segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

1442) Referências literárias (27.10.2007)




“Quais as referências literárias da sua escrita?” A resposta que damos a esta pergunta revela mais sobre nossas fantasias do que sobre nossa prática. 

Vejo muitos poetas jovens sendo entrevistados, mercê da publicação de seu primeiro livro, e quando lhes perguntam suas referências literárias, ou os autores que os influenciaram, abrem um leque impressionante: “Fui muito influenciado por Dante, Homero, Camões, Garcia Lorca, Pablo Neruda, Rimbaud, Baudelaire, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, João Cabral e Mário Quintana”. Eu tenho vontade de cair ajoelhado no chão e gritar: “Caramuru! Caramuru!”

Será possível que um único poeta consiga ter influência simultânea de tanta gente, e de gente tão diferente entre si? Duvido muito. 

Quando o jovem poeta confessa que leu esse pessoal está afirmando que sentiu-se emocionado e transformado pelo que leu, e que ao escrever tem a ambição íntima de causar nos seus futuros leitores o mesmo tipo de emoção e de transformação. 

É a isto que ele chama “influência” – o fato de que a leitura daqueles autores o modificou pra sempre.

A palavra influência nos induz a pensar em ascendência, poder. É a pressão de uma personalidade mais forte sobre uma mais fraca, dizendo-lhe o que dizer, e como. Mesmo ausente, mesmo manifestando-se apenas através da obra, a personalidade mais forte encontra pouca resistência naquele espírito geralmente jovem, ávido de experiências, ansioso para dizer algo mas sem saber o quê e como. 

O jovem leitor de Baudelaire torna-se um psicógrafo de Baudelaire, mesmo que o que há de Baudelaire em seus escritos seja imperceptível, ou redundante. O jovem cineasta defende-se das críticas com veemência: “Claro que a câmara está tremendo, e com a luz estourada! É Glauber!”

Não é Baudelaire e não é Glauber, mas não é esse o problema. O problema é que na obra também não se percebe o Fulano que fez aquilo. As influências estilísticas são as mais difíceis de domesticar, porque nos autores de origem aqueles recursos exprimiam uma visão das coisas, e na obra dos influenciados exprimem apenas a ausência de uma visão qualquer.

Quando admiramos algum aspecto técnico da obra de um artista, deveríamos nos dedicar a copiá-lo, a reproduzi-lo, até sermos capazes de dominá-lo. 

Mozart era capaz de imitar e parodiar qualquer compositor de sua época. Hunter Thompson decorava e datilografava textos inteiros de Hemingway, para absorver seu ritmo. A obra dos Beatles é um vasto panorama de técnicas alheias copiadas tintim por tintim. 

Uma influência é como um cavalo selvagem, que joga você no chão cada vez que você tentar obrigá-lo a ir para onde você quer. Mas ela pode ser domesticada, pode ser transformada em técnica, recurso, instrumento que utilizamos quando precisamos de uma voz narrativa específica, de um timbre sonoro, de um colorido, um tema. Deveríamos poder dizer algo como: “Dez por cento do que faço eu peço emprestado a Baudelaire, a Fellini, a Portinari”.






1441) O jogo de 722 gols (26.10.2007)



Eu vou ter mais cuidado com o que escrevo, porque toda fantasia que ponho no papel tende a degenerar em fato real. O leitor talvez recorde o meu artigo “O Maior Espetáculo da Serra” (15.1.2006), no qual imaginei uma partida eterna entre Treze x Campinense, 24 horas por dia. Pois os jornais noticiam que os argentinos estão se preparando aos poucos para realizar esta minha profecia, assim como o conhecido Pierre Menard tentou reescrever o Dom Quixote. Noticiam os jornais que no aniversário de fundação de Nocochea, cidadezinha a 520km de Buenos Aires, decidiu-se comemorar o evento com um jogo entre duas equipes que foram batizados com os nomes dos fundadores da cidade, “Victorio de la Canal” e “Angel Murga”. O jogo durou 46 horas e terminou com a vitória de Victorio de la Canal pelo elástico placar de 387 x 335. A notícia também informa que tomaram parte na disputa um total de 1.320 jogadores.

Minha primeira visualização do evento foi um campo de futebol gigantesco, com quilômetros e mais quilômetros, e duas equipes, cada uma com 660 jogadores, perseguindo uma bola cujo paradeiro eles só conseguiriam descobrir ligando para o celular dos colegas. Depois me toquei que não. Desse jeito o mais provável é que o jogo terminasse 0x0, mesmo depois de 46 horas. Cada um dos times deve ter utilizado, num campo normal, 60 equipes normais de 11 jogadores, que foram se substituindo umas às outras nos intervalos da disputa.

