o próprio poema. 

Uma letra de música escrita no encarte, no entanto, não é a letra da música. É apenas uma cifra, um código, uma descrição, que tem uma relação 1-por-1 tão grande com a letra da música (aquelas palavras que a cantora está cantando) que chegamos até a pensar que as duas são a mesma coisa. Mas não são.





1914) O celibato dos padres (28.4.2009)



Duas notícias nos jornais. Uma delas diz que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que está acontecendo por estes dias, pretende, entre outras questões, discutir a criação de assistência psicológica para os religiosos. A outra notícia é que no Paraguai já surgiu uma terceira mulher alegando ser mãe de um filho do Presidente Lugo, que até pouco tempo era bispo.

Já toquei nesta coluna no assunto do celibato obrigatório para os padres, que considero ter sido um grande erro estratégico da Igreja Católica. E um erro, infelizmente, difícil de desfazer, porque não creio que a Igreja derrube, no futuro visível, esse muro milenar. Dizem que a intenção da Igreja era evitar que os padres constituíssem famílias e deixassem para viúva e filhos o patrimônio gerado pelas suas atividades. Entendo a razão, mas acho-a insuficiente. Os pastores protestantes casam, os rabinos judeus casam, os sacerdotes da miríade de religiões modernas (nascidas nos últimos 200 anos) casam, e todas essas igrejas dispõem de mecanismos anti-empobrecimento. Seria mais complicado, porém mais sensato e mais útil, criar mecanismos jurídicos governando o acúmulo e transmissão dos bens dos sacerdotes do que simplesmente dizer “não casa”. Dá no que dá. Preciso falar nos milhões de “filhos de padres” que existem por aí?

Também não proponho que o casamento fosse obrigatório! Acho mesmo que apenas uma minoria, talvez uns 30%, fosse reivindicar esse direito. A maioria dos religiosos que conheço consiste de intelectuais, sujeitos fascinados pelo pensamento, pela metafísica, pela elucubração filosófica. Prefeririam uma noite na poltrona com um livro de São Tomás de Aquino a uma noite no leito com uma dama atenciosa. Existe, contudo, um grupo para quem seria possível, e necessário, conciliar as duas coisas. Um ex-padre (que largou a batina para casar) me disse uma vez: “Pensam que nós somos tarados, sátiros, que só pensamos em sexo. Estão errados. Gostamos do carinho, do companheirismo, da presença física e terna de uma mulher. Queremos a alegria e o drama de criar um filho. O sexo é um meio para isto. Tive que escolher entre minha igreja e minhas convicções, e Deus decidirá se errei ou não”.

Que drama o do Vaticano. Tenho certeza de que os indivíduos que estão lá sabem perfeitamente a sinuca histórica em que estão metidos há mil anos. Pela vontade deles, talvez, fariam uma “distensão lenta e gradual”, criando um sistema de exceções, de liberações em casos especiais, etc. Mas eles sabem que qualquer passo nesse sentido seria interpretado como uma concessão da Igreja ao acanalhamento moral, ao hedonismo despudorado, à sexualização comercializada e compulsória de todas as atividades humanas, que é o que o Neocapitalismo Freudiano estimula, para faturar às custas de nossas pulsões incontroláveis. “Não”, murmura a Igreja, “nós somos O Centro, e quando O Centro não mais se sustentar, o edifício inteiro virá abaixo”.

1913) Contracapa de Fita Demo (26.4.2009)



