sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

1558) Dylan, o Espírito sobre as Águas (11.3.2008)



Bob Dylan subiu ao palco da Rio Arena, na noite do último sábado, envergando seu uniforme habitual nos últimos shows: um horroroso jaquetão cinza-alumínio, calças pretas e um chapéu preto da aba larga e copa baixinha. Está cada vez mais parecido com Vincent Price. O primeiro número foi uma levada arrebatadora que pôs todo mundo de pé, “Rainy Day Women n. 12 & 35”, talvez em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Seguiram-se duas canções de amor na sua época de ouro, “It ain’t me babe” e “I’ll be your baby tonight”, após o que veio o clássico “Masters of War”, num arranjo pesado, dramático, ominoso. O rock balançado retornou com “The Levee’s Gonna Break”, após o que seguiram-se canções lentas recentes: “Spirit on the Water”, “Things have changed”, “Workingman Blues”.

Outra canção antiga com arranjo irreconhecível, mas eficaz, foi “My Back Pages”, com o seu refrão definitivo: “Ah, mas eu era muito velho naquele tempo, hoje estou mais jovem”, uma canção que Dylan gravou quando tinha 23 anos e que canta com vigor redobrado agora aos 66. A esta, seguiram-se músicas que deram o tom ziguezagueante do show – rocks pesados que levantavam a platéia, seguidos por canções lentas. Foi o que se deu com “Honest to me” (do CD “Love and Theft”), num arranjo que lembrou o “Instant Karma” de John Lennon, ao qual sucedeu a suave e melódica “When the Deal Goes Down”. Em seguida, um dos melhores números da noite, “Highway 61”, conduzido por três guitarras estridentes (Dylan passou o show todo ao piano elétrico, com exceção das primeiras duas ou três músicas), que deu lugar a “Nettie Moore”, uma canção melancólica do disco novo, “Modern Times”.

O fecho do show foi novamente para cima, com o rock alegre de “Summer Days”, que fez uma parte da platéia romper umas barreiras de contenção e correr para a frente do palco, tapando a visão de quem estava nas cadeiras especiais ao nível do chão. Todo mundo ficou de pé, a banda atacou “Like a Rolling Stone”, e não é preciso dizer mais nada. O grupo saiu do palco, retornou uns dez minutos depois para executar a empolgante “Thunder on the Mountain” (faixa de abertura do CD novo) e encerrar com “Blowin’ in the Wind”.

Dylan é um dos artistas mais brechtianos da história do Rock. Não faz concessão alguma. Sua banda é fleumática, não dança, não rebola; vestem-se todos como detetives particulares de filme policial, ternos escuros, gravata frouxa, chapéus de feltro escuro. Lembram atores do Berliner Ensemble. Dylan não olha, não sorri. Quando o entusiasmo está grande, ele joga um banho de água fria. A galera mais jovem está habituada com cantores que fazem acrobacias aeróbicas, que “se relacionam” com a platéia o tempo todo, conversam, fazem trejeitos. Se Dylan fosse repentista, seria da escola de Ivanildo Vila Nova: rosto impassível, nada de gestos, nada de teatrinho. A Voz e o Verso. Assim como quem diz – o Martelo e o Prego.

1557) A vitória das cores locais (9.3.2008)



Leio no Globo um episódio ilustrativo da peleja mais divertida do mundo de hoje: a do Monopolismo Globalizador contra a Resistência Regionalizante. Diz a matéria que alguns anos atrás a rede MacDonald’s instalou uma filial no estádio do Besiktas, um dos clubes de futebol mais populares de Istambul. Como qualquer brasileiro sabe de cor, as cores do MacDonald’s são o vermelho e o amarelo. Cores fazem parte da identidade visual de uma marca. São exaustivamente pesquisadas e discutidas antes de serem adotadas. Lembro de ter assistido uma palestra do designer Aloísio Magalhães em que ele passou uns vinte minutos explicando por que motivo o amarelo da Petrobras era único. Exibiu dezenas de slides mostrando as diferentes percentagens de vermelho contidas nesse amarelo, até se chegar à tonalidade definitiva, que pode ser subliminarmente identificada pelo público num simples olhar. Identidade visual não é apenas um logotipo.

Pois bem: os turcos torcedores do Besiktas sabiam disso “sobreliminarmente”, porque depredaram a pau e pedra a lanchonete do MacDonald’s. O motivo, simples e óbvio, era que o vermelho e o amarelo são também as cores do Galatasaray, o arqui-rival do Besiktas no futebol de Istambul. Será que os americanos não sabiam disso? Provavelmente sabiam, mas não acreditaram que os turcos detestassem tanto aquelas cores. Imagine só se alguém botasse no Estádio Presidente Vargas uma lanchonete pintada de preto e vermelho.

