domingo, 28 de fevereiro de 2010

1726) “Jack” (23.9.2008)



(China Miéville)

O conto “Jack” de China Miéville, incluído na antologia The New Weird, explora formas híbridas, heterogêneas. Em primeiro lugar há o hibridismo temporal. O universo da cidade de New Crobuzon, criado por Miéville, tem algo do gênero “steampunk”, uma fusão fascinante de elementos futuristas e elementos retrô, coisas de cem anos atrás e coisas de daqui a cem anos. Isso produz uma sensação constante de estranheza e de familiaridade. Ao visualizar esse ambiente, nossa imaginação salta em direções opostas, produz um número muito maior de sínteses (passado/ presente, presente/futuro, passado/futuro) e fica pronta para aceitar situações cada vez mais “estranhas, insólitas, bizarras”.

Existe na sociedade de New Crobuzon um hibridismo permanente entre hardware tecnológico e magia utilitária. Quando as autoridades desencadeiam uma caçada ao inimigo público no. 1, Jack Half-a-Prayer (“Jack Meia-Reza”), o autor diz que elas “utilizaram toda a taumaturgia de que dispunham, os médiuns, os leitores de mentes, e as máquinas de empatia trabalhando a toda potência”. Esta sociedade futura conseguiu fazer o elo entre energias psíquicas e mecanismos físicos, com estes podendo ser adaptados para produzir, armazenar e canalizar aquela, como o fazem com a energia eletromagnética.

O hibridismo visual mais evidente no texto são os enxertos mecânicos a que são submetidos os criminosos condenados em New Crobuzon, que não teriam vez numa narrativa de “realismo futurista” estilo Asimov ou Arthur C. Clarke, na qual seriam considerados despropositados, ou impossíveis de levar a cabo. O tom naturalista da narração de Miéville evita trazer para primeiro plano qualquer sentido alegórico que essas imagens podem ter. Elas são aceitas como parte da realidade descrita. E o Jack deste conto evoca o Spring-Heeled Jack do folclore londrino do século 19.

Em New Crobuzon, as vítimas de tais enxertos são chamadas “os Refeitos” (“the Remade”): “Jack veria essa mulher, cujas mãos foram foram amputadas e substituídas por pequenas asas de pássaros; (...) e o mesmo com aquele garoto a quem extraíram os olhos, substituindo-os por um arranjo de vidros escuros, tubos de órgão e luzes, fazendo-o tropeçar, por estar vendo as coisas de uma maneira diferente da que via desde o nascimento(...). É difícil entender as lógicas do Refazer, pois às vezes os juízes passam sentenças que não fazem sentido. Um homem mata outro com uma faca: seu braço assassino é amputado e substituído por uma faca motorizada com toda a tubulação a vapor necessária para que funcione. (...) Mas não posso explicar a mulher em quem foi implantado um colar de penas de pavão, ou o menino com pernas-de-aranha feitas de ferro enxertadas nas costas, ou as pessoas com olhos em número excessivo, ou com máquinas que as fazem queimar por dentro, ou com pernas de bonecos de madeira, ou com braços substituídos por braços de macacos, que balançam ao andar, com a graça de um gorila maluco”.

1725) Machado: “O Anel de Polícrates” (21.9.2008)





(Machado, por Sergio Leo)

Este conto de Machado (em Papéis Avulsos, 1882) inspira-se na lenda de Polícrates, tirano da ilha grega de Samos. Cumulado de favores pela sorte, Polícrates temeu que o Destino lhe reservasse algum castigo. Um assessor o aconselhou a fazer um sacrifício, desfazendo-se de um bem precioso. Ele atirou ao mar um anel que prezava muito; no dia seguinte, o cozinheiro do palácio abriu o ventre de um peixe, encontrou o anel, e o devolveu ao rei. 

É a versão benigna da tragédia grega. Não se pode fugir ao destino, e mesmo a sorte, quando insistente, parece uma maldição.

Isak Dinesen retoma a lenda (em “O Peixe”, no livro Contos de Inverno) para romancear a história do rei Erik da Dinamarca, que acha no ventre de um peixe um anel de pedra azul. Alguém reconhece nele o anel de uma dama da corte, Ingeborg, cujos olhos eram da mesma cor. O rei diz: 

– Quando as mulheres formosas usam jóias, procuram harmonizá-las com alguma parte do seu rosto ou do seu corpo. Pérolas exprimem a beleza do seu colo ou dos seus seios; rubis e granadas evocam seus lábios, suas unhas, seus mamilos. Você me diz, então, que esta pedra é igual aos olhos dessa dama?... 

A crônica se encerra dizendo: “Srig Andersen matou o rei Erik por vingança, depois que este seduziu sua esposa, Ingeborg”.

Freud comenta Polícrates no ensaio O Estranho (Das Unheimlich), observando que uma sorte excessiva, ou a sistemática realização de todos os desejos, não são algo para se desejar. Diz que o rei do Egito afastou-se de Polícrates horrorizado, ao ver que todos os desejos do amigo eram imediatamente satisfeitos, afirmando que “também o homem feliz tem que temer a inveja dos deuses”. 

Freud vê nessa crença uma manifestação da crença na onipotência dos pensamentos, como se cada desejo intenso que experimentamos fosse imediatamente convertido em realidade.

Machado usa o anel para ilustrar com ironia sua teoria pessoal dos memes, para mim uma visão satírica da vida cultural do Rio, com todo mundo copiando, plagiando, imitando e apropriando-se de idéias alheias. Desenvolve o mesmo tema em “Evolução” (Relíquias de Casa Velha, 1906): o narrador diz uma frase a um conhecido, e no correr dos anos vê o outro repeti-la com pequenas variantes, assenhoreando-se dela pouco a pouco.  

O protagonista de “O Anel de Polícrates", Xavier, é um típico personagem machadiano: o Sonhador Pródigo, o indivíduo com talento mas sem foco, que vive espalhando idéias, iniciando projetos que não leva a cabo, concebendo planos mirabolantes que nunca dão em nada. Machado reverte a alegoria da sorte, contida na lenda grega, usando o anel (a frase) como símbolo do caiporismo de Xavier. Inventor da frase, ele a ouve nos lábios deste e daquele mas não consegue memorizá-la de novo, apossar-se dela. 

A frase é anel e ao mesmo tempo um peixe escorregadio ou ave arisca que sempre lhe foge: “Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia, ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho”.





1724) O terror e o susto (20.9.2008)







Quando eu era garoto, havia uma história de terror que requeria um certo ritual para ser contada. A pessoa pedia que fossem reduzidas as luzes do quarto ou da sala onde a gente estivesse. Começava a contar a história, com rosto muito sério, voz pausada, num tom baixo, quase como uma confidência que não podia ser ouvida na sala vizinha. Era a história de um caminhoneiro que vinha viajando à noite. Ele estava ansioso, cansado, dirigindo há quase 24 horas sem parar. Passava diante de um muro branco e via que era o cemitério do vilarejo próximo. Mais adiante, um vulto acenava pedindo carona. Ele parava, pensando que conversar com alguém o ajudaria a manter-se acordado.

Abria a porta da boléia e subia uma mulher vestida de preto, com um véu escuro sobre o rosto. Ela agradecia, e o caminhão partia de novo. O motorista ficava curioso em saber o que a mulher fazia ali àquela hora, mas como ela ficava em silêncio ele não conseguia encaixar uma pergunta. A mulher pousava as mãos sobre a saia, e, olhando com um rabo de olho, ele via, horrorizado, que as mãos dela estavam cheias de cortes profundos, feitos com faca, cheios de sangue coagulado. Ele se assustava e dizia: “Meu Deus! Dona, quem foi que fez isso com as suas mãos?!” E a mulher se virava para ele, afastava o véu e dizia: “Foi você!!!”

O detalhe é que nesse ponto a pessoa que narrava a história gritava a plenos pulmões. Rapaz, era um susto que eu vou te contar. Depois de criar o clima com meia-luz e voz baixa, esse grito, vindo de repente, era um teste cardíaco pra qualquer um. Vi variantes dessa história, e a que contei é a primeira de todas, que ouvi quando tinha uns dez anos.

Muito bem. Folheando aqui o meu Oxford Companion to Children’s Literature (editado por Humphrey Carpenter & Mari Prichard, 1984) achei uma observação interessante no verbete “Little Red Riding-Hood”, que outra não é senão nossa conhecida Chapeuzinho Vermelho. A versão mais antiga dessa história foi recolhida por Charles Perrault em seus Contes de ma mère l’Oye, de 1697. No manuscrito de Perrault para essa coletânea (escrito em 1695), junto à história de Chapeuzinho há uma nota à margem do trecho em que a menina pergunta ao Lobo para que servem aqueles olhos, orelhas, etc., até a boca, que ele responde: “Pra te comer!”.

Dizem os autores: “Na margem do manuscrito há uma anotação para o contador da história, instruindo-o a dizer essa palavras (do Lobo) numa voz muito alta, para amedrontar a criança, como se o Lobo fosse devorá-la. A história, em outras palavras, é um jogo, que termina com o contador fingindo avançar sobre o ouvinte.” O mais interessante é que a história e o jogo (ou o susto) acabaram se despregando um do outro, porque ao que eu saiba ninguém conta a história de Chapeuzinho com essa finalidade, nem a história termina mais aí. Mas o recurso do susto deve estar presente em muitas outras tradições da narrativa oral.









