domingo, 4 de abril de 2010

1866) “Menino de Engenho” (3.3.2009)



Este filme de 1965 continua a ser um dos melhores da obra de Walter Lima Jr. e um dos melhores de todo o Cinema Novo. Também podemos colocá-lo entre as melhores adaptações literárias feitas pelo nosso cinema. O fato do filme de estréia de um diretor de 27 anos ter conseguido tudo isto deve-se a uma feliz combinação de circunstâncias. Primeiro que tudo, à adequação entre talento e material, que é importante em qualquer obra de arte, ainda mais no cinema, arte industrial em que a necessidade de certo material se sobrepõe às possibilidades de um talento. Há diretores extremamente talentosos que passam a vida inteira desperdiçando a si próprios em projetos que não são os mais adequados para sua visão do mundo, ou seu estilo de trabalhar, ou suas obsessões pessoais, seu modo de tratar a linguagem do cinema, etc. Fazem isto, uns, pressionados pela necessidade de sobrevivência; outros, pressionados pela ansiedade em seguir a moda. Querem imitar os filmes que estão fazendo sucesso de crítica, mas com os quais eles não se identificam (e só o percebem quando é tarde demais).

No caso de Walter e do “Menino”, aconteceu justamente o contrário disso tudo. Parece que houve uma identificação imediata entre o assunto e o ambiente do filme e a sensibilidade dramatúrgica e fotográfica do diretor. Os enquadramentos clássicos e imponentes da ótima fotografia de Reynaldo Paes de Barros parecem reproduzir um ritmo de vida de muita grandeza e pouco dinamismo. Tudo é se passa como se aquilo fosse o centro do mundo, e no entanto o tempo parece congelado num eterno presente, levemente defasado em relação a um mundo de fora que só percebemos em raros momentos (a visita dos industriais da Usina, a chegada das primas de Recife).

Este filme pertence a uma vereda do Cinema Novo que eu classificaria (elogiosamente) de Novo Cinema Velho. Foram filmes que trouxeram pela primeira vez (ou trouxeram de volta, em alguns casos) para o cinema brasileiro virtudes clássicas da narrativa, da imagem filmada, da interpretação do mundo. Devemos lembrar esse Novo Cinema Velho porque ele ficou um tanto oculto pelo Cinema Novíssimo praticado principalmente por Glauber Rocha em sua trilogia principal, e depois dele por um exército de diretores que procuraram segui-lo, mesmo quando seu temperamento os aconselhava a praticar outro estilo.

O Novo Cinema Velho tem obras notáveis como O Padre e a Moça de Joaquim Pedro, Vidas Secas de Nelson Pereira, Augusto Matraga de Roberto Santos, etc. Filmes que ninguém chamaria de vanguarda no sentido revolucionário, godardiano, que este termo tinha na época. Mas eram vanguarda, porque traziam ao nosso cinema virtudes antigas mas quase inéditas. Austeridade de Bresson, lirismo de Humberto Mauro, humanismo de Renoir, impulso épico de Ford... Um Novo Cinema Velho que ligou o Brasil daquela época com o passado, e que torna certos filmes (como este) incorruptíveis pelo tempo.

1865) O bonzo e o terrorista (1.3.2009)





Foi um imagem que marcou minha adolescência, nos agora inatingíveis anos 1960. Guerras lavravam pelo mundo afora; ditaduras prendiam e torturavam; tanques invadiam países e depunham governos eleitos pelo povo. Havia no ar uma sensação de revolta moral, de desespero impotente, e de que “era preciso fazer alguma coisa”. E então... um belo dia abríamos a Veja ou a Manchete e víamos a foto de um bonzo oriental ardendo em chamas. A história era sempre a mesma. O monge dirigia-se, com seu manto colorido, sua cabeça raspada, para uma praça cheia de gente, no centro de alguma grande capital européia. Derramava sobre si mesmo um galão de gasolina, sentava-se na posição do lótus, e riscava um fósforo. Permanecia imóvel e em silêncio enquanto o fogo o consumia, o carbonizava, até que seus ossos comburidos se esfarelavam e eram espalhados pelo vento, diante das câmaras das agências Reuters, UPI, Associated Press e outras.

