terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

1664) A sextilha e o blues (12.7.2008)



(Ivanildo Vila Nova + Robert Johnson)

Algumas formas de poesia cantada têm evoluções diferentes, vêm de origens completamente diversas, mas acabam convergindo para formas parecidas.

É o que ocorre com a estrofe básica da Cantoria de Viola (a sextilha) e a estrofe básica do blues norte-americano, o blues tradicional, acústico, chamado às vezes de “twelve-bar blues” (blues de doze compassos).

A sextilha é ibérica. Pode haver alguma influência africana nela? Pode, como pode haver em tudo que faz parte da cultura popular do Nordeste. Mas em princípio a sextilha é sertaneja ou caririzeira, de uma região onde a presença negra é minoritária. Mesmo com grandes cantadores negros no passado (Fabião das Queimadas, Inácio da Catingueira, etc.), a sextilha me parece o produto de uma poética branca.

O blues tradicional tem uma estrofe com duas semelhanças com a dos cantadores:

1) é uma sextilha, ou seja, uma seqüência de seis versos cantados;

2) é um derivado da quadra, da estrofe de quatro versos.

 A sextilha dos cantadores derivou-se obviamente da quadrinha portuguesa, daquela estrofe singela que já era cultivada antes de Cabral, rimando ABCB:

Se eu não vejo luz acesa
na janela do meu bem
quer dizer que está dormindo
sonhando não sei com quem.

É a estrofe básica de nossa poesia. Os sertanejos da Serra do Teixeira a transformaram em sextilha com rimas ABCBDB:

Se eu não vejo luz acesa
na janela do meu bem
quer dizer que está dormindo,
sonhando não sei com quem,
ou que foi me procurar
sem pensar em mais ninguém.

Já a estrofe básica do blues de 12 compassos é também uma estrofe de seis linhas, sendo que cada duas linhas são cantadas ao longo de quatro compassos. Uma sextilha, portanto.

Ocorre que, numa quantidade imensa de canções de blues, os dois primeiros versos da letra sejam repetidos, ou seja, versos mesmo só existem quatro! É uma quadra espichada para caber numa melodia de sextilha.

E isso ocorre com maior freqüência, pelo que pude deduzir, nos blues mais antigos, que seriam uma fase de transição entre a quadra e a sextilha. Eis um exemplo entre milhares, tirado de “Kind-hearted Woman”, do grande Robert Johnson:

I got a kind-hearted woman
do anything in this world for me.
I got a kind-hearted woman
do anything in this world for me.
But these evil-hearted woman
man, they will not let me be.
 (“Eu tenho uma mulher de bom coração / que faz qualquer coisa no mundo por mim (2x) / Mas essas mulheres de coração ruim / não me deixam viver em paz”.

Isto abre uma interessante possibilidade de mão dupla: a de adaptar para cantoria em sextilhas inúmeras letras, melodias e canções já prontas, vindas do universo do blues. E, em contrapartida, de adaptar ao estilo de blues qualquer material de sextilhas nordestinas. Além dos evidentes parentescos sociais e históricos, o universo do blues e o da cantoria têm nas suas estrofes básicas dois vasos comunicantes pelos quais podem passar oceanos de poesia.






1663) O piloto e o passageiro (11.7.2008)




Ouvimos falar o tempo inteiro em “nossa identidade cultural”. A identidade cultural dos brasileiros, dos nordestinos, dos paraibanos... Mas como estabelecer essa identidade sem aprisioná-la para sempre numa dessas receitas do tipo “é assim e não pode ser assado”? 

Ou eu tento privilegiar o que acredito ser, tento ser fiel a essa essência – e neste caso me furto a interagir com o mundo, para não aceitar transformações; ou aceito essa interação e corro o risco de, no minuto seguinte, deixar de ser o que sou agora. 

É um pouco como, na Física, o famoso “Princípio da Incerteza”: ou sabemos a posição de uma partícula, mas desconhecemos sua velocidade, ou sabemos com que velocidade ela se move, mas nunca sabemos onde está.

Talvez possamos atenuar esse problema se virmos a identidade não como uma coisa sólida, de contornos claros e definidos, mas como uma trajetória através dos fatos. Não um ponto estático, mas uma linha que se alonga. 

Identidade não é a posição em que estamos, mas o modo como nos movemos através dos fatos e a trajetória que esse movimento acaba desenhando. É impossível conhecer alguém por dentro, conhecer “a coisa em si”. Mas podemos observar, de fora, como esse alguém se comporta, como se movimenta através do tempo, suas mudanças de rumo, suas correções de percurso. E a rota traçada por esse alguém é que seria sua verdadeira identidade.

