domingo, 28 de março de 2010

1839) “Dead Man” (30.1.2009)



Revi na TV a cabo este “faroeste metafísico” de Jim Jarmusch, um dos seus melhores filmes. Vi pela terceira vez, e a cada vez gosto mais. Digo isto com cautela, porque sei de muita gente que detesta este filme distanciado, irresoluto, onírico. Faltam nele coisas que nos seduzem nos faroestes: o arrebatamento físico das grandes cavalgadas e grandes lutas, as dimensões épicas de heróis e vilões maiores-que-o-mundo, o corte sociológico das guerras de colonização dos EUA. Tudo isto está ausente deste filme feito num preto-e-branco leitoso e pulverulento (o termo é de Cruz e Sousa), de imagens granuladas que parecem não o Oeste do cinema, mas o Oeste fotografado ao vivo no século 19 pelos lambe-lambes que subiram num carroção e rumaram para as pradarias com um tripé às costas.

Bill (Johnny Depp) vai assumir um emprego num lugarejo que não passa de um quarteirão enlameado e malcheiroso. Mete-se numa confusão por causa de uma mulher, que é morta nos seus braços e o obriga a matar o assassino, filho de seu possível empregador. Ferido a bala no peito, ele rouba um cavalo e se embrenha na mata, onde passa a ser perseguido por pistoleiros de aluguel contratados pelo pai furioso da vítima. Ali ele conhece um índio, que diz chamar-se Ninguém, e que se assombra ao saber que o nome do rapaz é William Blake: “Mas não é possível! Eu sei os seus poemas de cor!” E passa a tratá-lo como se ele fosse mesmo o poeta inglês do século 18.

Durante a fuga, cruzam com matadores profissionais, um pistoleiro antropófago, animais feridos, Iggy Pop vestido de velha. O índio tenta arrancar, com a faca, a bala encravada no peito de Blake, mas não consegue. Como dizia João Cabral (Uma faca só lâmina): “Essa bala que um homem / leva às vezes na carne / faz menos rarefeito / todo aquele que a guarde”. Blake, que era um contabilista pacato, é forçado a enfrentar de arma em punho os caçadores de recompensa que o rastreiam. Vai matando gente, abrindo caminho a tiros, enquanto Ninguém (índio que foi criado na cidade grande) age como anjo protetor.

Não sei o que é melhor, se a fotografia láctea de Robby Müller, toda baseada em fumaça, neblina e sombras, ou se a música de Neil Young, arpejos e rasqueados de guitarra elétrica que nunca se resolvem em melodia ou sequência harmônica, e que, como a própria narrativa do filme, parecem mudar de direção o tempo todo, ziguezagueando ao vento das circunstâncias. Nunca o estilo minimalista de Jarmusch se harmonizou tanto com um argumento, com a fuga espectral desse rapaz baleado que parece morrer um pouco mais a cada homem que mata. E a música, recorrente, fragmentada, inconclusiva, parece também se separar, lentamente, em fragmentos que se apartam para sempre uns dos outros. O filme inteiro é um rito de passagem para o reino das sombras e das luzes, uma transição gradual para um mundo onde não há matéria, apenas o oceano luminoso do ser e do não ser.

1838) Dürer e o rinoceronte (29.1.2009)





Talvez o leitor já tenha visto alguma reprodução desta famosa gravura de Albrecht Dürer, feita por volta de 1515. Aparece com frequência em revistas, posters, capas de livros, e mostra um volumoso rinoceronte reproduzido com riqueza de detalhes e de imaginação. 

A gravura tem uma história tão fantasiosa que parece inventada. O rinoceronte foi dado de presente pelo Sultão de Gujarat a Alfonso de Albuquerque, que era o governador das Índias no tempo do império português. O governador repassou o presente para o Rei de Portugal, Dom Manuel I, e o paquiderme foi embarcado num navio de especiarias, rumo a Lisboa.

Ali chegando, causou sensação, como era de se esperar. Era no auge da riqueza de Portugal, e os soberanos da época gostavam de espetáculos radicais. Dom Manuel botou o rinoceronte para brigar, diante da corte, com um elefante que ele havia ganho algum tempo antes. Reza a lenda que o elefante bateu em retirada sem querer enfrentar o “quindim” do rei. 