1723) Vontade de ser artista (19.9.2008)




(Roald Dahl)

Roald Dahl tem um conto, “Mr. Botibol” sobre um personagem que busca em vão se integrar ao mundo. 

Mr. Botibol é rico, mas fracassado. Para começo de conversa, é um sujeito fisicamente repulsivo: alto, magro, cabeça disforme, sem ombros, “parecia um aspargo” vestindo terno e gravata. Tem um sentimento de profunda insegurança. 

O conto se abre mostrando um almoço dele com um possível comprador da empresa que ele herdou do pai. O comprador havia feito uma proposta inicial modesta, apenas para mostrar que estava interessado e abrir as negociações. Estaria disposto a pagar até três vezes aquele valor. Quando os dois se encontram no restaurante, Mr. Botibol, tímido, nervoso, atrapalhado, abre a conversa dizendo que aceita a proposta. Como ocorre com todo tímido, disputar contra a vontade alheia lhe produz uma sensação de imenso desconforto.

A questão é que o comprador, animado pelo sucesso, abre uma garrafa de vinho e pela primeira vez na vida Mr. Botibol se deixa inebriar pelos vapores de Baco. Volta para casa cambaleante mas eufórico, e, como é um apreciador de música clássica, põe no fonógrafo um disco sinfônico qualquer, para dar vazão àquela sensação inédita de bem estar. 

E logo ele se flagra a si mesmo de pé no meio da sala (ele mora sozinho, com um velho mordomo), regendo a sinfonia, e sente-se transportado, como nunca o sentira, para o mundo glorioso da Arte.

Para encurtar a conversa, Mr. Botibol manda construir em casa um auditório, um palco, uma bancada para maestro e um engenhoso sistema gramofônico onde os discos são substituídos sem que a sinfonia seja interrompida. 

Depois, ele compra um piano de cauda e o instala no palco, tomando o cuidado de fazer com que as teclas sejam emudecidas, para que ele possa fingir que está tocando, sem produzir som algum. 

E daí em diante, Mr. Botibol passa a tomar uma garrafa de vinho no jantar e em seguida subir ao pódio de maestro (sob os aplausos ensurdecedores de um disco de efeitos sonoros) e imaginar que está regendo, toda noite, uma sinfonia diferente. Até o dia em que...

Bom, o final da história é menos importante, aqui, que sua premissa. O que Dahl nos mostra em seu conto é o protótipo de uma multidão gigantesca que há no mundo: os “artisticamente prejudicados”, para imitar o jargão atual. Pessoas que têm sensibilidade para as coisas da arte (no caso, a música clássica) mas a quem falta o estudo e o treino necessários para praticá-la. 

Eu me identifico com Mr. Botibol porque em termos de partitura não distingo um dó de um ré, mas ainda assim sou capaz de escutar música erudita (uma dessas bem melódicas e acessíveis – um Tchaikóvski, um Mozart) e imaginar que a estou regendo ou que a estou tocando. É mais ou menos o que faz os adolescentes de hoje se amarrarem em jogos como Guitar Hero, em que você preme os botões do console e imagina que é Santana, Jimmy Page ou Jimi Hendrix fazendo aquele solo de rachar o céu em duas bandas.






1722) O massacre do apontador de lápis (18.9.2008)



Entre as muitas coisas que coleciono estão as notícias sobre a paranóia anti-terrorista nos EUA. O anti-terrorismo norte-americano trabalha em duas frentes simultâneas. A Frente Externa procura e combate os terroristas de fora, como os islâmicos da Al-Qaeda, responsáveis por atentados como o do World Trade Center. A Frente Interna combate o terrorismo apolítico dos próprios norte-americanos, cuja melhor expressão são os massacres inexplicáveis – um veterano do Vietnam que entra numa lanchonete e fuzila vinte pessoas, ou, mais tipicamente, um estudante que invade um prédio escolar e sai matando quem encontra pela frente. Até hoje não sei qual dos dois é mais absurdo, qual é mais perigoso, qual é mais invencível (pelo menos com as técnicas adotadas até agora).

O mais recente episódio na Frente Interna ocorreu em Hilton Head Island, na Carolina do Sul. Um estudante de dez anos foi visto pela professora segurando uma lâmina de metal. A professora chamou a supervisora. A supervisora chamou a polícia e avisou a mãe do suspeito. Todos se reuniram para investigar o incidente. O suspeito afirmou que, na véspera, a lâmina do seu apontador de lápis tinha quebrado, e ele resolveu trazer o pedaço, com cerca de 2 centímetros, para fazer a ponta do lápis durante a aula. A supervisora admitiu para o policial que o suspeito era um bom aluno e nunca havia se envolvido em qualquer incidente. Revistando a mochila do suspeito, o policial encontrou um pedaço de lápis com aproximadamente 2 centímetros e meio de comprimento, cuja ponta parecia ter sido feita recentemente. O policial registrou em seu relatório que a reação do suspeito (choro) deixava claro que ele compreendia a gravidade de trazer para o ambiente escolar qualquer objeto que pudesse se assemelhar a uma arma.

Pelo relatório do policial (que pode ser lido aqui: http://www.boingboing.net/2008/09/12/fourth-grader-suspen.html) julgo perceber o quanto ele procura levar o caso a sério para tranqüilizar a professora e a supervisora. Quanto a estas duas, espero não ser chamado de machista se achar que são apenas duas mulheres à beira de um ataque de nervos. Não é machismo. O mundo está cheio também de machões à beira de um ataque de nervos, por motivos ainda mais insignificantes do que este. E o mais patético é que nem mesmo esse clima kafkeano criado por pessoas super-zelosas e sem o menor bom-senso consegue evitar massacres como o da Virginia Tech.

É muito mais fácil pegar um inocente inofensivo do que um psicopata mal-intencionado. O excesso de vigilância acaba infernizando e enlouquecendo os 90% de inocentes, pegando em sua malha fina uns 9% de indivíduos problemáticos (e evitando os problemas que causariam) mas raramente consegue captar o 1% de sujeitos que saem de casa armados dos pés a cabeça, executando uma estratégia longamente planejada. Cabe às autoridades e à população decidir se essa relação custo-benefício interessa ou não.

1721) Machado: As Esperanças Decrescentes (17.9.2008)




(Machado, por Novaes)

Cada autor tem suas figuras de linguagem preferidas, às quais recorre, depois de certo tempo, quase inconscientemente. O estilo é um conjunto de cacoetes que criam um perfil reconhecível. 

Machado de Assis injeta nos seus personagens alguns gestos mentais a que eles se entregam como um sujeito que tem um tique nervoso e esquece que o tem.

Nas Memórias Póstumas... (na página intitulada “Ao leitor”), Brás Cubas nos dá a medida da sua oscilação permanente entre um Desejo autocomplacente e uma anêmica Vontade. Diz ele: 

“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.” 

 Assim é Brás Cubas. Tem intenções ousadas, mas, depois de dissipada a adrenalina do arroubo inicial, elas vão se conformando, resignadas, às dimensões que lhes impõe a realidade. 

Brás imagina-se grandioso, arrebatador, mas o fato de imaginar-se, curiosamente, basta-lhe. O grande gesto da intenção vai sendo diluído em miúdos pela vida real, porque o que mais lhe interessa é satisfazer sua fantasia íntima de rapaz mimado.

E há o episódio do almocreve (Cap. XXI). O jumento que ele monta espanta-se, ameaça disparar; Brás despenca da sela com o pé preso ao estribo, e ai dele se não fosse um almocreve que detém e subjuga o animal. 

Recuperado, Brás agradece ao salvador e delibera, intimamente, dar-lhe três das cinco moedas de ouro que trazia consigo. Logo pondera se não bastariam duas. Examina a roupa do benfeitor, constata que é um pobretão, e chega a tirar do bolso uma única moeda. O almocreve está de costas. Depois de uma derradeira hesitação, Brás mete-lhe na mão um cruzado de prata. Torna a agradecer, monta. 

Ao se afastar vê de longe o almocreve que gesticula, fazendo-lhe grandes cortesias, e pensa por fim que o outro foi apenas um instrumento da Providência, que estava lá por acaso, que não lhe coube mérito algum... E: 

“Fiquei desconsolado com esta reflexão, chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas; tive (por que não direi tudo?) tive remorsos”.

Depois do arroubo inicial, tudo decresce, tudo míngua, tudo se conforma à prudente mesquinhez do nosso herói. 

E não há como não ver nisto um eco do “serrote” que protagoniza o conto “O Empréstimo” (Papéis Avulsos, 1882), um tal Custódio, que “nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho”. É um pedidor. Aquele da piada: “É colírio? Pinga aqui...” 