Eu nunca andei de bicicleta; tenho um medo danado de me fazer em pedaços no primeiro poste que aparecer. Mas, se nunca pilotei bicicleta, já andei muito nelas, pegando carona, sentado no bagageiro. E não só de bicicleta, mas mobilete, moto, etc. 

E uma coisa que eu ficava observando (para me distrair do medo de morrer) era a enorme velocidade com que estávamos sendo propelidos através da paisagem, e a tranqüilidade sem fim com que o meu amigo, encarregado da pilotagem, “negociava” o percurso: rodeando automóveis, abrindo curvas largas quando o espaço permitia, dando freiadinhas bruscas ao se aproximar de um sinal ou de um obstáculo, atenuando o vácuo na descida dos viadutos, inclinando o corpo em 45 graus nas curvas mais fechadas...

Pensar em identidade como uma coisa estática é coisa para passageiro, para quem está sendo levado pelos outros, passivamente, relaxadamente, sem o compromisso de salvar a própria vida a cada metro. 

Para os “agentes sociais” (valha o termo!) identidade é esse percurso que se constrói com atos privados e públicos, tomadas de decisões, adoção de estratégias. A identidade não é uma descrição fixa de quem somos, é uma soma das decisões que tomamos e das responsabilidades que assumimos, e pode ser aferida através do trajeto que percorremos. 

Identidade não é uma coisa – a “coisa”, no caso, somos nós. Identidade é o trajeto escolhido por essa “coisa” ao longo da vida, é o trajeto que nos dá pistas (sempre indiretas, claro) sobre o que há dentro do interior inacessível dessa coisa chamada gente.






1662) Ou isso ou aquilo (10.7.2008)



Já tive uma discussão horripilante, que durou mais de uma hora, com um rapaz que queria saber se o filme Alien, o 8o. Passageiro era um filme de terror ou um filme de ficção científica. “As duas coisas,” tentei explicar. “É FC pelo universo descrito: uma espaçonave, no futuro, fazendo uma rota comercial entre planetas. E é terror pela presença de um monstro que ameaça os personagens e aterroriza a platéia”. O sujeito era mais irremovível do que as pirâmides, e dizia: “Errado. Ou se é uma coisa, ou se é outra. Uma cadeira é uma cadeira, uma mesa é uma mesa”.

São os males que nos causa a Lógica Aristotélica mal compreendida. Dizer que A é A e B é B é um passo importante para a gente distinguir entre um pão e uma pedra. O problema é que o cérebro de muita gente estaciona aí. Não passa para o estágio seguinte, em que A pode ser B, desde que não haja incompatibilidade entre os dois conceitos. Há conceitos incompatíveis: não imagino como uma banana possa ser um poço de petróleo ao mesmo tempo. Mas uma mesa pode servir de cadeira se eu sento nela, num escritório lotado, e uma cadeira pode servir de mesa quando eu, sentado no sofá, coloco sobre ela um prato de biscoitos e uma xícara de café.

A Terra é plana, ou é redonda? Essa discussão se arrastou durante milênios, porque nossa experiência prática nos diz que ela é plana, e a Astronomia nos explica que é redonda. A verdade é que a redondeza da Terra é tão desproporcionalmente grande em relação a nós que, para efeitos práticos, qualquer segmento dela que nossa vista alcance nos parece um espaço horizontal plano (ainda que irregular, com elevações, vales, etc.). A Geometria nos diz que podemos traçar um polígono com um número imenso de lados, todos retilíneos, e essa figura vista de longe parecerá um círculo. Assim é, transposta para três dimensões, nossa experiência com a redondeza da Terra. De longe é uma esfera. De perto é um poliedro com um número imenso de faces.

Mesmo sabendo que é a Terra que gira em torno de um Sol teoricamente fixo, não deixamos de dizer que o Sol se ergueu, o Sol se pôs, o Sol percorreu o céu... Não o fazemos por mero conservadorismo lingüístico, mas porque essas descrições correspondem a nossa experiência visual, e são corretas – nesse âmbito. Temos hoje dois sistemas de referências para descrever o movimento relativo entre a Terra e o Sol, e convivemos com os dois numa boa.

A maioria das pessoas não sabe, por exemplo, que vemos tudo de cabeça para baixo. As imagens se formam invertidas em nossa retina, como qualquer câmara escura nos demonstra. Passamos os primeiros meses de nossas vidas às apalpadelas, até descobrir que quando vemos uma coisa “no alto” só podemos tocá-la de estendermos a mão “para baixo”, e vice-versa. Os sentidos nos enganam. O cérebro precisa construir, em cima dessa imagem invertida, um software que desminta o que os sentidos nos dizem, para que possamos saber onde as coisas realmente estão.