Depois da depredação o MacDonald’s voltou atrás e pintou a lanchonete de preto e branco (as cores do Besiktas), mas o mal já estava feito, ninguém comprava sequer uma batatinha frita. Ronald MacDonald botou o mac-rabo entre as mac-pernas e fechou as portas. Mais sábia (relata o jornalista Fernando Duarte, autor da matéria) foi a cadeia Burger King, que, escaldada pela desgraça do concorrente, abriu uma lanchonete no estádio do Fenerbahce e, em vez do tradicional vermelho de suas lojas, adotou com diplomática prudência o amarelo e o azul do clube turco.

Algo parecido ocorre aqui no Brasil. É o fenômeno da Coca-Cola azul. Como se sabe, a cor da Coca-Cola no mundo inteiro é o vermelho. Mas em Parintins, no Amazonas, onde a empresa patrocina os dois Bois do festival folclórico local, ela teve que se dividir. Nas propagandas do Boi Garantido, a cor usada é o vermelho; no material do Boi Caprichoso, tudo é azul. Em Parintins, essas duas cores têm um significado quase religioso. Quem torce por um Boi não usa a cor do rival, nem sequer pronuncia o nome do rival. A orgulhosa Coca-Cola curvou a cerviz e adotou a cor azul em todo o material de propaganda de um dos dois lados. Perdeu um centavo com isso? De jeito nenhum. Fatura, e fatura à pampa. A vitória regionalista é uma vitória puramente simbólica, talvez uma ilusão de poder. O Monopolismo Globalizador invade e fatura do mesmo jeito. Mas, às vezes, vale mais um gosto do que seis vinténs.

1556) “A montanha dos 7 abutres” (8.3.2008)




Os cursos de Jornalismo bem que poderiam exibir e discutir alguns filmes memoráveis sobre nosso ofício, que os mais mordazes dizem ser a segunda mais antiga das profissões. Hollywood tem uma balança pesada de pecados a pagar, mas no prato oposto existem algumas centenas de títulos, cada um dos quais pesando o equivalente a dez dos que estão no lado oposto. Graças a isso sobrevive.

Este filme de Billy Wilder, realizado em 1951 sob o título Ace in the Hole (depois mudado para The Big Carnival) é a história de um jornalista carreirista e inescrupuloso, desses dispostos a qualquer coisa para dobrar a circulação do jornal e triplicar o próprio salário. 

Chuck Tatum (Kirk Douglas) é um jornalista caído na lista negra que chega ao Novo México em busca de uma segunda chance, e acredita tê-la encontrado quando descobre um homem que acabou de ficar parcialmente soterrado numa mina. Tatum percebe que quanto mais tempo demorar o socorro mais jornais ele poderá vender. 

Ele se alia a um xerife desonesto, pressiona o médico, manipula e depois seduz a quase viúva, intimida os pais de Leo (o mineiro soterrado), e cria num piscar de olhos um enorme carnaval em torno da mina, com cobrança de ingresso, transmissão ao vivo pelo rádio, barracas de hamburgers, shows de música. O resgate, que normalmente precisaria de um dia, arrasta-se por mais de uma semana. Enquanto isto, a quase viúva (que elogia com desdém o caráter do marido), começa a bater pestanas para ele.

Tatum é um dicionário ambulante de máximas e mandamentos do jornalismo marrom, ou até do jornalismo sério, o jornalismo preto-e-branco. “Hoje, é uma boa reportagem; amanhã, vai servir para embrulhar peixe”. Para o xerife, ele diz: “Dance pela minha música e será reeleito. Não dance e eu o crucifico”. “Posso lidar com pequenas notícias e grandes notícias, e se faltarem notícias eu saio para a rua e mordo um cachorro”. “Más notícias vendem melhor, porque boas notícias não são notícia”.

A história acontece num deserto do Oeste, um lugar de sol cegante e calor insuportável. É a versão diurna do chamado “filme noir”, o qual, por definição, transcorre quase todo durante a noite, e noite de chuva ainda por cima. Nos filmes como este, no entanto, a ambientação são as ensolaradas e sufocantes cidadezinhas do interior, onde é possível fritar um ovo no calçamento, e onde o filme encontra os mesmos “homens desesperados e mulheres fatais”. Homens capazes de qualquer crime para ficarem ricos; e mulheres capazes de qualquer traição para irem embora dali. 