Corte rápido. Passaram-se quarenta anos. Não vejo mais bonzos ardendo em chamas nas praças da Europa, mas isto não quer dizer que não haja mais gente disposta a dar a vida por um ideal político. O bonzo de hoje em dia é o Homem Bomba, o terrorista que amarra em volta do tórax dezenas de invólucros de explosivo plástico ou bananas de dinamite, veste um casacão por cima, e vai se explodir num restaurante ou num ônibus lotado. Morre do mesmo jeito; oferece-se para morrer do mesmo jeito. Passa dias se preparando para o próprio suicídio, assim como fazia o Bonzo. Sua morte não é resultado de um impulso, de um desespero momentâneo. Ele tem todo o tempo do mundo para se arrepender e mudar de idéia, mas não o faz. Em termos de bruta fé, de crença impura e sem vacilos, é tão sólido quanto o bonzo budista.

Muita gente irá considerar que a passagem do Bonzo para o Homem Bomba é a subida de um degrau numa escalada rumo ao absurdo. Antigamente, os pobres monges se suicidavam em sinal de protesto; hoje, terroristas sanguinários matam não apenas a si próprios, mas a pessoas inocentes que nada têm a ver com o peixe. Mas é justamente essa motivação que me faz ver as coisas de outro modo. Para mim, o absurdo era a morte do Bonzo. A morte do Homem Bomba é plenamente explicável pela lógica da guerra. Trata-se de fazer vítimas entre a população inimiga, aterrorizá-la, fazê-la sentir na carne as injustiças que comete e temer os inimigos que arranja. O que pode ser mais lógico do que isto? Pode ser moralmente censurável, mas que tem lógica tem.

O que ainda me deixa intrigado é o sacrifício dos Bonzos. Matar a si mesmo na esperança de que uma única morte, por ser auto-infligida, possa comover os que matam milhões de pessoas, e fazê-los parar! Que esperança mais utópica do que esta pode haver? E se não é essa a esperança deles, qual poderá ser? O suicídio dos bonzos é algo que nos dá um recado sobre a natureza humana, que não entendemos porque ainda não estamos maduros para entender.



1864) As figuras de proa (28.2.2009)




(Mestre Salustiano)

No ótimo livro Cavalo Marinho Pernambucano, o etnomusicólogo John Patrick Murphy comenta:

“Um fenômeno similar pode ser observado em outros meios culturais tradicionais do Nordeste brasileiro, quando um indivíduo se torna tão associado a determinado gênero, a partir de apoio municipal e exposição na mídia, que aos olhos do público em geral ele é visto, justa ou injustamente, como o melhor praticante desse gênero. É este o caso com o escultor Vitalino e o dançarino Nascimento do Passo, como é com Salustiano e o cavalo-marinho na área de Recife. É como se houvesse lugar na atenção do público para apenas um praticante bem conhecido de cada gênero artístico tradicional, ao passo que em gêneros populares comercializados podem surgir dúzias de figuras”.

Eu diria que não se trata apenas de uma “miopia” em relação à cultura popular. Isso acontece com qualquer pessoa que, não se interessando por uma manifestação cultural qualquer, mesmo assim sente-se na obrigação de conhecer pelo menos um nome dela, aquele que seja “o melhor”. O sujeito registra esse nome, e sente-se desobrigado de conhecer outros.

Quantas pessoas aversas ao futebol não conhecem, ainda hoje, apenas o nome de Pelé? Quantos indivíduos que nunca pisaram num teatro não têm na ponta da língua o nome de Shakespeare, para mostrar que não são leigos absolutos? Já vi muito sujeito totalmente alheio à música confessar-se “fã de Roberto Carlos”. Pergunte o nome de outro cantor, e ele não sabe.

Mas Murphy tem razão em observar como isso se dá com a cultura popular. Conheço muitos cariocas que se dizem “apaixonados” pela obra de Patativa do Assaré, e que são leitores constantes de sua poesia. Quando pergunto que outro poeta matuto conhecem, fazem uma cara de quem não sabe sequer que a poesia matuta existe.

Falo-lhes de Zé da Luz, Catulo da Paixão Cearense, Jessier Quirino, Zé Laurentino, Chico Pedrosa; é o mesmo que estar recitando a escalação do time campeão de hóquei-sobre-patins no Canadá.

Nunca ouviram falar, e, pior, não estão muito interessados. Leram Patativa, gostaram, e assunto encerrado.