Nas seis páginas perfeitas deste conto, Custódio assedia o tabelião Vaz Nunes por cinco contos de réis, que caem depois para quinhentos mil réis, e para duzentos, para cem, para vinte... No fim do conto, Custódio morde cinco mil réis de Vaz Nunes, e sai de rua afora, “pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio”.






sábado, 27 de fevereiro de 2010

1720) O vício de Daniel Dantas (16.9.2008)



Numa matéria recente, um jornalista comentou que o sofá no apartamento do banqueiro Daniel Dantas está rasgado. Dantas está envolvido no escândalo da Operação Satiagraha da PF, e é considerado um dos maiores manipuladores de fortunas deste país. Não vou questionar a lisura das suas operações financeiras. Isto fica para o Poder Judiciário do país (e os amigos mais cínicos me sussurram: “...que é justamente onde ele já comprou muita gente a peso de ouro”). É no sofá rasgado que quero me deter. O jornalista perguntava com seus botões, ou com suas teclas: “Como é que um sujeito bilionário tem um sofá rasgado e não troca? Por que fica se matando de trabalhar e se metendo em operações escusas, apenas para ganhar mais dinheiro do que poderia gastar?”.

Já li muitos livros sobre viciados em drogas, não porque o vício em si me desperte o interesse, mas porque são numerosos os escritores que usaram a literatura como equilíbrio a um vício que os destruía por dentro. Philip K. Dick e William Burroughs são os mais notórios. Os jovens pensam que eles foram grandes escritores por causa da droga. Na verdade, eles tinham com a droga a mesma relação que um atleta paraolímpico tem com sua deficiência física. Talvez tenha sido a deficiência que os transformou em atletas, e sem ela eles tivessem virado comerciários ou caixas de Banco; mas a atividade atlética é uma forma de provar ao mundo: “Eu sou isto que vocês estão vendo, mas não sou só isto”. A literatura de Dick e Burroughs era o outro prato da balança, que os ajudou a equilibrar o terrível peso da droga.

A droga de Daniel Dantas é o poder, é a vitória, é (perdoem-me a heresia) o pódio olímpico do golpe financeiro. Não é dinheiro que os move. Não é (como na nossa pacata vidinha) a perspectiva de comprar um sofá novo no mês que vem. É um jogo abstrato de números que na sua mente valem como números em si, não como soma monetária, valor de uso, poder aquisitivo. São os meros números: comprei por 5, vendi por 10... Não importa se são bilhões de dólares ou milhões de euros. Sua droga não é a economia, é a aritmética.

A vida de um drogado (dizia Burroughs) só tem dois momentos: a Aplicação e o Intervalo. A Aplicação é quando ele se auto-ministra a droga. O Intervalo é tudo que ocorre entre uma Aplicação e outra, e sua função é providenciar a próxima Aplicação (arranjar dinheiro, procurar um traficante, etc.). Assim deve ser a vida dos grandes banqueiros, dos grandes especuladores como George Soros ou Naji Nahas, dos grandes viciados no xadrez das armações corporativas. Lembram-se do filme Uma Linda Mulher? Eu lembro de algo, além dos lábios e dos olhos de Julia Roberts. Lembro de uma frase do “danieldantas” interpretado por Richard Gere. Quando ela lhe pergunta o que faz na vida, ele diz: “Compro empresas, quebro-as, e vendo os pedaços”. É um vício como qualquer outro: uísque, pedras de crack, seringa de heroína.

1719) Machado: “Mariana” (14.9.2008)



Não há quem não se comova um tanto com “O Caso da Vara”, um dos contos mais conhecidos de Machado de Assis, onde um seminarista sem vocação foge do seminário e se refugia na casa de uma amiga da família. Esta resolve interceder por ele junto ao pai, que é autoritário e quer por fina força um filho padre. Durante a tarde que passa ali, o rapaz simpatiza com uma das escravas da dona da casa, uma pretinha magra, que tosse muito. Ao anoitecer, a senhora vê que a escrava deixou de cumprir uma tarefa que lhe fora ordenada, e resolve castigá-la. Agarra a menina, pede ao seminarista que lhe entregue uma vara que lhe está ao alcance da mão. A menina implora que não o faça. Aturdido, dividido, angustiado, ele prefere ajudar a si mesmo e entrega a vara para o castigo.

Onde quer que haja afeto, numa sociedade escravocrata, entre um senhor e um cativo, no momento em que esse afeto for posto à prova o senhor pensará apenas em si próprio. Alguém argumentará que são numerosos os livros em que um senhor e uma escrava, ou uma senhora e um escravo, mandam às favas as convenções sociais e vivem uma paixão publicamente assumida. Eu direi que sem dúvida tais livros existem, e que é a existência dessas duas classes de livros que determina haverem Realismo e Romantismo. (E haverem, na vida real, pessoas realistas e pessoas românticas, porque, como percebia Oscar Wilde, é mais freqüente que a vida copie a arte do que o contrário).

“Mariana” (“Jornal das Famílias”, 1871) narra o reencontro de quatro amigos. Falam de amores, e um deles, o Coutinho, afirma: “Por nenhuma mulher fui amado jamais como fui por uma cria de casa”. Ele narra que quando era jovem, e estava noivo de uma prima, percebeu a paixão de Mariana por ele. Era escrava, não era livre, mas tinha sido criada como pessoa da família, sabia ler e escrever, estudara francês... Todos na casa gostam dela, e estranham quando ela começa a definhar após o anúncio do noivado. Mariana adoece, foge de casa duas vezes, e cabe ao narrador tentar convencê-la a voltar. Num rasgo de romantismo, Mariana envenena-se. Coutinho conclui:

“Tal foi, meus amigos, este incidente da minha vida. Creio que posso dizer ainda hoje que todas as mulheres de quem tenho sido amado, nenhuma me amou mais do que aquela. Sem alimentar-se de nenhuma esperança, entregou-se alegremente ao fogo do martírio; amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas no fundo, amor imenso e profundo, sincero e inalterável”.

Até parece estarmos em pleno Romantismo francês, em plena literatura-para-moças. Mas aí desce sobre as últimas linhas do conto o noves-fora implacável do mestre do realismo: “Mas daí a pouco saíamos pela Rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinham-nos restituído a mocidade”. Coitada da Mariana.

1718) A beleza do feio (13.9.2008)





(detalhe - O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch)

Uma das questões mais delicadas da Teoria Estética é a aparente contradição entre o ideal de Beleza (que se propala ser o objetivo maior da Arte), e o fato de que admiramos obras que retratam algo repugnante, horrível ou aterrorizador. Quadros como as máscaras e os esqueletos de James Ensor, as bruxas de Goya, os corpos semi-destruídos de Francis Bacon. 

Nem quero chegar perto da arte contemporânea e suas incursões pelas mutilações corporais; basta me deter na boa e velha pintura a óleo, feudo confortável do academicismo, do culto à estética grega e ao equilíbrio romano. Por que motivo aqueles artistas cultivavam o Feio, e, mais ainda, por que ele nos parece Belo?

Dizem os teóricos da Arte que uma das categorias mais extremadas do Belo é o Sublime. “Sublime” é um dos adjetivos mais diluídos e malbaratados da nossa língua. As letras de músicas falam em “teu sorriso sublime”, “o momento sublime em que nos beijamos”, “a beleza sublime de uma criança”, etc. 

Segundo os filósofos, o Sublime não é o Mimoso. Nada tem a ver com essas delicadezas. Ele é vizinho do Medonho, do Grandioso e do Terrível. Schopenhauer criou uma gradação de experiências do Sublime que, nos seus graus mais elevados tem o Sublime propriamente dito, cujo exemplo é a Natureza turbulenta (algo que pode ferir ou destruir o observador, como uma tempestade), o sentimento pleno do Sublime (a contemplação de algo tremendamente destruidor, como a erupção de um vulcão próximo) e a experiência mais completa do Sublime (quando o observador experimenta sua total insignificância e anulação diante da Natureza).

Além disso, engana-se quem pensa que procuramos a Arte apenas para a contemplação estética, a edificação do espírito ou o entretenimento sem compromisso. Procuramos a Arte também, em todas as suas formas, em busca de experiência-limite, em busca do contato com coisas que tememos ou que não conseguimos compreender. 

Existem obras que funcionam porque nos permitem vislumbrar zonas crepusculares do nosso inconsciente, obras que nos provocam medo ou repulsa, mas que nos obrigam a imaginar por quê. Podemos encontrar isso nas formas mais diluídas da arte, como nos filmes de Zé do Caixão ou nos romances de Stephen King; e podemos encontrá-lo nas tragédias de Ésquilo ou de Shakespeare, na pintura de Dali ou de Hieronymus Bosch, no cinema de Buñuel, David Lynch ou Fritz Lang.

A psicanálise chamou a mente humana de “máquina desejante”, um mecanismo impulsionado pelo desejo. A impressão que tenho é que há dois tipos de desejo, o Desejo Positivo e o Desejo Negativo. Ou, se quiserem, a Atração e a Repulsa. Ambos nascem na mesma região íntima, são forças simétricas, mas uma é de atração e a outra de repulsão. Freud falava na energia da vida e da morte, Eros e Tânatos. O lugar de onde emanam é um só, e uma das suas chaves é a arte, capaz de despertar em nós não apenas a sensação do Belo, mas a sensação do Terrível.