São cidades claustrofóbicas, por mais que estejam cercadas das vertiginosas vastidões do Oeste americano. A mulher de Leo está tão presa ali quanto o marido, soterrado da cintura para baixo pelo desmoronamento. Billy Wilder satirizou o jornalismo em A Primeira Página, dissecou um casal “noir” em Double Indemnity. Este filme é de certa forma a síntese entre os dois.






1555) O romance de amor (7.3.2008)



Já ganhei a vida fazendo traduções para grandes editoras (atividade de que me orgulho, e à qual recorro sempre que a grana começa a encurtar). Já traduzi manuais técnicos, livros de auto-ajuda, romances policiais, de terror, de faroeste, de ficção científica. Um gênero para o qual torci o nariz no começo, mas que depois se revelou muito informativo, foi o do chamado “romance de amor” para o público feminino. Faz parte da cultura masculina menosprezar qualquer leitura em que o amor seja o tema central. Não importa se se trata de fotonovelas da Capricho ou Sétimo Céu (eita, como eu sou velho!), de romances de Jane Austen, ou de ensaios sofisticados como o de Roland Barthes. Diante desses produtos culturais, o adolescente rebelde que existe em nós mete os pés e grita: “Falas de amor, e eu ouço tudo, e calo! O amor na humanidade é uma mentira!” E nada mais dizemos, por mais que nos seja perguntado.

Ler (pior: traduzir) os romances de Barbara Cartland ou Barbara Delinsky pode ser uma atividade educativa, porque são produtos cuidadosamente planejados e executados para reproduzir um conjunto de mentalidades que editoras, autoras e leitoras vêm aperfeiçoando entre si há cerca de dois séculos. Como qualquer outro gênero literário, principalmente os de massa, o romance de amor é um conjunto de protocolos, garantindo a quem lê a certeza do que vai encontrar lá dentro, e que pode ser definido como “um pouco mais daquilo mesmo”.

Num artigo recente em The Guardian Kathryn Hughes relata sua tentativa frustrada de escrever livrinhos da Mills & Boon, editora inglesa que vende 200 milhões de histórias de amor por ano. Diz ela, sabiamente, que a maioria dos aspirantes a essa literatura fracassa porque na verdade não gosta desses livros. Quer escrevê-los porque acha que é fácil (acha que eles requerem pouco talento literário e pouca inteligência) e precisa ganhar um dinheiro rápido. E o leitor de best-seller é especialista em best-seller. Percebe, logo nas primeiras páginas, quando o autor é um deles ou não. Percebe quando o autor compartilha seu gosto por aquele tipo de livro ou está somente querendo fazê-lo de bobo.

Diz Hughes: “Todo mundo acha que pode escrever um romance da Mills & Boon, mas é mais difícil do que parece. A principal coisa é não ser condescendente. A editora está cansada de autores espertos que tentam fazer ventriloquismo com uma voz narrativa da indústria de massas e não conseguem disfarçar o fato de que se consideram superiores àquilo tudo”. O romance de amor (como a telenovela) pode ser definido como “uma fantasia de realização romântica em que um herói másculo abandona voluntariamente seu modo evasivo de ser e se compromete a uma vida monogâmica com a heroína”. Além disso, o romance é “uma fantasia sobre a vida das classes superiores”. Seu propósito é garantir por algumas horas, a uma leitora insegura de si mesma, a fantasia da felicidade afetiva e da ascensão social.

1554) O artista cara-de-pau (6.3.2008)



(Stewart Home)

Pode parecer aqui nesta coluna que eu nutro algum tipo de despeito contra os artistas plásticos pós-modernos, mas não é vero. Tenho muitos amigos nessa área e em geral admiro muito o que produzem. O problema é que depois que alguém teve a idéia de dizer “arte é aquilo que a gente chama de arte”, o mundo artístico começou a bater biela. Vem um cara e manda duzentas cuecas sujas para uma Bienal, depois chega outro e remete uma geladeira vazia para a Documenta, outro inaugura numa galeria uma exposição de hidrantes envoltos em celofane... Enfim, eles fazem lá suas coisas e sempre aparece um crítico fumando piteira e falando em desconstrução, em somatório de léxicos pós-industriais, em pulsões semióticas e o escambau.

Num artigo intitulado “Paint it Black” na revista-livro Strange Attractor n. 3 (www.strangeattractor.com.uk) o artista britânico Stewart Home faz um dos depoimentos mais arrasadores e mais caras-de-pau sobre o mercado da arte. Ele começa assim: “Um dia, na primavera de 1982, eu acordei e decidi que irria ser um artista. Eu tinha 20 anos e achava que arte era qualquer coisa que as pessoas que exercem o poder na Cultura dizem que é arte. Meu entendimento de arte era institucional, e eu acreditava que várias manobras burocráticas eram requeridas para em transformar num artista, em vez da posse de uma qualidade totalmente nebulosa chamava talento”.