Isso não se dá apenas com a cultura popular. Se eu pergunto a essas pessoas sobre ficção científica, provavelmente dirão “Isaac Asimov” e fim de papo. Quando um assunto não nos interessa, mas sabemos que interessa a muita gente, e podemos aqui ou ali ser convidados a dar nossa opinião, é conveniente ter na memória um nome apenas, desde que seja um nome indiscutível, um nome típico, um nome que possamos citar sem correr o risco de “dar uma na trave”.

Esse nome, essa figura de proa, provavelmente será um clichê, um nome óbvio, mas por essa mesma obviedade ninguém poderá dizer que não entendemos do assunto. Dizer que Vitalino é o nosso artesão favorito ou que em matéria forró gostamos de Luiz Gonzaga pode ser um clichê, mas é um clichê que nos salva da ignorância total e que não pode ser questionado.






1863) “O Lutador” (27.2.2009)



Randy “The Ram” (Mickey Rourke), neste filme de Darren Aronofsky, é um lutador de mentira, praticante do que chamamos aqui no Brasil de “tele-catch”: aquelas lutas encenadas em que os personagens dão tesouras voadoras, pisam na cabeça do adversário, arrancam chumaços de cabelo – tudo de mentirinha. Todo mundo sabe que tele-catch é encenação. Não é uma luta, é uma coreografia combinada. Mas o fato é que os caras se machucam pra valer. Toda a violência do filme está nos primeiros 20 minutos. Depois disso, vem o desmoronamento em câmara lenta de Randy, enfraquecido, velho, solitário, sem dinheiro, sem amigos, sem família. A única coisa real na sua vida era a luta. E agora? E agora, que teve um enfarte, botou um marca-passo, e não pode mais lutar?

Uma das melhores coisas do filme é a interpretação de Rourke, autobiográfica, se pensarmos que ele chegou a ser um galã (em filmes como 9 ½ Semanas de Amor), virou um promissor ator de talento (em Coração Satânico), depois sinalizou para onde estava indo (interpretou o bebum Charles Bukovsky em Barfly), tornou-se lutador de boxe, passou dois anos quebrando a cara alheia e deixando quebrarem a sua, e mergulhou num daqueles anonimatos em que você escuta até a queda de um centavo no chão. Seu personagem, inchado de esteróides, com uma ridícula cabeleira “Led Zeppelin” oxigenada, e a cara devastada por trinta mil porradas no ringue, é ele mesmo, numa rara adequação entre biografia e performance.

Rourke concorreu ao Oscar de melhor ator, mas não levou. (Perdeu para Sean Penn, que, um machão interpretando um gay, talvez tenha sido mais ator do que ele.) Ele é o filme. Seu rosto inchado, cansado, cheio de expectativa e crista-baixa parece verdadeiro de um modo que os numerosos e numerados “Rockys” de Sylvester Stallone nunca pareceram. Stallone, mesmo quando produz derrotas para o seu herói, está tentando nos convencer de que a luta pela vitória no ringue é o mais importante de tudo. Rourke/Aronofsky parecem dizer que todo ringue é uma encenação, que toda briga, toda guerra é uma encenação (como a guerra EUA x Irã metaforizada no embate entre Randy x Ayatollah).

A verdade é o que está nos bastidores do tele-catch: profissionais solidários, calejados, sérios, sem os fricotes e as caras-e-bocas que fazem no palco. A verdade é o que está fora dos ringues, fora das campanhas militares tonitruantes. A verdade é a vida de indivíduos durões mas indefesos, violentos mas leais; indivíduos que aceitam uma profissão que a muitos (a mim, pelo menos) parece ridícula, e lhe dão uma dignidade despojada, masculina, quase ascética. “O Lutador” se encerra com uma canção de Bruce Springsteen, mas poderia se encerrar com os versos de Paul Simon: “Aqui está o boxeador, um lutador de profissão, e ele traz as marcas de todas as luvas que o derrubaram e o machucaram até que ele gritou, cheio de raiva e de vergonha: Eu vou embora, eu vou embora, mas não deixo de ser um lutador”.

1862) Salve-se quem puder (26.2.2009)




Num texto que vi citado na Internet (mais precisamente em um mailing do “A Word a Day”), os autores Robert M. Lilienfeld e William L. Rathje dizem: “Existe um mito: o de que devemos salvar a Terra. Sejamos francos, a Terra não precisa ser salva. A Natureza nem liga se os seres humanos estão aqui ou não. O planeta vem sobrevivendo a mudanças cataclísmicas e catastróficas há milhões de anos. Ao longo desse tempo, crêem os cientistas, 99% de todas as espécies já existentes surgiram e desapareceram, enquanto o planeta permaneceu. Quando falamos em salvar o meio ambiente trata-se na verdade de salvar o nosso meio ambiente – tornando-o seguro para nós mesmos, para os nossos filhos, e para o mundo como o conhecemos. Se mais pessoas vissem o problema como uma questão de salvar a si mesmas, provavelmente poderíamos aumentar a sua motivação e sua dedicação a lutar por essa causa”.