1717) Desenrola, Dunga (12.9.2008)



É a velha história: a gente não pode elogiar. Dá um azar danado. O elogiado se acomoda, pensa que não precisa fazer mais nada, e dá no que deu. Domingo passado, coberta de críticas, jogando contra o Chile no alarido de Santiago, o Brasil soube construir um placar vitorioso e, com um jogador a menos, mantê-lo. Quarta-feira, a Seleção, coberta de elogios, enfrentou no Rio de Janeiro a Bolívia (que ocupa a lanterna das Eliminatórias) e, com um jogador a mais, não conseguiu fazer um mísero golzinho. Pior: não conseguiu sequer tentar. Nunca a Seleção foi tão Dunga. Eu devia ter lembrado daquela velha máxima futebolística: zebra que se preza não ganha dois seguidos.

A explicação mais óbvia é que o Chile, jogando em casa, incentivado por uma imprensa ufanista e por uma torcida igual a qualquer outra, partiu para cima do Brasil, tentando a vitória, e levou três gols. Já a Bolívia, escaldada por um século de goleadas, veio jogar com uma retranca digna do treinador brasileiro, e não deu espaço, não deu sossego, não deu chances. E o Brasil – este Brasil, pelo menos – depende muito das chances que os adversários lhe dão, porque criá-las, meu amigo, é um problema.

Faltou vontade? Não, não faltou. Os jogadores se esforçam, batalham, fazem um sacrifício danado. Mas é um sacrifício vão, porque é feito às cegas. Me lembra aquela sextilha clássica de Manuel Xudu: “Gosto de ver cem formigas / uma folha carregando. / Quarenta correndo em cima / sessenta em baixo puxando / e as quarenta ainda pensam / que também ‘tão ajudando”. Os jogadores brasileiros são um pouco como as quarenta formigas em cima da folha. Agitam-se incessantemente, e não sabem explicar o zero no resultado.

O Brasil só ameaçou quando, por volta dos 21 minutos do segundo tempo, deu duas estocadas rápidas, sucessivas, tocando a bola de primeira antes que os marcadores bolivianos fechassem em cima. No resto do jogo, o time ficou rodando e a Bolívia cercando. Vemos jogadores hábeis como Robinho, Ronaldinho Gaúcho, Juan, Luís Fabiano, Diego, esbarrando uns nos outros e nos adversários, num jogo reduzido às dimensões de uma pelada no Aterro do Flamengo.

Não temam, amigos. Em hipótese alguma o Brasil deixará de se classificar para a Copa. São quatro vagas, e o quinto colocado ainda disputa uma repescagem. Chegaremos lá, mesmo assim, aos tropeções, aos pontapés, aos empates. Chegaremos porque há muitos interesses políticos, econômicos e publicitários envolvidos. Ninguém é doido de fazer uma festa e deixar de fora a estrela principal. Mas a Seleção ainda vai pagar muitos micos como o de quarta-feira passada, porque o propalado “futebol espetáculo” do Brasil, que tanto agrada a Galvão Bueno e aos contadores-de-vantagem, só acontece quando o adversário deixa. O técnico é limitado, a safra de jogadores é medíocre, a Seleção é fraca. E aqui pra nós, esse negócio de jogar no estádio do Botafogo não pode dar sorte a nenhum time que se preze.

1716) O último rei da Esbórnia (11.9.2008)



(Mswati III)

A festa, dias atrás, era oficialmente para comemorar os 40 anos de independência da Suazilândia, mas como a data coincidia com o aniversário de 40 anos do rei nenhum súdito se enganava quanto ao verdadeiro motivo. Todos agitavam bandeirolas ao monarca enquanto ele, vestindo pele de leopardo, desfilava numa BMW sem capota pelas ruas da esfarrapada capital do país. O rei Mswati III é mais um potentado exótico da África. Não faz muita diferença que sejam reis, presidentes eleitos, ditadores que tomaram o poder pelas armas. Todos fazem o mesmo: auto-glorificação constante, apelo exacerbado às tradições étnicas, derrame de dinheiro em festas ou obras faraônicas, perseguição sangrenta a adversários ou dissidentes. O que ocorre nessas nações africanas (não em todas, é claro) nada mais é do que o tribalismo selvagem com injeção brutal de capital cosmopolita e acesso da elite ao consumo “de Primeiro Mundo”.

O rei alega ter gasto apenas 2 milhões e meio de dólares com a festa, a imprensa fala numa despesa cinco vezes maior. Os opositores queixam-se, timidamente, de que oito da 13 esposas do rei pegaram o avião para Dubai, invadiram os shopping-centers, puxaram os cartões corporativos (ou o seu equivalente na Suazilândia) e deram uma baixa no estoque, adquirindo presentes de nível monárquico, adereços para a festa, etc. Frotas de carros de luxo desfilaram pelas ruas com os convidados vip, entre eles o presidente Mugabe, do Zimbábue, que recentemente escandalizou o mundo com as eleições que montou para se eleger para mais um mandato, aos 84 anos de idade e 21 de poder.

Será um exagero, um regabofe deste tamanho para comemorar o aniversário do rei? De certo modo, há o que comemorar, sim. Apenas um em quatro suazilandeses chega aos 40 anos, de modo que os chegantes têm mais é que soltar fogos. A expectativa de vida no país é de pouco mais de trinta anos, e está gravemente comprometida pelo fato de que o país tem o maior índice de incidência de Aids no mundo: 38,8%. Só para comparar, o índice da África sub-saariana é de 7,5%, e o índice mundial é 1%.

Por que motivos os reis de uma nação tão pobre gastam de maneira tão perdulária? Porque são pretos? Porque são burros? Porque são pobres? Porque são maus? Não acho que seja bem isso; em grande parte é porque foram colonizados pelos europeus, aprenderam suas línguas, estudaram sua história. Modelam seus reis em seus próprios líderes tribais e em monarcas como por exemplo Luís XIV, que também fez guerras inúteis, perseguiu os inimigos, deu festas de arromba o tempo inteiro, construiu palácios e mais palácios. Hoje admiramos os tesouros arquitetônicos que deixou, e nos divertimos com os cerimoniais rococós das etiquetas de sua corte. Os soberanos portugueses de seu tempo não lhe ficavam muito atrás. Luís XIV ficou no trono 72 anos (1643 a 1715). O rei Sobhuza, da Suazilândia, ficou 82 (de 1899 a 1982). O espírito é o mesmo, e não tem raça nem cor.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

1715) Machado: “O Espelho” (10.9.2008)



(Machado, por Batistão)

É um dos contos de Machado de Assis mais elogiados pelos críticos. Vou abordá-lo aqui de um ângulo que talvez seja novo para os leitores, o da psicologia existencialista do crime, desenvolvida por Colin Wilson. O enredo do conto é simples. Num Polígono Boêmio de indivíduos de meia idade, um tal de Jacobina refere um episódio de sua juventude. Ele tinha acabado de ser promovido a alferes da Guarda Nacional, e foi passar uns tempos na fazenda de uma tia. Lá, todos estavam orgulhosíssimos de sua patente, que em termos de “status” social da época era algo como trazer uma medalha de ouro dos Jogos Olímpicos. Os parentes, os escravos, todos o tratavam por “senhor alferes”.

Um belo dia, a tia tem que viajar, e o deixa só na fazenda. Sem a patroa por perto, os escravos debandam. De repente, o rapaz vê-se sozinho. E um fenômeno curioso sucede: ele não consegue se enxergar no espelho. Vê a própria imagem “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Ele percebe que o espelho o reflete de acordo com as leis físicas, mas é ele próprio que não se enxerga: move o braço, e “o gesto lá estava, mas disperso, esgarçado, mutilado...” É tomado pelo medo, mas ocorre-lhe uma solução, e veste a farda de alferes. Vai ao espelho, e bingo! Agora sim, consegue ver-se nítido, integral. Nasce daí a teoria do Jacobina, de que as pessoas têm duas almas, sendo que uma lhes é externa – a dele era a farda e a condição de alferes. Sem elas, não era ninguém.

Colin Wilson, em Order of Assassins: The Psychology of Murder (1972) cita o conto de Machado para avalizar sua própria teoria da auto-imagem. Para Wilson, nosso erro fundamental a respeito da consciência é considerar que ela é um processo automático, como a respiração. Não é. Ela depende de um esforço permanente, como a natação; quando a gente pára, afunda. O conto de Machado revela que “o mundo ao nosso redor é um espelho que nos reflete. Quando a nossa vitalidade está elevada, ele nos reflete de maneira nítida e clara; mas às vezes estamos tão difusos que mal conseguimos nos enxergar”.