1661) A monocultura sexual (9.7.2008)



As letras do forró eletrônico não me escandalizam. Posso fazer (e já fiz) poemas que deixariam essa rapaziada com o rosto enrubescido. São uns amadores. A crítica que faço à música deles, portanto, não é uma crítica moralista de quem se escandaliza com versos de safadeza. Pelo contrário! O verso e o romance de safadeza são uma nobre arte. Olhem aqui na minha estante, e verão de Henry Miller a Aretino, do Marquês de Sade a Carlos Zéfiro, e de Bocage aos romances em versos que Ariano Suassuna, em seu estudo dos ciclos do cordel, classifica como “folhetos de safadeza e putaria”.

Essas coisas fazem parte da cultura, companheiros. Sempre fizeram e sempre o farão. O problema da pornografia é quando ela passa a ser usada sistematicamente, como uma monocultura arrasadora. A pornografia pode virar algo como a cana-de-açúcar ou a soja, que precisam viabilizar lucros cada vez mais rápidos, mesmo que o preço seja a destruição de todas as outras culturas em volta. A pornografia tem seu lugar e sua função. Ela se transforma num problema quando vira uma indústria tão lucrativa que extingue tudo que há em redor.

Uma coisa é o forró malicioso, feito por um cara que teve uma boa idéia, uma idéia que admite uma dupla leitura com sentido erótico, e faz uma música com ela. Uma música que, no CD, vem ladeada por outra que fala em sertão, outra de sátira política, outra de amor, outra de descrição da vida urbana, e assim por diante. É o que vemos nos discos dos grandes forrozeiros. Escutem o Trio Nordestino, Elino Julião, Maciel Melo, Biliu de Campina, Flávio José. Todos fazem, no meio de um repertório variado, que cobre todas as facetas da vida humana, músicas cujo tema é o sexo, a sedução, o corpo feminino, o xamego entre homem e mulher. É uma das coisas boas da vida, porque não falar dela – com humor, com graça, com uma piscada de olho para as meninas? Todo mundo gosta.

O que sou contra é esse samba-de-uma-nota só mórbido, doentio: safadeza, safadeza, safadeza... Também seria contra um movimento musical que falasse unicamente de futebol, futebol, futebol. Ou uma escola literária que quisesse impor como único tema a filosofia, filosofia, filosofia. Ou um cinema que se limitasse a repisar histórias sobre o sertão, sertão, sertão. Tudo demais é veneno. Nada tenho contra a pornografia como gênero, mas sou contra a pornografia (ou qualquer outra coisa) como tema único, repisado de forma incessante. Sou contra a canção pornográfica como monocultura, repetição obsessiva, com o único objetivo de esgotar o mais depressa possível um mercado cheio de gente ingênua. Depois de exaurido esse mercado, os espertalhões (que não são do ramo, não são do forró) passarão adiante. Irão fazer música evangélica ou jingles de campanhas políticas. E deixarão atrás de si uma geração de jovens abobalhados, incapazes de entender uma música se ela não falar da única coisa que eles aprenderam a ouvir.

1660) “A Noite” (8.7.2008)



No início deste filme de Antonioni, um casal visita um amigo que está gravemente doente num hospital. Alguém faz um comentário: “Um dia os hospitais vão virar boates. As pessoas querem se divertir até o fim”. É uma das muitas frases emblemáticas deste filme sobre um escritor desorientado que quer extrair da vida todos os bons momentos, quer (como se diz nesses círculos) viver intensamente cada minuto, e quando mais procura vivê-los intensamente mais se afunda no tédio e em conflitos sem sentido.

Quando eu via Antonioni na adolescência, dizia (repetindo os críticos de cinema) que filmes como A Noite mostravam a crise espiritual da alta burguesia italiana. Para mim, Giovanni (Marcello Mastroianni), com seu carro aerodinâmico, seus ternos impecáveis e seu apartamento cheio de móveis europeus, era o protótipo do alto burguês. Hoje sei que seu personagem nesse filme não passa de um escritor desempregado, como este em que eu próprio me tornei, trabalhando feito um mouro para publicar livros que só os amigos lêem, e freqüentando com condescendência festas de pessoas ricas que o convidam mas o ignoram. Burguês é o industrial dono da festa em que decorre toda a segunda metade do filme, e que faz a Giovanni a chamada proposta irrecusável: tornar-se porta-voz de sua indústria juntos aos operários e à sociedade em geral. Giovanni, já de olho na filha do anfitrião, balança.