& não sou rico, tenho apenas uma nota de cada valor de cada moeda em circulação em cada país do mundo & um logotipo cuja visão provocasse amnésia instantânea & “Creative Commons” é uma mera figura jurídica para designar o inconsciente coletivo & tão difícil quanto perfurar um poço de petróleo é descobrir exatamente onde perfurá-lo & a Esfinge não passava de uma “collage” de medos, solúvel em respostas & a gangrena dos países começa pelas fronteiras & a Natureza é um conjunto de anomalias majoritárias com as quais nos acostumamos & vontade de me esconder num tronco de árvore, numa bigorna, num bloco de basalto, num livro de Direito Internacional Público & sente aqui, juntinho de mim, olhe, lá vai o Nautilus do Capitão Nemo, quase alcançando o Submarino Amarelo & digamos por exemplo que todos os sem-terra são de origem extra-terrestre, e vêm daí os seus problemas & filósofos são como arqueólogos desfazendo o Everest com espátulas, na esperança de que exista ali alguma coisa & orçamento à parte, procuro viver como se já fosse milionário & para esta faixa quero baixo acústico com arco, um cavaquinho bem palhetado, três ganzás, três reco-recos, um solo de clarineta no final & um filho é uma missão, um neto é nosso horizonte genético, um bisneto é um parente distante que ignorará nossa existência & um cofre de se trancar por dentro & estou num daqueles momentos mortos que o relógio pula & acordou, sentou na cama, sentiu os pés mergulharem na espuma das ondas que avançavam & a força gravitacional das tragédias anunciadas & um trumpete fazendo estremecer todas as linhas retas da sala-de-estar & os universos paralelos se intersectam no infinitesimal & a insônia é um formigueiro que não me deixa adormecer e me ferroa quando acordo & girando o calcanhar na terra macia para cavar o buraco-negro que atrai as bolas de gude & dormia de luz acesa com medo de ser dissolvido pela treva & uma biblioteca de livros em branco mas com títulos diferentes & dois elevadores lado a lado, um para subir, outro para descer & quem sabe a Humanidade seja um breve incidente entre duas Eras dos Dinossauros & Deus é quem veste o alfaiate, calça o sapateiro, cura o médico, alimenta o padeiro, escreve o escritor & um poema é uma erupção de lava vulcânica que se solidifica em forma de catedral & mesmo durante o trabalho minha mente foge para os terrenos baldios de si mesma e se entrega a contravenções inofensivas & aquelas mansões inglesas onde um fantasma introspectivo mal percebe as gerações que se sucedem num piscar de olhos & é duro constatar que Aristóteles nunca comeu feijão, Cleópatra nunca bebeu uísque, Calígula nunca fumou um cigarro, Shakespeare nunca trocou uma lâmpada, Mem de Sá nunca andou de ônibus & cibernética é o estudo de como as coisas se governam sem as pessoas & cataratas cachoeirando em catadupas, e na caatinga o cacto contando gotas com usura e concisão &

1912) “Os Inconfidentes” (25.4.2009)




Os Inconfidentes de Joaquim Pedro de Andrade (1972) é uma ilustração cênica e histriônica de textos dos Autos da Devassa, do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles e de poemas dos próprios inconfidentes (aliás, deve haver uma Lei da Natureza dizendo que qualquer conspiração política com três ou mais poetas entre seus líderes está condenada ao fracasso). 

Isto dá origem a um estilo de encenação muito usado pelo cinema da época (lá fora, Godard, Straub; no Brasil, Glauber, Miguel Faria Jr.): longos planos-sequência com câmara imóvel e enormes extensões de texto (ou texto nenhum), sucedendo-se com uma intenção cronológica apenas superficial, mas servindo cada um como um quadro ilustrativo do tema geral do filme. As cenas surgem como peças de um quebra-cabeças que são retiradas aleatoriamente da caixa, e só aos poucos o espectador percebe seu lugar de encaixe.

Neste filme, vemos um time de excelentes atores em plena juventude ou maturidade dando baile uns nos outros. Enquanto um diz seu longo bife os demais ficam “na ponta dos cascos” esperando sua deixa. 

Paulo César Pereio, José Wilker, Nelson Dantas, Luís Linhares, Carlos Kroeber, Fábio Sabag, Wilson Grey... Como diz o pessoal de teatro, é cobra engolindo cobra.

E a encenação de Joaquim Pedro tira proveito de toda a liberdade concedida a quem está usando um texto clássico – se as palavras são escrupulosamente seguidas, a imagem pode ser a que melhor convém ao diretor. 

São inesquecíveis a cena da delação em que Silvério dos Reis e o Visconde de Barbacena tomam banho de banheira juntos, ensaboando-se um ao outro; Gonzaga bordando o “vestido” que deveria usar em seu casamento com Marília, ao lado de um querubim e ao som de João Gilberto cantando “Farolito”; a cena final em que o enforcamento de Tiradentes é aplaudido por dezenas de colegiais.

O mais curioso é que se trata de um filme cheio de estocadas nos militares, na subserviência do povo brasileiro, na tortura, etc. E, por outro lado, é um filme impiedoso com os intelectuais – todos se apequenam e se acovardam depois de presos, e só Tiradentes assume plenamente o que tinha dito e feito. É um filme que diz tanto sobre a época em que foi feito quanto sobre a época remota que retrata.

Na ponteira que aparece no final do filme, ficamos sabendo que sua restauração (o filme é de 1972) só foi possível devido a cópias e negativos encontrados em cinematecas de Portugal e da Itália (a co-produção era italiana). 