Precisamos do aval e do reconhecimento do mundo à nossa volta. Sem isto, corremos o risco de ser (diz Wilson) como o padrasto de Jean-Paul Sartre, descrito pelo próprio: “Nos domingos, ele se recolhia dentro de si mesmo, encontrava ali um deserto, e se perdia”. Em muitos criminosos conjugam-se a agressividade, a baixa auto-estima, e a necessidade de afirmação. O crime, diz ele, é um instante em que um indivíduo passivo, abatido, humilhado, pratica um ato de intensidade arrebatadora e consegue enxergar de novo a própria imagem. É o mendigo que estupra e mata uma moça à beira da estrada, o assaltante que invade uma casa e chacina uns desconhecidos. É também, no caso dos serial killers, o momento em que um sujeito medíocre mata alguém, e vê toda a imprensa do país pensando nele, falando nele, doida para saber quem é ele. E a imagem no espelho do quarto fica nítida de novo.

1714) Desencanta, Dunga (9.9.2008)



O Brasil jogou na noite do domingo sua melhor partida nestas Eliminatórias. Sei que para muitos a melhor partida foi aquela de 5x0 no Equador, no Maracanã, mas aquilo ali era um mamão-com-açúcar. Difícil, amigos, é ganhar do Chile em Santiago, quando a equipe está com o moral baixo e o treinador com a corda no pescoço. O time de Dunga suportou a pressão inicial da atabalhoada seleção chilena, e fez os gols nos momentos certos. O primeiro na metade do primeiro tempo, quando o Chile já tinha ido com perigo duas vezes (numa delas, o chileno estava dentro da pequena área e mandou a bola para os Andes). Com 1x0 contra, o Chile avançou (e se atabalhoou) ainda mais, e poderíamos ter ampliado quando o zagueiro fez uma falta brutal em Diego. Ronaldinho Gaúcho não bateu mal o pênalte: chutou forte, do lado, mas o goleiro escolheu o canto certo e conseguiu desviar. E Robinho marcou no último minuto do primeiro tempo, que é um momento ótimo para se fazer um gol.

O segundo tempo foi menos técnico e mais ríspido do que o primeiro. O Brasil se segurou, ainda mais depois que Kléber recebeu um injusto segundo cartão amarelo (o primeiro foi merecido) e foi expulso. Temi que Dunga visse nisto um pretexto para substituir os atacantes por mais dois volantes, mas o bom senso prevaleceu. Ele colocou Juan (ótimo armador de jogo) no lugar de Ronaldinho Gaúcho, que se limitava a trocar passes longe da área. Foi uma medida ousada, mas o Gaúcho não está mesmo numa boa fase. O Brasil se segurou, perdeu algumas chances, e fez o 3º gol num momento crucial, porque àquela altura se o Chile fizesse 2x1 os dez minutos finais seriam um pesadelo.

O Brasil jogou muito bem, mesmo sem dar o tal do espetáculo. Os milhões de galvões-buenos querem sempre espetáculo, querem goleada, querem humilhar o adversário, querem ver bola entre as pernas, lençol, olé, como fizemos com o indefeso Equador no Maracanã. Quando isso ocorre eu também me divirto, mas prefiro uma vitória como esta, em que o time entra desacreditado num território inimigo, sofre pressão, se segura, marca gols com talento e firmeza, defende-se com seriedade e sempre que recupera a bola parte com decisão para o ataque, em vez de ficar trocando passezinhos no círculo central – que é a característica da Seleção sob o comando de Dunga.

Vivo falando mal do treinador, chegou o momento de falar bem. Faço votos de que, quando ele vem com aquele papo imutável de “determinação, busca do objetivo” e blá-blá-blá, esteja se referindo ao que a Seleção fez no Chile, e não ao que vinha fazendo ultimamente. Tomara que ganhe bem da Bolívia, desencante, acerte o passo. O time todo jogou bem; destaco Julio César pela segurança, Robinho (se bem que só chute cafôfa), Josué (pelos desarmes limpos e precisos), Diego (pelo esforço). O nome da partida foi Luís Fabiano, que em dois jogos das Eliminatórias fez quatro gols, e acho que agora nem Dunga tem moral pra tirar o homem do time.

1713) Machado: contos de boemia (7.9.2008)



(Machado, por Cássio Loredano)

Alguns amigos me criticam por minimizar o talento de Machado de Assis, mas creio que laboram em erro. Considero Machado o maior escritor brasileiro. (“O maior” não existe, mas ele pertence a uma meia dúzia em quem essa carapuça caberia sem cobrir-lhe os olhos). O que há é que neste ano do centenário da sua morte as louvações banais são tantas que acaba baixando em mim um espírito machadiano, frio, analítico, britânico, irreverente... Dá vontade de fazer com os contos dele o que Fortunato fazia com o rato.

Falei aqui sobre o Polígono Boêmio, um dos artifícios narrativos mais comuns em Machado, e que em muitos casos lhe serve como pretexto para fazer um personagem contar uma história aos demais. Essa situação também lhe serve, em outras histórias, para narrar o cotidiano desses grupos. Nestes casos, Machado fica lado a lado com aqueles escritores que contam o Brasil dos jovens intelectuais, que discutem livros, poemas, política, mulheres e amores.

São contos típicos de juventude, e ali se enquadram textos como “Vinte anos! Vinte anos!”, “Uma por outra”, “Um erradio”, etc.. São histórias de juventude boêmia carioca, dos cafés, dos restaurantes, dos teatros. Rapazes intelectuais, com moedas contadas no bolso, filando cigarros uns dos outros, ocasionalmente tendo dinheiro bastante para ir à ópera e depois a um restaurante chique. Flertando com moças da sociedade, filhas de fidalgos da corte, e passando as madrugadas nos cafés, em companhia de cocotes francesas. Recitando sonetos, escrevendo versos de propaganda para casas comerciais em troca de alguns mil-réis, declamando em francês e em latim, envolvendo-se em querelas políticas do Império. Desfechando trocadilhos mordazes e epigramas satíricos contra os adversários de ocasião.

O romance que para mim é o melhor retrato dessa época e desse meio intelectual é o magistral A Conquista, de Coelho Neto. Um pouco dessa “festa móvel” transbordou para livros de memorialismo e de biografia, como No tempo de Paula Nei de Ciro Vieira da Cunha, A vida exuberante de Olavo Bilac de Eloy Pontes, Emílio de Menezes, o último boêmio de Raimundo de Menezes, A vida literária do Brasil – 1900 de Brito Broca. Na segunda metade do século, essa literatura ressurgiu em obras como O Encontro Marcado de Fernando Sabino, Os Novos de Luiz Vilela, A morte de D. J. em Paris de Roberto Drummond.

No que tem de melhor, esses romances e contos nos trazem o espírito de juventude irreprimível que todos nós sentimos em certas fases da vida, que aliás não dependem da idade cronológica. São momentos em que nos sentimos perpassados por um entusiasmo de viver, de experimentar coisas, de criar, de desafiar os clássicos da arte e do pensamento. Momentos assim muitas vezes resultam em grande literatura, quando há grandes escritores envolvidos. Quando não há... resultam na felicidade modesta dos invisíveis, que não é menos felicidade por não resultar em livro.

1712) O vacilo (6.9.2008)



Certas histórias dão o que pensar, como a que aconteceu com esse rapaz; chamemo-lo Valdir. Conheci-o logo quando cheguei no Rio, porque freqüentava o Barbas, em Botafogo, um bar com shows ao vivo onde cantei algumas vezes. Valdir tinha vinte e poucos anos, era um cara sempre alegre, boa-praça, topava tudo. Se o bar fechava às três da manhã e alguém sugeria ir tomar a saideira em Vila Isabel, ele dizia no ato: “Cabe três no meu carro”.

A tragédia não foi em Vila Isabel nem em Botafogo, mas pros lados da Tijuca, a certa altura da Haddock Lobo. Eram meras onze horas da noite, mas Valdir estava no bar desde o fim da tarde, num daqueles almoços que começam quase na hora do jantar e terminam quase na hora do café da manhã. Ele me confessou depois: “O engraçado é que eu só saí porque achei que estava muito bêbado. Fiquei com medo de beber mais e fazer uma besteira. Aí, na primeira esquina...”

Ao que parece o carro fez uma curva, houve uma turbulência no asfalto e “faltou chão”, como ele descreveu depois. Espatifou-se num ponto de ônibus; se houvesse alguém no banco do carona não teria escapado. Valdir teve uma pancada forte que lhe abriu a testa, e conseguiu sair do carro, no meio da gritaria geral, tonto pela pancada, e com os olhos cheios de sangue. Alguém o levou para a calçada, policiais o cercaram, o que ajudou a evitar um linchamento. Porque embaixo do carro, já mortos, estavam um garçom que tinha acabado de largar o trabalho, e uma mãe com a filha adolescente.

No dia seguinte o pai de Valdir e os advogados o tiraram da delegacia onde dormiu; com a cabeça envolta em bandagens ele foi para casa e aí começou a via-crucis jurídica. Inquérito, julgamento, condenação, réu primário, recurso, espera, novo julgamento, nova condenação, novo recurso... Não sei a história completa, porque isso começou a acontecer em 1988, e eu passo às vezes quatro ou cinco anos sem encontrar Valdir.