O crítico Jean Mitry disse que este filme, como A Aventura, é a história de uma separação frustrada, a história de casais que não dão mais certo, mas já estão a tal ponto enganchados um ao outro que não têm remédio senão ir dormir e esperar que no dia seguinte aconteça alguma coisa. Lidia (Jeanne Moreau) se distancia do marido; passeia pelos subúrbios e deixa-se atrair, fascinada, por um grupo de jovens truculentos que brigam de socos. É uma das cenas típicas de Antonioni, em que pessoas sofisticadas, civilizadas, cultas, deixam-se fascinar hipnoticamente por tudo que exprime selvageria, vitalidade física. Essa seqüência rima com a da boate onde o casal vai ver um grupo de dançarinos negros e sensuais.

A parte final do filme descreve uma longa festa, na qual o casal deriva, de maneira errática e hesitante, para outros interesses. Giovanni paquera longamente com Valentina, a filha do dono da casa; Lidia deixa-se levar para um passeio por um pretendente, mas na hora H bate em retirada. Chove. As pessoas deixam-se molhar no jardim, pulam bêbadas na piscina, deleitam-se com essas transgressões inofensivas. Quando o dia amanhece, Antonioni (com uma fotografia estupenda de Gianni di Venanzo) mostra a claridade enevoada do dia erguendo-se sobre os despojos da farra. Não há nada mais terrível do que o sujeito virar a noite embriagando-se e embrutecendo-se, só para descobrir que a certa altura o “condenado” do sol vai nascer de novo. O casal rola abraçado pela grama. Lidia murmura: “Eu não te amo, eu não te amo”. E a vida continua.

1659) Um puteiro a céu aberto (6.7.2008)



(José Teles)

Circula na Internet um artigo de José Teles, publicado no Jornal do Commercio de Recife, sobre as letras das músicas do assim-chamado forró eletrônico. Algumas pessoas creditam o artigo (intitulado “Tem rapariga aí?”) a Ariano Suassuna, mas Ariano é apenas citado nos parágrafos iniciais. O autor é Teles, aliás campinense de nascimento, e grande conhecedor de música (é o autor do livro Do Frevo ao Manguebeat, sobre a música pernambucana).

As letras do forró eletrônico têm explorado cada vez mais um único tema: a safadeza. O artigo de Teles cita alguns títulos dessas músicas: “Dinheiro na mão, calcinha no chão”, “Mulher roleira”, “Fiel à putaria”, “Abre as pernas e dê uma sentadinha”, “Chefe do puteiro”... Desculpe colocar essas coisas no jornal, caro leitor, mas, já que elas tocam em praça pública para 20 mil pessoas...

O deputado cearense Ciro Gomes afirmou recentemente que “Fortaleza virou um puteiro a céu aberto”. Se o fez por rivalidade política com a administração local é irrelevante. Todo mundo sabe que algumas cidades do litoral do Nordeste estão virando, a cada ano que passa, uma espécie de zona do baixo meretrício ao ar livre, para o desfrute de turistas alemães, espanhóis, etc., que vêm fazer o chamado “turismo sexual”. O forró eletrônico é a trilha sonora desse processo.

Em seu artigo, diz José Teles: “Faço um paralelo com o turbo folk, um subgênero musical que surgiu na antiga Iugoslávia, quando o país estava esfacelando-se. Dilacerado por guerras étnicas, em pleno governo do tresloucado Slobodan Milosevic surgiu o turbo folk, mistura de pop, com música regional sérvia e oriental. As estrelas da turbo folk vestiam-se como se vestem as vocalistas das bandas de 'forró', parafraseando Luiz Gonzaga, as blusas terminavam muito cedo, as saias e shortes começavam muito tarde. Numa entrevista ao jornal inglês The Guardian, o diretor do Centro de Estudos alternativos de Belgrado. Milan Nikolic, afirmou, em 2003, que o regime Milosevic incentivou uma música que destruiu o bom-gosto e relevou o primitivismo estético,. Pior, o glamur, a facilidade estética, pegou em cheio uma juventude que perdeu a crença nos políticos, nos valores morais de uma sociedade dominada pela máfia, que, por sua vez, dominava o governo”.

O forró sempre teve letras de duplo sentido. Examinem a obra de Luiz Gonzaga, Antonio Barros, Jackson do Pandeiro, João do Vale. É engraçado, é divertido, é saudável. O forró é malicioso, porque a malícia faz parte da vida. O forró fala de tudo, mas o forró eletrônico pratica apenas a “letra de único sentido”. A sexualidade escrachada é martelada sem parar em nossos ouvidos. É música feita por gente esperta para tirar dinheiro de gente boba. Quando é depois, como podem os nordestinos se queixar de que não são respeitados no Rio e em São Paulo, quando eles mesmos não se respeitam, e estão transformando o seu forró numa safadeza banal, suas cidades num puteiro a céu aberto?