Dias atrás fui a um bar que distribuía nas mesas um artigo de jornal onde o cronista alertava os boêmios para um terrível perigo iminente: o aumento do preço da cerveja. Explicava ele que a cerveja é feita de lúpulo, cevada e outros grãos. O preço desses grãos (e consequentemente da bebida) tem aumentado sem parar nos últimos anos, porque a terra de cultivo destinada a eles está sendo tomada por plantações de cana-de-açúcar. O objetivo dessas plantações é produzir um combustível mais barato que o petróleo. O petróleo do mundo está acabando porque gastamos muita energia.

Qual a solução, então? – pergunta o cronista. E responde: economizar energia, apagar as luzes de casa, poupar gasolina, não andar com o carro muito pesado, usar judiciosamente o chuveiro elétrico no inverno e o ar condicionado no verão, etc. etc. Os dois terços restantes da crônica são um conjunto de medidas simples e eficazes para se economizar energia. E tudo isto para quê? para que o preço da cerveja caia, e a gente possa beber mais cerveja.

Esses dois exemplos mostram a irracionalidade básica do ser humano, e mostram que somente levando essa irracionalidade em conta é possível convencer as pessoas a fazerem o que queremos, desde enviá-las para uma guerra onde certamente morrerão até convencê-las a salvar a própria vida. Parece que temos um comando embutido em nossa mente que nos torna incapazes de perceber o alcance a longo prazo de tudo que fazemos. Percebemos apenas o nosso interesse egoísta, imediato, auto-indulgente. E somente apelando para esse interesse é possível nos levar a agir em função de algo mais amplo.

Campanhas do governo poderiam adotar esse tipo de ótica: distribuir instruções práticas e úteis, só que camufladas por um propósito que falasse mais de perto ao egocentrismo, à vaidade, ou a alguma outra tendência capaz de mobilizar as pessoas a “lutarem pelos seus próprios interesses pessoais”. Parece que é muito mais fácil do que tentar convencê-las a lutar por um interesse coletivo pelo qual elas não ligam a mínima.




1861) “Flashbake” (25.2.2009)



Há uma ala da crítica literária que foca sua atenção na história criativa de um texto. Em vez de apenas analisar o romance ou poema do jeito que ele foi publicado, o crítico procura ter acesso a todas as versões sucessivas do texto, desde as primeiras anotações e esboços até as versões completas (que frequentemente são mais de uma) preparadas pelo autor. E mais além, até, porque há autores que continuam a mexer em textos mesmo depois da primeira publicação. Essa crítica reconstitui a evolução de uma idéia através de sucessivas formas, e pode nos dar informações interessantes sobre o texto final (ver “The Waste Land”, 20.8.2005).

O uso do computador acabou com essa festa. Não há mais versões manuscritas, datilografadas, riscadas e corrigidas. Tudo se desfaz num clique de “salvar alterações”, sem deixar rastros do que foi descartado. (Nem sempre, é claro. Muitos escritores, como eu mesmo, gostam de escrever no computador, imprimir, fazer correções a mão, passar as correções para o novo arquivo, e guardar as folhas impressas e rabiscadas. Hábito.) Pois bem, o saite BoingBoing anuncia a criação de um programa chamado “Flashbake”, uma parceria entre Cory Doctorow e Thomas Gideon (ver: http://bitbucketlabs.net/flashbake/) que preserva cópias sucessivas de um arquivo, com todas as alterações feitas, e mais outras informações que interessarem ao usuário.

Diz Doctorow que o Flashbake pode ser programado para: checar de 15 em 15 minutos, ou quanto tempo o usuário estabelecer, todos os arquivos que ele determinar; anotar as mudanças feitas neste intervalo; registrar dia e hora em que foram feitas, preservando a versão anterior, e relacionando-as com as três postagens mais recentes que o usuário fez em seu blog. O objetivo, diz ele, é fazer com que ele possa, um dia, saber onde estava, que horas eram, e no que estava pensando quando fez aquelas alterações. O sistema pode até registrar quais foram as canções mais recentes tocadas no computador do usuário.