Esse gigantismo dá uma idéia do fascínio que o futebol exerce sobre a nossa capacidade de fantasiar. Recordo que nos primeiro anos do Pasquim alguém (não lembro o autor) publicou um texto chamado (acho) “O Grande Jogo”, em que duas barras eram colocadas em extremos opostos do Brasil (tipo Oiapoque e Chuí), e num ponto intermediário (digamos, a Bahia) era dado o pontapé inicial para esta partida que iria teoricamente envolver toda a população brasileira. A tarefa seria levar a bola, de acordo com as regras, até o local da “baliza” e marcar o gol. (Imagino que depois que alguém fizesse 1x0 seria permitido dar uma nova saída sem a necessidade de transportar a mesma bola, de avião, para o “círculo central”).

Na época eu considerei este conto uma espécie de ficção científica ou ficção especulativa tipicamente brasileira. O gigantismo (e o absurdo inevitável, kafkeano, desse projeto) era algo que só poderia ocorrer a uma mente brasileira. Que os argentinos sejam capazes não apenas de imaginar, mas realizar um jogo nas dimensões referidas neste artigo prova que podemos até ser os melhores, mas não somos os únicos. Um jogo de 722 gols, 46 horas e 1.320 jogadores é algo de uma intensidade poética que me comove quase até as lágrimas. Se no ano que vem acontecer de novo, eu compro uma passagem aérea para Buenos Aires e de lá vou assistir e cumprimentar os organizadores. É um delírio à altura do país de Borges e de Maradona, o país de Cortázar e de Riquelme.

1440) O Prêmio Nobel alternativo (25.10.2007)




(Ted Gioia)

O escritor Ted Gioia criou uma página em seu saite propondo uma questão que muita gente já se propôs: e se os vencedores do Prêmio Nobel, em vez de terem sido aqueles sujeitos obscuros que contemplamos nas estantes, tivessem sido os autores que hoje qualquer leitor mediano conhece e admira? Gosto não se discute, claro, mas a lista feita por Gioia de 1901 até 2007 nos propõe mudanças tão óbvias que chegamos a nos perguntar: “Ora, e não foi assim não?...” Começa pelo começo: em vez de Sully Prudhomme, o primeiro ganhador, teríamos Leon Tolstoi. Em 1902, em vez de Theodor Mommsen ele sugere George Meredith (pra mim, confesso, é trocar seis por meia dúzia). Mas em 1903, em vez do impronunciável Bjornstjerne Bjornson o vencedor seria Anton Tchecov; depois, em vez de Frederic Mistral e José Echegaray, venceria Julio Verne; e em 1905, em vez do Henryk Sienckewicz de Quo Vadis, o premiado teria sido Henrik Ibsen, o dramaturgo de Casa de Bonecas.

Gioia leva em conta os regulamentos do Prêmio (o autor tem que estar vivo), e os premiados que ele sugere são autores que no ano em questão já tinham uma obra consolidada e conhecida, e seriam candidatos legítimos. Não vou comentar todos os nomes (que podem ser vistos em: http://www.greatbooksguide.com/NobelPrize.html). Mas me parece que seria mesmo mais justo ter premiado Mark Twain em vez de Giosuè Carducci (1906), Henry James em vez de Maurice Maenterlinck (1911), Sigmund Freud em vez de Verner von Heidenstam (1916), Franz Kafka em vez de Jacinto Benavente (1922), Conan Doyle em vez de Grazzia Deledda (1926), G. K. Chesterton em vez de Erik Axel Karlfeldt (1931)... Não parece óbvio?

Gioia não é totalmente crítico da Academia Sueca. Muitos premiados reais são endossados por ele, como Rudyard Kipling (1907), W. B. Yeats (1923), George Bernard Shaw (1925), T. S. Eliot (1948), William Fulkner (1949)... E aqui para nós tem umas sugestões dele que eu não concordo: eu não tiraria o Nobel de Herman Hesse (1946) para premiar Hermann Broch, nem o de Bertrand Russel (1950) para dá-lo a Wittgenstein, como ele sugere.

O mais divertido é quando a lista vem se avizinhando da época atual, porque as sugestões de Gioia ficam menos convencionais. Ele sugere que em vez do poeta Derek Walcott (1992) a Academia deveria ter premiado Bob Dylan, e que em vez de Odysseus Elytis (1979) o prêmio deveria ter ido para Philip K. Dick. Premiar Hunter S. Thompson em vez de Dario Fo (1997) é uma sugestão divertida, porque o próprio Dario Fo já parece uma idéia de Gioia.