Ao que eu me lembre, o filme não chegou a ser proibido pela ditadura. Vi-o numa sessão comum de Cinema de Arte. Mas a asfixia econômica mata um filme com a mesma eficiência que o enforcamento censório. O filme de Joaquim não teve o pescoço partido como ocorreu com o alferes, ainda mais com o peso do carrasco, o negão Capitania, escanchado em seus ombros. Ficou pendurado por uma corda, finando-se aos poucos, como Cláudio Manuel da Costa.






1911) Os tamarindos de Augusto e de Edgar (24.4.2009)




Eram magros, sombrios, neurastênicos. Ambos obcecados pela morte, ambos carinhosos com a família e os amigos mais próximos. Viveram em hemisférios diferentes, um na Paraíba, o outro na Nova Inglaterra, e separados por cerca de um século, mas habitaram ambos o mesmo mundo gótico e soturno, cheio de ameaças. 

Uma herança genética os predispunha à morbidez. Tiveram que arrastar durante toda a vida adulta o pavor da doença, a penúria financeira, o dever doloroso de sobreviver num mundo que não os entendia e não os comportava. Um morreu com trinta anos, o outro com quarenta.

Augusto dos Anjos era leitor de Edgar Allan Poe. Num questionário reproduzido em suas biografias, ele afirma que seus autores preferidos são Edgar e William Shakespeare. 

Falamos em influência quando temos certeza de que o autor mais recente leu de fato a obra do autor mais antigo, mas toda influência não passa de uma ressonância específica. Milhares de versos são lidos, e entram por um ouvido e saem pelo outro. E há um verso que se incrusta, por ressonância, na memória daquele leitor, e nunca mais o abandona.

Daí talvez o temor neurótico de Augusto em relação ao “Deus Verme”, o “fator universal de transformismo”, o qual não é muito distante do “Verme Conquistador” de Edgar, que é o herói da peça intitulada “Homem”. 

O Corvo que grasna “Nunca mais!” para um é talvez um dos “corvos carniceiros” cuja “asa de mau agouro” o outro tanto teme, e, que, ao comer suas fibras “há de achar nelas um sabor amargo”. 

O morfético que invade a tasca onde acontece uma bebedeira, na parte VII de “Os Doentes”, não é muito diferente da Morte Rubra que surge nos salões do Príncipe Próspero.

Ambos tentaram, num ambiente literário municipal e tacanho, circundar com a mente o formato do Universo. Sofreram a pior das torturas, a da alma inesgotável que quer tudo saber, tudo entender, e percebe estar presa a um pedaço de carne mortal. 

Augusto se refugiava à sombra de um pé de tamarindo, chorando “bilhões de vezes com a canseira de inexorabilíssimos trabalhos”, e desejando que após a morte sua sombra repousasse ali para sempre. 

Debaixo do tamarindo

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore de amplos agasalhos
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da flora brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!

Edgar, em seu soneto “À Ciência”, louva essa “filha legítima dos tempos antigos”, que “espreita o coração do poeta como um abutre”. Queixa-se ele à Ciência: dessacralizaste o mundo, afugentaste os deuses e os espíritos que povoavam a Natureza, “...e, quanto a mim, arrebataste o sonho de verão à sombra do tamarineiro”.


SONETO -- À CIÊNCIA
(tradução: Milton Amado)

Ciência! Do velho Tempo és filha predileta!
Tudo alteras, com o olhar que tudo inquire e invade!
Por que rasgas assim o coração do poeta,
abutre, que asas tens de triste Realidade?

Poderia ele amar-te, achar sabedoria
em ti, se ousas cortar seu voo errante e ao léu
quando tenta extrair os tesouros do céu,
mesmo que a asa se eleve indômita e bravia?

Não furtaste a Diana o carro? E não forçaste
a Hamadríade do bosque a procurar, fugindo,
estrela mais feliz, que para sempre a esconda?

Não arrancaste à Ninfa a carícia da onda,
e ao Elfo a verde relva? E a mim, não me roubaste
o sonho de verão ao pé do tamarindo?


Sonhos de verão de dois rapazes magros, neuróticos, de olhos fundos, nascidos em mundos de escravidão recente e urbanização conflituosa. Observadores das madrugadas decadentes da cidade, das doenças, da peste, da mortandade de um mundo insalubre.

Encostados a um pé de tamarindo, com um livro aberto na mão, um deles pedia ao "sol brasileiro" que lhe queimasse os destroços; o outro celebrava "o sol à minha volta, em seu outono tinto de ouro".  Dentro deles era tudo uma Sombra só, e o tamarindo foi o de mais doce que a vida lhes deu.