O que significa isto? Que, se quisermos, os recursos do computador e do processador de texto podem ser combinados para dar aos críticos genealógicos ou arqueológicos versões de um texto literário muito mais ricas de informação do que os manuscritos ou datiloscritos dos séculos passados. O texto eletrônico pode ter uma enorme descartabilidade, mas pode ter também uma enorme “preservabilidade”, inclusive porque os HDs atuais são capazes de armazenar quantidades astronômicas de texto. Talvez eles não preservem aspectos que os historiadores tanto prezam nos documentos antigos – a textura, a cor e o cheiro do papel, as diferentes cores e tonalidades da tinta, os borrões, os rabiscos, os desenhos, as ocasionais manchas de café ou de umidade numa página, as variações de caligrafia, tudo que dá a um manuscrito literário uma fisionomia única e humana. Mas se texto é feito de texto, ninguém pode gravar e preservar texto melhor do que um computador.

1860) Adeus, Carnaval (24.2.2009)




(Di Cavalcanti, Pierrô, Arlequim e Colombina)

Já me disfarcei de palhaço, com rodelas carmesim nas bochechas, peruca de ráfia, óculos-nariz-bigode à la Groucho Marx, suspensórios compridos, calça balão. Saí de rua afora, com um tênis direito preto e um sapato esquerdo marrom, rodando reco-reco, virando bunda-canastra na rua coberta de confetes úmidos e serpentinas partidas. Belisquei a poupança das vizinhas, roubei pirulito de menino chato, parei o trânsito, ajudei os moleques a esguichar água nos carros com um cabo de vassoura enfiado num tubo de PVC. Bebi caipirinha até cair nocauteado; ninguém me reconheceu.

Já saí de papangu, juntei-me a uma meia-dúzia e saímos a pé pela cidade afora, emburacando na casa dos conhecidos, imitando a voz de Chacrinha, metendo a mão nos salgadinhos expostos sobre a mesa, localizando o uísque do dono da casa e usufruindo, tirando uma casquinha nos atributos da esposa e das filhas, que erguiam os braços eufóricas, “é Carnaval!”. Ninguém desconfiou.

Já me vesti de odalisca, dois peitos de quenga-de-coco amarrados com elástico, saiote florido pedido emprestado à cozinheira, as pernas brancas e cabeludas com coraçõezinhos pintados de batom. Rebolei pela avenida, seguido por um magote de pirralhos batendo lata, subi em jipe, agarrei os bêbos pedindo “me dê um cheiro, sordado!”, atirei beijinhos para as famílias na janela. Ninguém se preocupou.

Já vesti camisa do Campinense, hábito de franciscano, roupão de seda de madame russa, macacão de aqualouco, travesseiro de nove meses, cartucheiras de cangaço, touca e fraldão de bebezinho, caveira de assombração, macacão de proletário, estopas de alaúça, turbante de beduíno. Já saí de Dorothy; de Espantalho; de Homem de Lata; de Leão Medroso. Já saí de John, de Paul, de George, de Ringo. Já me fantasiei de jovem guarda (franja, anel brucutu, pulseira de correntinha), de materialista dialético (barba, camisa de brim, calça jeans, Georges Politzer sob a axila), de tropicalista (cabelão, camisa tingida com espelhinho costurado no peito, chinelões de pneu), de beatnik (boné, oclinhos sem aro, casaco de veludo), de grunge (calçona frouxa, camisa social por fora da calça, barba ao Deus-dará, brinquinho na orelha).

Já me fantasiei de defensor dos pobres e de flagelador da burguesia, de Explicador do Inefável e de Dissecador do Falsamente Óbvio, de humanista boa-praça disposto a perdoar as falcatruas alheias, de operário padrão que sua sangue e vomita bile para entregar o troço no prazo e esperar um ano o pagamento, de pai de família exemplar disposto a engolir um sapo por minuto e a ter sempre um hálito primaveril, de mané capaz de cruzar incólume a saraivada de indiretas e subentendidos às minhas custas na mesa de bar, de bom samaritano sempre disposto carregar a cruz alheia enquanto a minha criava raízes sem que eu pudesse rebocá-la para a oficina. Tive o direito de ser tudo que não sou, e só por isso vale a pena esperar mais um ano inteiro. É hoje só, amanhã não tem mais.