Perda de tempo, ficar discutindo isto? Não acho. Um Nobel, além do milhão e meio de dólares que concede ao premiado, premia também uma cultura, um gênero literário, um país, um mercado editorial. Ajuda a moldar e direcionar o rumo da literatura, mesmo quando o premiado se dissolve em anonimato poucos anos depois. (Alguém sabe quem foi Halldor Laxness? Foi o cara que ganhou em 1955, em vez de Bertolt Brecht).





1439) Uma essência narrativa (24.10.2007)


(a 1a. edição de O Guarani)

Um entrevistador me pergunta: “Em sua opinião podemos afirmar que há uma temática central ou uma essência narrativa na atual literatura Brasileira?” Para comodidade própria, decido considerar “atual” a literatura brasileira que consumi nas últimas quatro décadas, até porque a maioria esmagadora dos títulos que li continua em catálogo e disponível para os leitores de 2007. Como já comentei aqui, “atual” para mim é o livro que está disponível para leitura hoje. O Guarani de José de Alencar é de 1857 mas é atual – porque pode ser encontrado em qualquer livraria ou biblioteca, volta e meia está sendo analisado em nossas escolas, serve como ponto de referência e de comparação para numerosas análises e, portanto, faz parte do corpo literário vivo do Brasil. O que não ocorre com outros livros, muito mais recentes, mas que só foram lidos pelos parentes próximos do autor e por meia dúzia de resignados amigos.

Falemos, então, da literatura brasileira em prosa. Mesmo não lendo tudo que sai por aí costumo ler resenhas, críticas, etc., em revistas, jornais, fanzines e suplementos literários de todo tipo. Dá para ter uma idéia aproximada do que se publica. Eu diria que a tendência que predomina na prosa brasileira atual, tanto em termos de freqüência estatística quanto em termos do impacto relativo de cada obra, é o que chamo de Realismo Social e Psicológico. O Realismo Social reproduz, dentro dos quadros da ficção mimética (a ficção que imita a realidade), aquilo que os resenhadores costumam chamar de “amplos painéis históricos e sociais”, ambientes urbanos ou rurais reconstituídos com intenções de verossimilhança dramática e fidelidade documental. São obras que, bem ou mal, retratam o Brasil. Os mestres dessa corrente ainda são Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano, Rubem Fonseca, etc.

O Realismo Psicológico nos dá, em vez desses amplos painéis, retratos em close-up de um indivíduo ou um grupo de indivíduos. Um casal, uma família, um vilarejo, um ambiente de trabalho... Embora tais histórias também lidem com ambientes verossímeis, este fica em segundo plano, descrito em traços rápidos, porque serve apenas de fundo para o que os autores de fato pretendem: descrevem a mente, as emoções, as metamorfoses íntimas dos seus personagens. São obras que retratam os brasileiros. Os pontos de referência são Clarice Lispector, Machado de Assis, etc.

Claro que há obras em que estas duas visões se fundem. Claro que há exceções: temos livros absurdistas, romances fantásticos ou oníricos, alegorias e sátiras, prosa surrealista ou de nonsense, prosa do tipo palavra-puxa-palavra... Mas do meu ponto de vista o que predomina são as duas tendências acima. A maioria da prosa brasileira atual, pelo que sei, trabalha firmemente dentro dos caminhos abertos pelo romance ocidental (Europa e EUA) dos últimos 100 anos, inclusive em seus extremos mais experimentais e “pós-modernos”.

1438) “O fim do sem fim” (23.10.2007)


Revi algumas semanas atrás, no Rio, este documentário dirigido a seis mãos por Lucas Bambozzi, Beto Magalhães e Cao Guimarães. No “Almanakito” distribuído pela jornalista Maria do Rosário fico sabendo que este era o filme brasileiro menos visto entre todos que estavam em cartaz no mês de outubro. O líder de público era O primo Basílio com 753 mil espectadores, em números redondos. Em segundo lugar vinha Turma da Mônica, com 513 mil. Em terceiro Ó-paí-ó, com 383 mil. Pois O fim do sem fim segurava a lanterna, tendo sido visto por apenas 970 pessoas.

É engraçado que tão poucos queiram assisti-lo, porque é um dos melhores filmes que vi nos últimos anos. Vi-o duas vezes, uma no seu lançamento, em 2001, e outra agora, quando ele entrou para valer no circuito comercial; e pretendo revê-lo outras, se possível comprando o DVD. O tema do filme são as profissões que estão desaparecendo, e a sorte dos indivíduos que viviam em função delas. Algumas estão ligadas à religiosidade e à medicina popular, como o benzedor, a parteira, etc. Outras são profissões raras por sua própria natureza, como a do faroleiro. Outras são quase surrealistas: recarregador de isqueiros?! Outras parecem estar se mantendo vivas sabe Deus como: lanterninha de cinema, calígrafo, engraxate, fotógrafo lambe-lambe... E por aí vai.