Home descreve as numerosas (e bem-humoradas) manobras que realizou para ter obras expostas em galerias ou participando de exposições coletivas. “Eu tinha notado que muitas Histórias da vanguarda eram escritas por pessoas envolvidas no próprio movimento que registravam”, diz ele. Passou a redigir manifestos e mais manifestos que não passavam de paródias de manifestos famosos, e criou movimentos como “Generation Positive” e outros. Um golpe interessante foi quando ele grampeou uma série de folhas-teste de impressoras, com letras e formas aleatórias (usadas para controlar o fluxo de tinta), e passou a vendê-las. A Galeria Tate de Londres comprou um exemplar, e Home passou a colocar no seu currículo a informação (verdadeira) de que “tinha obras adquiridas pela Galeria Tate” – sem explicar do que se tratava.

Home pregou peças em Deus-e-o-mundo, plantando falsas notícias e falsas entrevistas na imprensa. Usou em seu benefício táticas como a da “Greve de Arte”. Diz ele: “Dei minha conferência de despedida em 1989 no I.C.A, e minha conferência de retorno em 1993 no Victoria And Albert Museum, o que mostra que o fato de ter passado esses anos sem fazer nada provavelmente fez mais por mim do que se eu tivesse suado a camisa para produzir obras de arte nesse período”. Stewart Home conclui: “Provei, para minha própria satisfação, que para me tornar um artista reconhecido publicamente bastava saber manipular vários sistemas simbólicos e burocráticos, e não era necessária nenhuma forma de talento ou de treinamento”.

1553) A arte de ser invisível (5.3.2008)




Em O homem invisível, H. G. Wells produziu a primeira explicação científica para a invisibilidade, que até então a literatura produzia através de encantamentos, poções mágicas, etc. 

Wells sugeriu algo como de uma vibração imposta às moléculas do corpo, fazendo com que a luz as atravessasse sem ser perturbada. O homem invisível, porém, não poderia enxergar, pois a luz atravessaria seu globo ocular sem produzir os reflexos necessários à visão. Ele nem vê nem é visto.

Wells pretendia apenas explorar as aventuras de um homem que descobre mais problemas do que vantagens na invisibilidade. Em primeiro lugar, ele tem que andar nu, pois sua invisibilidade não se transfere para as roupas – e andar nu pelas calçadas, no inverno londrino, não é uma experiência das mais agradáveis. Ajuda a praticar pequenos furtos (embora todo mundo saia à perseguição daquela fruta ou daquele maço de notas que parece ir flutuando pelo ar). 

Mas andar na calçadas implica num esbarrão atrás do outro, pois ninguém o vê; descendo para o meio da rua ele corre o risco de ser atropelado. Para poder fazer as tarefas mais comuns, o homem invisível resigna-se a vestir roupa, capote, chapéu, óculos escuros, e a cobrir o rosto com bandagens.

Alguns animais resolvem o problema misturando-se às cores e formas do ambiente onde vivem. O camaleão é o exemplo mais conhecido, mas há insetos que são indistinguíveis de uma pedrinha, de um talo de capim, de um galhinho seco. 

É uma invisibilidade virtual, porque o inseto continua a ser visto, mas como sua imagem se confunde com o que há à sua volta, o observador não consegue fazer a distinção entre forma e fundo, e não percebe a sua presença.

A literatura policial explorou o conceito da invisibilidade psicológica para fazer com que um criminoso fugisse do local do crime sem ser percebido. 

Numa das histórias de G. K. Chesterton com o detetive Padre Brown, um crime é cometido num sofisticado clube londrino, durante um banquete. A investigação se concentra nas idas e vindas dos convidados e dos garçons. No final, o Padre Brown demonstra que o assassino entrou na sala como convidado e saiu como garçon. Como? Mudando a postura e o andar, uma vez que todos estavam vestidos de black-tie. Entre um grande número de indivíduos com trajes iguais, as testemunhas viram entrar na sala um sujeito empertigado, passo firme, ar autoritário, e, minutos depois, viram sair de lá um sujeito de olhos baixos, pisando de leve, com uma bandeja na mão. Jamais imaginariam que fosse a mesma pessoa.

Outro conto de Chesterton, “O homem invisível”, trata de um crime semelhante. Ninguém viu o assassino sair da casa. Depois de muitos interrogatórios, o Padre Brown vê em cima da mesa algumas cartas com carimbo daquela data, e pergunta quem as trouxe. “Ora, foi o carteiro!” O carteiro era o homem invisível. Todos o viram entrar e sair (era ele o criminoso) mas ninguém registrou sua presença.