Ele amadureceu. Casou, teve três filhas. Tem um cargo na empresa do pai, que trabalha com exportações. Certa vez que jantamos juntos ele me contou que um dia cruzou no Forum com o filho e irmão das vítimas, e este cuspiu na sua cara. Perguntei o que fizera, e ele respondeu: “Limpei o cuspe na manga e dei razão a ele”. Mais do que as condenações jurídicas, contra as quais sempre se pode interpor um habeas-corpus, o que acabou com Valdir foi a condenação da imprensa, das famílias das vítimas, e de sua própria família, ou seja, os pais e os irmãos. A família é honesta, trabalhadora, e este episódio é “a única mancha”, segundo ele.

A mulher e as filhas são loucas por ele e conseguem desculpá-lo. Valdir nunca mais bebeu depois daquilo. Semana passada, vi no jornal que saiu sua condenação final, agora sem apelo. Valdir vai cumprir agora, com mais de quarenta anos, oito anos de cadeia; como não tem curso universitário, vai para o porão comum. E eu lembrei aquele velho mote das cantorias – “os pecados de domingo / quem paga é segunda-feira”.

1711) Resnais: “A Guerra Acabou” (5.9.2008)



Num festival dedicado a Alain Resnais no CCBB do Rio, revi este filme discreto e magnífico de 1966. É a história do cansaço e do princípio de desilusão de um revolucionário de meia-idade. Diego (Yves Montand) é um comunista espanhol que trabalha na clandestinidade contra a ditadura do General Franco, indo e voltando entre Madri, onde atua, e Paris, onde tem uma namorada (a bergmaniana Ingrid Thulin), e onde fica sediado o grupo subversivo a que pertence. Vindo depois de Hiroshima, meu amor e de O ano passado em Marienbad, que fizeram a fama de Resnais, é um filme surpreendentemente linear e narrativo, chegando em vários momentos a ser um thriller de suspense, pois acompanhamos um indivíduo que vive no fio da navalha, prestes a ser desmascarado e preso pelas autoridades.

O roteiro é do espanhol Jorge Semprun, o mesmo que escreveu Z de Costa-Gavras e vários outros filmes políticos. Acompanhamos as viagens com passaporte falso, os encontros clandestinos, as senhas e mensagens em código, toda a encenação permanente em que vivem os membros do “underground” político que Semprun conhece tão bem. Vemos o cansaço de Diego, um homem movido mais pelo hábito, pela falta de alternativas e pelo dever ético do que pela paixão revolucionária; e podemos contrastar seu comportamento com o dos jovens esquerdistas parisienses que contrabandeiam explosivos para um atentado, dispostos a sabotar o turismo que sustenta o governo de Franco. Nesses jovens enraivecidos, vociferantes, cheios-de-razão, citando Lênin a propósito de tudo, vemos os irmãos espirituais dos jovens maoístas que Godard no ano seguinte imortalizaria em A Chinesa.

Em sua ausência de retórica esquerdista, contudo, esse filme se aparenta muito mais a O pequeno soldado de Godard. Resnais se dedica a construir uma narrativa meticulosa, às vezes inesperada. Neste filme ele aperfeiçoou o uso do “flash-forward” os vislumbres de imaginação do personagem, que, como num romance de Robbe-Grillet, imagina (e projeta na tela) diferentes desfechos de algo programado para acontecer horas depois: chegará na hora, chegará atrasado, encontrará Fulano na estação, encontrará no trem, não o encontrará... Tudo isso se sucede rapidamente na tela, fazendo-nos compartilhar das indecisões e incertezas do personagem. Quando ele imagina como será Nadine, a moça a quem deve devolver o passaporte falso, vemos várias moças caminhando, todas de costas, sem mostrar o rosto: loura, morena, cabelo longo, cabelo curto, cabelo preso... É um processo mental por que todos nós passamos (fantasiar previamente como será alguém que estamos prestes a conhecer), mas que o cinema raramente mostrou, e jamais mostrou com tanta simplicidade. As duas cenas de cama (Montand com Geneviève Bujold, depois com Thulin) são também uma prova da maestria de Resnais para filmar olhos, cabelos, mãos, peles, rostos, e nos transmitir a sensação de plenitude e paz produzida pelo amor físico.

1710) Artista não pode errar (4.9.2008)



(Diego Hipólito)

Certas formas de arte buscam a perfeição. Ao ver certas esculturas gregas ou ler certos contos de Maupassant a gente vê ali um cristal, uma forma definitiva e irretocável. A palavra “perfeição” é questionável do ponto de vista filosófico, mas pode ser aceita para situar nossa reação emocional diante de coisas assim. Elas não podem ser perfeitas, por definição. Mas bem que parecem.

Mais difícil é você alcançar a perfeição em algo móvel, algo fluido, algo que precisa ser recriado a cada vez que acontece: um pianista tocando Chopin, uma bailarina executando uma coreografia, um ator fazendo ao vivo o monólogo de Hamlet ou (mais difícil ainda) o monólogo de Lucky em Esperando Godot. Não importa quantas vezes o artista já tenha feito aquilo certo. Quando começa a fazer de novo, ele está em pleno mergulho no Aqui-e-Agora, não pode errar, e o fato de ter feito certo antes não é nenhuma garantia de que vai acertar agora (a não ser a convicção de que “posso acertar, sim, já acertei”). Como dizia o poeta Gil, “tudo agora mesmo pode estar por um segundo”.

Lembram-se de Diego Hypólito nas Olimpíadas? Pois é, o fato de você ter atingido a perfeição mil vezes nos treinos não é garantia suficiente (está provado) de que vai atingi-la de novo na hora do vamos-ver. Quem esculpe a Vênus de Milo uma vez, quem escreve “Ouvir estrelas” ou “A máquina do mundo” uma vez, não precisa fazer isso de novo no mês que vem. A perfeição do gesto resultou na perfeição do objeto, e este não pode ser cancelado por qualquer erro futuro. No caso das artes da performance (e aqui, curiosamente, o esporte e a arte se fundem numa coisa só), é preciso, sim, ser perfeito de novo, e de novo, e de novo...

Um repentista estava numa cantoria de pé-de-parede (Ivanildo Vila Nova me contou esta) e o colega lhe fez uma crítica. Ele respondeu com esta sextilha antológica: “Meu amigo e camarada / não faça isto com mim... / Colega de profissão / com outro não faz assim! / Pelo cálice de amargura / que Jesus Cristo bimbim!” Parou de rir, amigo? Vou explicar. Ele planejou mentalmente a sextilha para terminar dizendo: “... que Jesus Cristo bebeu”. Quando começou a cantá-la, viu que não podia dizer: “... não faça isto com eu...”, talvez tenha até pensado em dizer “...comigo...”, mas viu que também não dava, e a boca resolveu a hesitação dizendo “com mim”. Tudo isso, colegas, se decide na fração de segundo em que a boca escolhe a palavra a dizer. Depois de ter dito este fatídico “mim”, ele fez dois versos intermediários em que conseguiu encaixar uma rima correta (“assim”), mas aí, quando chegou no verso pronto para o final... não encaixou. Deu-se a catástrofe.

Foi assim com Diego Hypólito. Fez tudo certo, a corrida, a cambalhota, a rolada no chão, o duplo-mortal-carpado... Mas no meio do processo houve algum vacilo, hesitação, esquecimento. Em vez de finalizar o verso com os dois pés no tablado e os dois braços erguidos... Bimbim.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

1709) Machado: “A Segunda Vida” (3.9.2008)



O leitor deve conhecer o poema intitulado “Instantes”, que circula na Internet atribuído ao indefeso Jorge Luís Borges, e que os Titãs acabaram glosando numa canção de sucesso (“Epitáfio”, de Sérgio Brito). O poema diz coisas tipo “ah, se eu nascesse de novo aproveitaria melhor a vida, contemplaria mais crepúsculos, andaria descalço na grama, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários...” O tema é interessante, as idéias são louváveis, mas literariamente o poema é só glicose e violinos.

Disse que o tema é interessante, e reitero. Penso no filme Feitiço do Tempo (“Groundhog Day”), de Harold Ramis, em que um apresentador de TV vivido por Bill Murray tem a chance de repetir indefinidamente um único dia de sua vida, até aprender a deixar de ser um mau caráter, e ganhar como prêmio os olhos, lábios e cabelos de Andie MacDowell. Penso no livro Replay de Ken Grimwood (1987), onde o protagonista, ao morrer, vê-se catapultado de volta aos seus 18 anos e percebe que irá reviver toda sua vida dali em diante, só que lembrando-se de tudo que lhe sucedeu, e podendo (ou não) valer-se dessas memórias para viver de maneira melhor a própria vida.

Munido dessas informações, minha reação seria diferente da reação do Monsenhor Caldas, no conto “A Segunda Vida” (Histórias sem Data, 1884), que, ao ver seu visitante dizer-lhe que morreu e está vivendo de novo a própria vida, chama de lado o escravo e pede-lhe à socapa que traga a polícia, pois está com um doido em casa. O doido, se de fato o for, é José Maria. Explica ao clérigo que cada milésima alma que chega ao céu ganha como prêmio a reencarnação, no papel que escolher. Ele pediu apenas que lhe fosse dado manter a memória e a experiência.