Logo depois, Dom Manuel mandou o rinoceronte de presente ao Papa Leão X. De passagem por Marselha, o navio fez uma parada para que a fera fosse vista e admirada pelo Rei da França, Francisco I. Logo em seguida, foi colhido por uma tempestade e foi a pique; o rinoceronte estava acorrentado e não pôde escapar.

Baseando-se em desenhos e relatos por escrito, Albrecht Dürer fez essa gravura. Ela é uma notável obra de arte e ao mesmo tempo um “caveat”, um sinal de alarme para que sempre vejamos com desconfiança os relatos alheios, por mais honestos e bem intencionados que possam ser. 

Dürer, guiando-se pelos testemunhos de terceiros, produz um animal cheio de adornos fantasiosos. A pele coriácea do animal (de onde vem a designação “paquiderme”, “pele grossa”) foi substituída por placas que parecem de armadura, e que em alguns trechos imitam, com suas subdivisões geométricas, o casco de uma tartaruga. As pernas são cobertas de escamas, detalhe totalmente fantasioso. 

Na verdade, Durer, conscientemente ou não, reproduz no animal detalhes que lembram as armaduras e as cotas-de-malha dos guerreiros da época. É uma espécie de linguagem metafórica levada ao pé da letra.

Outro aspecto interessante é que olhando com cuidado a gravura de Dürer não há como não reconhecer nela um certo toque “manuelino” em termos de estilo, como se o artista holandês tivesse inconscientemente se deixado influenciar pelo estilo arquitetônico que os portugueses estavam criando. O animal é tão enfeitado quanto a Torre de Belém (em cujo museu, hoje, há uma reprodução da gravura de Dürer, pois foi nesse local, durante a construção da Torre, que ele ficou preso na sua passagem por Lisboa). 

Por trezentos anos, manuais científicos usaram a fantasia de Dürer como se se tratasse de um retrato cientificamente exato, o que mostra o poder das lendas, das fantasias e das modas estéticas.



1837) O sociólogo e o operário (28.1.2009)



Há uma foto muito publicada na imprensa, e até usada como capa de livro, tirada durante o tempo dos protestos contra a ditadura militar no fim dos anos 1970. A foto mostra dois caras, lado a lado, panfletando no centro de uma cidade. Um deles, de pulôver e com uma elegante cabeleira preta, é o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O outro, atarracado, rosto redondo, barba igualmente preta, é o líder metalúrgico Luís Inácio da Silva, o Lula. Não sei a data da foto, mas pela cara dos dois imagino que FH nem sonhava em ser Senador da República, e Lula nem pensava em se tornar deputado federal. Nenhum dos dois, provavelmente, imaginaria a sério, naquele dia, que se tornaria Presidente da República – e que o colega ao lado também.

FH e Lula são duas figuras emblemáticas de todos os Brasis que poderiam ter sido e não foram. Lembro que numa das vezes em que se enfrentaram nas urnas eu dizia a amigos meus, decepcionados com as plataformas e os ideários de campanha de ambos: “Olha, nós aguentamos a ditadura, aguentamos Sarney, aguentamos Collor, aguentamos Itamar. Bem ou mal, ter o direito de escolher entre FH e Lula é uma bênção”. Porque todos estes cidadãos que os precederam na presidência eram políticos profissionais, fossem raposas velhas como Sarney e Itamar Franco, ou maracajás jovens como Fernando Collor. Eram gente do ramo, membros da irmandade sem nome, sem partido e sem ideologia que nos governa e nos dessangra há tantos séculos.

Aqueles dois, não. Um era sociólogo de esquerda, amadurecedor de utopias nas bancadas acadêmicas, grande esgrimidor de estatísticas e grande pesquisador da via-crucis latino-americana. Era filho das nossas melhores elites militares. Surgiu como rapaz-prodígio no mundo universitário no tempo em que a ditadura fez o que pôde para quebrar a espinha dorsal do pensamento crítico brasileiro. O outro era o contrário. Filho criado sem pai, migrante em pau-de-arara, operário, sindicalista. Chegou à presidência depois de um calvário de derrotas e perseguições. No Planalto, sentiu-se tão à vontade quanto Romário na grande área: ali ninguém o desarma.