Claro que tem cordelistas no meio, os cultores desta Grande Arte cuja morte já foi anunciada tantas vezes. Há cenas impagáveis, como a de um poeta cujo celular toca no meio da entrevista, ele atende e diz: “Tô por aqui... mentindo um tiquinho pros jornalistas”. E outro que é uma mistura de poeta, profeta apocalíptico, astrólogo e logomante, e que dispara sem cessar uma enxurrada de visões, raciocínios abstrusos e vocabulário surrealista.

Existem pelo mundo entidades chamadas (não exatamente assim) o Museu da Tecnologia Obsoleta, o Mostruário das Ciências Desaparecidas, o Memorial de Usos e Costumes Extintos. Eles preservam o lado murcho, o lado ressequido e atrofiado do avanço da Ciência. O fim do sem fim é como um filme que ao mostrar um edifício não mostrasse sua fachada, seus jardins, seus amplos salões, suas paredes ornamentadas, e corresse sua câmara pelos desvãos, pela parte de trás dos móveis, pela parte de baixo das escadas, por baixo das mesas e das camas, em todos os lugares para onde são varridos os detritos ou empurrados os objetos velhos, quebrados, com os quais ninguém sabe mais o que fazer. É um filme sobre o anacrônico, o obsoleto, sobre atividades humanas que têm existência meramente residual, se confrontadas com o mundo da cultura de massas que molda nossa concepção de realidade. Profissões que, ainda assim, sobrevivem, teimosamente, porque exprimem algo que fez sentido e continua a fazê-lo, mesmo que não tenha a mesma importância social que um dia teve. É um filme medularmente brasileiro, e que também poderia ter sido feito na Bulgária, na Índia, no Japão.

1437) Chão de giz (21.10.2007)


(o gigante de Cerne Abbas)

O título desta canção de Zé Ramalho sempre me lembrou as figuras misteriosas cujas fotografias vi pela primeira vez num livro intitulado O Mundo Misterioso de Arthur C. Clarke, em que o escritor inglês comenta fatos misteriosos e extraordinários como as aparições de OVNIs, do Monstro do Lago Ness, do Abominável Homem das Neves e assim por diante. Misturados a estas lendas estão alguns fatos curiosos mas sem mistério algum, a não ser o mistério histórico de quem os fez, como, e por quê. São aquelas inscrições vastas feitas no chão, às vezes com centenas de metros de comprimento, e que só podem ser vistas por inteiro por alguém que sobrevoe a região. Este detalhe levou especuladores como Erich von Daniken e outros a sugerir que tais figuras na paisagem seriam uma tentativa de comunicação com extraterrestres. Acho mais simples supor que os caras que fizeram as inscrições acreditavam que seu Deus ou seus deuses estavam no céu, e era a eles que os desenhos se dirigiam. Para imaginar que as divindades habitam o céu não é preciso ter feito contato com alienígenas, basta ter visto um céu estrelado à noite.

Algumas dessas imagens podem ser vistas em: http://www.youtube.com/watch?v=-7pJeHY-fLI. É um passeio virtual por imagens de satélite que mostram desde as Linhas de Nazca, no Peru, até um logotipo da Coca-Cola gravado no chão de um deserto chileno. No meio delas, aparecem as imagens do “chão de giz”, todas na Inglaterra. Dou-lhes este nome porque elas foram feitas em regiões onde o solo, a certa profundidade, é feito de material calcáreo e muito branco. Basta escavar e deixar à mostra uma certa extensão daquela camada, e é possível fazer desenhos de grande extensão em que as linhas brancas se destacam vividamente de encontro ao verde da vegetação rasteira. Por outro lado, requerem manutenção. Depois de prontas, é preciso que todo ano alguém fique limpando o local e evitando que o mato recubra a área exposta. Muitas figuras semelhantes já devem ter se perdido porque ninguém cuidou delas.

As figuras mais famosas são o Cavalo Branco de Uffington, o Homem Grande de Wilmington, e o Gigante de Cerne Abbas, o qual deve ter causado certo desconforto aos extraterrestres mais puritanos, por ser a imagem de um guerreiro nu com, digamos, a arma em riste. Há um saite com fotos de figuras assim, preservadas ou parcialmente desaparecidas, em: http://www.hows.org.uk/personal/hillfigs/. Obras assim nos comovem por terem sido feitas por indivíduos que nunca as viram por inteiro. Como os pedreiros das igrejas medievais, que nunca as viram prontas, eles trabalhavam tendo em mente uma imagem ideal, que era sua única inspiração e sua única fruição. Por incrível que pareça, o ser humano gosta disto. Gosta de trabalhar por algo que não desfrutará no futuro, seja porque a execução da obra ultrapassa seu tempo de vida, seja porque o formato final dela será inacessível à sua visão.