José Maria renasce e tem uma infância medrosa, sem quedas, sem doenças, sem cabeças quebradas, sem brigas e sem graça. Adulto, não namora porque tem medo de ser traído; casado, não tem filhos por temer que adoeçam e morram. E por aí vai. O conto se encerra da mesma maneira brusca como começou. Exaltado, ele investe contra o monsenhor, no mesmo instante em que “pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés”.

Como em praticamente todas as narrativas fantásticas de Machado, o fantástico é emoldurado pela mente de um personagem: ora é um narrador que adormece e sonha, ora é um doido que se ergue e fala. José Maria parece doido, e sua doidice, como diria Chesterton, era a do excesso de razão: “a experiência dera-lhe o terror de ser empulhado”. A segunda vida sai-lhe necessariamente mais pobre do que a primeira, porque ele tem como regra maior não correr riscos. Dada a atual popularidade do poema “de Borges” e do “Epitáfio” dos Titãs, o conto de Machado é de uma ironia devastadora. É a história do cara que tem justamente a vida boa, cheia de riscos e de aventuras, mas, ao ser-lhe dada a chance de viver tudo de novo, opta pela vida medrosa, contida, “cautelosa pouco a pouco”. Matéria a meditar.

1708) Alphonsus de Guimaraens Filho (2.9.2008)



A notícia da morte do poeta me chegou em emails sucessivos de Alexei Bueno, Glauco Mattoso e Dinah Guimaraens. Durante os anos da juventude, tive dificuldade em distinguir os poemas do Alphonsus pai daqueles do Alphonsus filho, até porque era o inusitado do nome que primeiro me atraía o olhar e a curiosidade. Deixo para os críticos de verdade a classificação sistemática dos poetas e dos poemas entre os rótulos de Simbolismo, Romantismo, Modernismo... No Alphonsus Filho o que mais marcava o ouvido era a perfeição métrica e musical dos sonetos, sempre fluidos, irretocáveis; e o insistente poder de evocação visual, numa poesia fortemente imagética, que falava tanto ao tímpano quanto à retina.

Poesia que está reunida em Só a noite é que amanhece (Record, 2003). Como no soneto em que, por sob um verniz romântico ou simbolista, não importa, e numa linguagem austera e límpida, encontramos o tema moderno da vida “on the road”: “Cidades vi que agora me aparecem / como nunca jamais nem terão sido. / E as grandes vozes que conturbam, crescem / mas de tão longe que eu direi somente / que não me fui, que, se eu tivesse ido, / não estaria chegando eternamente”. É Jack Kerouac sem o que há de datado, localizado e circunstancial em Kerouac. É simplesmente o mesmo espírito: o da viagem mais da alma do que das pernas, e que não tem lugar nem tempo.

Outro tema é o passar irrevocável do tempo, e talvez nem chegue a ser outro tema, mas sejam os dois, a viagem e o passar da vida, visualizações de um só sentimento. Como ele diz, em “Seqüência”: “As traças devoram a vida, / papirófagos sem pressa. / (os homens se dão aos livros / e a vida, como lhes pesa!) / Os ratos pelos armários / deixam apenas fragmentos. / (Os homens se dilaceram, / as próprias cinzas temendo.) / E a vida só se asserena, / se atenua, se aquieta, / quando num rosto cansado / sombra, apenas, se dispersa.”

A intensidade de sua evocação visual, sensorial, marca sonetos como “Deitas teu corpo em flor”, espécie de retrato a óleo de uma mulher deitada na relva, onde ele diz: “...instante de fantástica beleza / e de beijo e de afago e de um supremo / arfar de chama em límpida penugem. / Deitas teu corpo em flor, e a natureza / funde-se em ti no alto silêncio extremo / de volúpia desfeita em brisa e nuvem”. Um entrelaçar de imagens e de sensações que reúnem um máximo de sensualidade corporal e de êxtase do espírito.

E o “Soneto da Morte” (que eu não conhecia, e que me foi enviado por Glauco), cujas imagens soturnas e impessoais sugerem um curta-metragem de Antonioni ou Resnais: “Entre pilares podres e pilastras / fendidas, te revi subitamente; / eras a mesma sombra em que te alastras, / feita carícias de uma face ausente. (...) vi-te a sofrer no fundo da cidade / como um grande soluço percutindo / sobre os olhos, as mãos e a boca fria. / E de repente um grito de saudade. / Depois a chuva, sem cessar, caindo.” Como na vida real.

1707) Machado e o Polígono Boêmio (31.8.2008)



(Machado, por Nássara)

Já afirmei alhures que o tema principal de Machado de Assis é o Triângulo Amoroso. Amplio agora esta definição para dizer: seu segundo tema é o Polígono Boêmio. Por Polígono Boêmio entendam-se todos aqueles contos em que um grupo de homens estão reunidos, e dessa reunião brotam eventos como passeios, farras, etc. ou brotam histórias.

Neste segundo caso, o Polígono Boêmio tem um centro: é um personagem que narra uma história enquanto os outros o escutam, interferindo de vez em quando com perguntas e comentários. E aqui vemos mais uma das tão propaladas influências inglesas na obra de Machado (numa época em que a influência unânime em nossa literatura vinha de Paris). O esquema usado por Machado é uma recriação brasileira do gênero chamado de “Club Stories”, ou histórias de clubes. John Clute, na Encyclopedia of Science Fiction, define o gênero como “uma história contada por um homem a outros homens num recinto privado, freqüentado apenas por pessoas do mesmo estrato social, as quais concordam em acreditar na história para seu mútuo bem-estar”.

O clube inglês é uma instituição que não existe, ao que eu saiba, em nenhuma outra parte do mundo. É uma espécie de café com biblioteca, reservado apenas aos sócios. Ali eles se reúnem, fumando charutos, jogando bilhar ou cartas, tomando uísque ou café, lendo jornais, conversando diante da lareira. E é nessa milenar roda de ouvintes em volta à fogueira que acontecem as histórias. Muitas dessas narrativas são também o que em inglês se chama de “tall tales”, histórias inverossímeis ou improváveis, quando não escancaradamente mentirosas. John Clute sugere que as primeiras formas maduras do gênero surgem com Robert Louis Stevenson (New Arabian Nights, 1882), o que faz de Machado, mais que um mero seguidor, um praticante contemporâneo. Outros nomes ilustres nessa linha são Jerome K. Jerome, G. K. Chesterton, P. G. Wodehouse, H. G. Wells, H. H. Munro (“Saki”) e Lord Dunsany. A estes, eu acrescentaria Conan Doyle.

A “club story” pressupõe uma atmosfera confortável para escutar uma história inverossímil. Não precisa ser um clube; basta ser uma casa onde se reúnem, como em “Um Esqueleto”, dez ou doze rapazes que falam de artes, letras e política: “Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann. Alberto começou a narração”. Em “O Imortal”, estamos na varanda da casa do Dr. Leão, com a presença de um coronel e um tabelião: “Um lampião de luz frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa”.

Variantes deste formato aparecem em “Adão e Eva”, “Um Incêndio”, “Cantiga Velha”, “Mariana”, “Uma Noite”... Histórias que vemos contadas, não vemos acontecidas.

1706) A descarga do humor (30.8.2008)




Numa entrevista à revista Wired de julho, o escritor Jim Holt discute as teorias sobre a origem do humor, em função do seu recente livro Stop me if you’ve heard this: a history and philosophy of jokes. Não vi o livro, mas duas ou três coisas colocadas na entrevista me chamaram a atenção. Primeiro, o título do livro, que seria algo como “Me avise se já lhe contaram esta”. É uma advertência muito comum em sessões de piadas, e ela envolve dois aspectos contraditórios do humor-de-anedota. Em primeiro lugar, o humor é baseado numa surpresa, que é proporcionado pelo desfecho da piada. Se o sujeito já sabe o final, a piada perde a graça. Jim Holt define esse aspecto de maneira sintética: a anedota consiste em uma preparação, ou “set up” (narrativa incongruente) e desfecho, ou “punch line” (frase final que resolve a incongruência).

Mas todos nós já tivemos a experiência de ouvir uma piada várias vezes e só achá-la engraçada quando alguém a conta de um jeito especial. Performance também influi. Não porque o contador faz trejeitos, ou tem a voz engraçada. Mas porque piada é basicamente uma narrativa comprimida ao máximo (como os comerciais de 30 segundos na TV), e o menor deslize na hora de contá-la pode comprometer o resultado. Já me ocorreu inúmeras vezes ver uma piada sendo mal contada, “entender” qual é a graça, mas só rir de verdade quando um dia alguém a conta bem, com a ênfase nos detalhes corretos, as elipses bem feitas, o “timing” adequado, as escolhas verbais precisas.



Ziraldo organizou para a Editora Codecri uma série de antologias de anedotas sob o título Tem aquela do.... É outro intróito tradicional nas sessões de piadas. Por que? Porque o ritual de contar piadas se desenrola através de associações de idéias, e, mal o amigo à nossa esquerda termina de contar uma, a gente já lembrou de outra parecida, pelo tema, pelos personagens, pelo desfecho, seja lá por que for. Cada piada abre um leque de conexões para ser seguida por outra que lhe é muito próxima mas que por sua vez vai abrir um leque também amplo, em outras direções. Encaixam-se como peças de dominó.