Em homenagem a estes dois brasileiros, que não foram políticos profissionais de origem mas chegaram à presidência, sugiro que nossa próxima Constituição estabeleça um pré-requisito para governar o Brasil. Para se candidatar a presidente, qualquer brasileiro será obrigado a fazer o curso de Sociologia (graças a uma Bolsa de Estudos, pela qual ressarciria os cofres públicos depois de eleito), e a trabalhar durante quatro anos como torneiro mecânico, ganhando, morando e criando os filhos nesse nível de poder aquisitivo. O que faltou a FH foi ter sido pobre, nordestino, assalariado, comer de marmita; o que faltou a Lula foi não ter estudado, não ter sido obrigado a teorizar, não ter amargado um exílio no estrangeiro. Que presidentes teriam sido ambos (não custa nada sonhar) se os dois tivessem sido um só.

1836) “O curioso caso de Benjamin Button” (27.1.2009)



Baseado num conto de F. Scott Fitzgerald, este é o filme com maior número de indicações para o Oscar deste ano. É, surpreendentemente, dirigido por David Fincher, autor de filmes de suspense (Seven, Zodiac) e do famoso Clube da Luta, já comentado aqui, um thriller eficiente e muito bem feito, apesar de uns flertes com o machismo-fascismo. Todos esses muito diferentes deste filme longo, nostálgico, cheio de bons sentimentos e daquilo que hoje em dia se chama “lições de vida”. Fosse Benjamin Button dirigido por algum desses cineastas de auto-ajuda como Steven Spielberg, eu talvez o tivesse achado insuportavelmente açucarado. Sendo de David Fincher, é sinal de que a humanidade não está perdida.

Benjamin é um sujeito que nasce com 90 anos de idade e vai remoçando ao longo da vida. É uma premissa fantástica, que desorienta os críticos mais cartesianos, como Roger Ebert, o qual achou o filme um desperdício de talentos. Bobagem. É uma das premissas mais batidas da literatura fantástica, e o seu desafio está justamente em estabelecer logo de cara um traçado obrigatório para o filme e segui-lo sem deixar que o espectador boceje. Ou seja, com quinze minutos de filme a gente já sabe que o personagem vai remoçar. Cabe ao diretor e ao roteirista inventar coisas interessantes para lhe acontecerem durante o trajeto.

Eu tinha achado o filme muito parecido com Forrest Gump. O mesmo personagem fora do comum e simpático; o mesmo trajeto pelo mundo, ao longo de décadas; a mesma sensação de ver os fatos da História através dos olhos do protagonista; havia até mesmo algumas cenas quase idênticas, como uma tempestade no mar. E em seguida vim a descobrir que o roteirista dos dois filmes é o mesmo, Eric Roth, o que explica a extrema semelhança estrutural dos dois filmes, além do clima nostálgico, distanciado, conduzido por uma voz-guia que atravessa as décadas como quem conta uma história da qual só recorda algumas partes.

O filme é excelente no que se propõe, em parte pelas sucessivas reconstituições de época, pois a história vem desde a I Guerra Mundial até a destruição de Nova Orleans pelo furacão Katrina. A maquiagem consegue dois prodígios: transformar Brad Pitt primeiro num ancião e depois num rapazola. Cate Blanchett, como sempre, está magnífica. O roteiro de Roth me parece dever muito, também, ao estilo de escrever e filmar de Jean-Pierre Jeunet (Amélie Poulain), encadeando de maneira engraçada e engenhosa fatos irrelevantes, extraordinários.

Li em 1962 um contozinho de ficção científica sobre um planeta chamado Arret, onde as pessoas nasciam idosas, rejuvenesciam, e conseguiam, em seus últimos anos, reunir um máximo de experiência de vida e de energia física. O conto (não recordo o autor nem o título) ironizava o nosso mundo às avessas. Benjamin Button nos dá um vislumbre das belezas e das tristezas dessa vida ideal.