Contar anedotas é uma atividade essencialmente intelectual: destina-se ao intelecto, à nossa capacidade de analisar situações incongruentes e de apreciar um desfecho engenhoso. Sobre a origem do riso, Holt traz essa teoria, baseada no comportamento dos primatas, que é nova para mim: “V. S. Ramachandran tem uma teoria sobre a origem do riso. Quando há um grupo na selva e ocorre uma ameaça aparente, o primeiro membro do grupo a perceber que não é uma ameaça real emite uma vocalização estereotipada. E ela é contagiosa, todos a repetem. Isto está na base da teoria do humor como alívio de tensão. É a descarga de uma tensão mental que você produziu em si mesmo para tentar entender uma situação incongruente. Kant dizia que a essência do humor é uma expectativa tensa que se dissolve em nada”.








1705) Isak Dinesen (29.8.2008)




A baronesa Karen Blixen era uma nobre dinamarquesa que escrevia em inglês e publicava na Inglaterra sob o pseudônimo de “Isak Dinesen”. 

Hoje ela é conhecida por causa de dois filmes baseados em histórias suas: A Festa de Babette, história de uma ex-cozinheira francesa que prepara um banquete de agradecimento para as pessoas que a acolheram numa cidadezinha pesqueira de Dinamarca, e Entre Dois Amores (“Out of Africa”), interpretado por Meryl Streep e Robert Redford, que narra o período em que a baronesa administrou uma fazenda de café que seu marido possuía no Quênia. 

Acabei de ler Winter Tales, um volume com onze histórias escritas por Dinesen em plena maturidade. O livro foi traduzido aqui (Contos de Inverno, Ed. 34, 1993) e pode ser encontrado em sebos (www.estantevirtual.com.br). Não sei quem fez a tradução, mas espero que seja boa, porque uma das coisas mais saborosas desses contos é a prosa de Dinesen – um tanto solene, um tanto recitatória, sempre com imagens vívidas, diálogos enxutos e abertos a múltiplas leituras. Uma prosa de quem escreve numa língua estrangeira cuidadosamente estudada e longamente absorvida, como se dá com outros grandes autores (Conrad, Nabokov). 

A baronesa é uma dessas autoras que sabem contar histórias. Logo nas primeiras frases ela conduz o leitor como alguém que convida um conhecido a subir no carro, dizendo: “Vem comigo, aconteceu algo extraordinário, você precisa ver”. Alguns contos (“The Dreaming Child”, “Alcmene”) se voltam para crianças pobres que, por uma combinação de circunstâncias, ficam ricas; e das coisas estranhas que lhes acontecem a partir daí. 

A maioria das histórias ocorre nas últimas décadas do século 19 ou princípio do 20. Uma delas, “The Fish” é a recriação literária de um breve episódio das crônicas históricas da Dinamarca, ocorrido no século 13. Pelo menos um conto é claramente fantástico: “The Sailor Boy’s Tale”, em que o grumete de um navio comete sem querer um crime e é salvo por uma criatura sobrenatural. 

O que mais chama a atenção nos contos de Dinesen é que, embora visceralmente narrativos, não são daquelas histórias que conduzem a um final nítido, satisfatório, que esclarece tudo ou que recompõe a situação inicial em outros termos. Em alguns casos, é como se tivéssemos acesso a apenas três ou quatro episódios sucessivos de uma história muito maior. Percebemos o que acontece àqueles personagens, há uma certa impressão de desfecho, mas uma impressão também de que aquela história continua. (Indício, pelos meus critérios, de uma narração verdadeiramente realista, uma vez que na vida real nenhuma história se conclui por completo.) 

Dinesen gosta de jogar com duplas de personagens, mostrando cada um por dentro, por inteiro, e fazendo-nos ver o quanto eles se desconhecem, às vezes com conseqüências trágicas, como em “Peter and Rosa”. “O homem e a mulher,” diz ela, “são dois baús trancados, e dentro de cada um deles está a chave do outro”.






1704) Educação e Cultura (28.8.2008)



Quando eu participava uma vez de um desses seminários sobre questões culturais, alguém da platéia perguntou qual era afinal a diferença entre Educação e Cultura. Respondi, meio de improviso, que Educação é tudo aquilo que a gente aprende a fazer porque alguém nos obriga, e Cultura é o que a gente aprende por interesse próprio. Reconheço tecnicamente que não é uma definição aceitável, mas ela aponta uma distinção importante. A Educação é um processo formalizado pelo Estado e por variados grupos (religiosos, militares, etc.), que procura preparar os cidadãos para a vida. Comparada a ela, a Cultura quase que faz parte da Natureza: é uma superposição caótica de experiência a que qualquer um é sujeito desde o instante em que abre os olhos.

A Cultura é aleatória, a Educação é planejada. A Cultura é difusa, a Educação é focalizada. A Cultura está em toda parte, a Educação se dá em recintos específicos. E, evidentemente, as duas também se misturam. Dentro de uma sala de aula, no momento mais formalizado possível da Educação, tudo que ocorre ali faz parte, simultaneamente, da Cultura: o jogo de poder, a competição, o modo de enfocar a matéria, as perguntas, os exemplos, o modo como aquele assunto toca ou não a vida real de cada aluno. A Cultura é tudo, e inclui dentro de si a Educação, que é uma radicalização de seus propósitos (integrar o indivíduo na atividade coletiva). A Cultura é uma educação informal; a Educação é a Cultura sistematizada e administrada segundo um planejamento.

Imagino que as escolas surgiram da necessidade de sistematizar a Cultura. Havia milhões de conhecimentos flutuando na sociedade, era preciso escolher os mais importantes. Na Idade Média havia um grupo de três disciplinas humanísticas (o “trivium”: gramática, retórica, dialética) e outro de quatro disciplinas técnicas (o “quadrivium”: aritmética, astronomia, geometria, música). Sempre que li sobre isso achei interessante que naquele tempo ninguém ensinasse coisa hoje básicas como História ou Geografia. Por outro lado, é normal a ausência das disciplinas científicas de hoje (Física, Química, Biologia, etc.), que na época não existiam – os conhecimentos a respeito eram englobados numa nebulosa Filosofia Natural ou coisa parecida.

Volto sempre a pensar nisto quando percebo a enorme antipatia dos jovens em geral para com as matérias que fazem parte dos currículos escolares. E lhes dou razão. Eu sobrevivo muito bem sem jamais ter estudado Física ou Química. Aliás estudei, mas no âmbito da Cultura, por desejo próprio, lendo livros de ficção científica e precisando de duas ou três leituras paralelas para poder entender o que acontecia ali. Conhecimentos tão especializados deveriam vir assim, quando se fizessem necessários, e não numa lavagem cerebral obrigatória. Seria o mesmo que obrigar todo mundo a estudar Filosofia, Latim ou Orquestração. Para quê? Melhor deixar para os que realmente se interessam.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

1703) Machado: “Conto Alexandrino” (27.8.2008)



(Machado, por Fraga)

A crítica vê no conto “A Causa Secreta” o melhor exemplo da crueldade literária de Machado de Assis, com seu personagem Fortunato, o sádico torturador de ratos. Penso eu que Fortunato se ombreia com São Francisco de Assis, se comparado a Pítias e Stroibus, os protagonistas do “Conto Alexandrino” (Histórias sem Data, 1884). Se o leitor duvida, siga-me e verá. Os dois são filósofos cipriotas que se destinam a Alexandria para usufruir da generosidade do rei Ptolomeu para com as ciências. Na viagem, Stroibus explica ao amigo que os sentimentos humanos têm sua contrapartida nos animais, e que experimentar-lhes o sangue pode mudar o caráter de alguém.

Diz Stroibus: “Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia... (...) O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação nos pavões...” Pítias duvida. Em Alexandria, os dois dissecam ratos, cujo sangue bebem, para descobrir se alguma mudança se processa neles próprios. Sacrificam dezenas de animais na mesa de operação, discutindo pormenores ínfimos: “Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. O vigésimo rato esteve a ponto de pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco”.

Ao beber o sangue dos ratos, tornam-se, eles próprios, ratoneiros de primeira marca, roubando de tudo: “iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas”. A Biblioteca de Alexandria não fica imune aos dois larápios, que furtam “um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2o. e o 3o. livro da República de Platão, etc.” O conto se encerra com os dois filósofos sendo apanhados, e por sua vez postos à mesa de dissecação, onde novos cientistas os descosem à lâmina crua, para investigar-lhes o caráter: “os infelizes berravam, choravam, suplicavam, mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias.”

É um “conto cruel” comparável aos de Villiers de l’Isle Adam, e uma fábula conceitual semelhante às “Ciberíadas” de Stanislaw Lem. Machado também retoma, de passagem, outro tema recorrente em seus contos, o do indivíduo que copia ou furta idéias aos amigos (v. “Os memes de Machado de Assis”, 27.10.2005). Seus filósofos são auto-suficientes e narcisistas, e só quando sofrem o castigo final percebemos que esses defeitos não estão no seu sangue, mas no sangue da Ciência mesma.