quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

1410) Tropicalismo e Vanguarda (20.9.2007)




O Tropicalismo não foi um movimento organizado e teorizado, foi uma efervescência criativa de um grupo de artistas de talento, cada qual com um gosto próprio e uma visão pessoal. 

Foi movido em parte pela intuição, e em parte por teorias assimiladas durante o trajeto, como quem troca um pneu com o carro em movimento. Se os tropicalistas citam tanto a “antropofagia” teorizada por Oswald de Andrade é porque poucas imagens exprimem tão bem a voracidade cultural que os consumia e que os fazia consumir. 

Para os jovens de hoje, a Tropicália apenas introduziu a guitarra elétrica e as roupas espalhafatosas na MPB; seria uma espécie de Banda Calypso intelectualizada. Isto é um mero rabisco para retratar uma situação mais complexa. 

O primeiro disco solo de Caetano Veloso tinha muito mais influência da música erudita da época do que do rock. 

Em 1968, Caetano e Gil, então em São Paulo, aproximaram-se de um grupo de músicos eruditos com idéias vanguardistas. Gil ficou mais próximo de Rogério Duprat, autor do arranjo original, entre outras canções, de “Domingo no Parque”, além dos primeiros discos dos Mutantes e do famoso Panis et Circensis

Caetano utilizou em seu disco de estréia arranjos de Sandino Hohagen (“Eles”, “Clara” e “Anunciação”), Julio Medaglia (“Tropicália”, “Paisagem útil”, “Clarice”). Os arranjos lançavam mão de sons eletrônicos, e utilizavam desde grupos pop como o RC-7 (a banda oficial de Roberto Carlos) até o Musikantiga, um conjunto instrumental hoje esquecido mas que era (pelo que me lembro) uma mistura de Quinteto Armorial com Uakti. 

A sonoridade do Tropicalismo deve tanto a estes experimentos quanto ao rock e pop internacionais. Nos discos feitos antes do exílio em Londres, estas experiências foram mais longe: Caetano com “Acrilírico”, Gil com “Objeto Semi-Identificado”. 

O auge dessas pesquisas foi atingido por Caetano em Araçá Azul, que foi (talvez ainda seja) o disco com maior índice de devoluções à loja, na história da MPB. Em seu livro Verdade Tropical, Caetano afirma reiteradamente que Araçá Azul exprime melhor que qualquer outro trabalho as intenções que ele tinha quando começou a gravar, e considera que os discos anteriores eram cheios de concessões, canções menores, coisas feitas às pressas, etc. 

Seja isto verdade ou não, foi no Tropicalismo que pela primeira vez a música erudita de vanguarda, a música eletrônica, a música concreta puseram seu pé na MPB. Esses caminho não frutificou por motivos comerciais, claro, embora artistas como Walter Franco tenham empurrado mais um pouco as fronteiras deixadas pelos baianos. 

Gostemos ou não desse tipo de música, para fazer justiça ao Tropicalismo é preciso reconhecer que uma característica do movimento desde o início foi o seu intelectualismo, ou seja, sua clara disposição para colocar as questões da música num grau maior de profundidade e complexidade. Chacrinha e Carmen Miranda eram apenas o invólucro de celofane.






1409) As estrebarias de Augias (19.9.2007)





(André Breton)

Num dos Manifestos do Surrealismo, André Breton aconselhava aos poetas que escrevessem, escrevessem muito, escrevessem qualquer coisa, qualquer besteira, não importa o quê; escrevessem tudo que lhes viesse à cabeça, sem prejulgar, sem analisar, sem escolher. Para quê? “Para limpar as estrebarias de Augias”, dizia ele.

Breton achava que nossa mente está bloqueada pelo excesso de educação, de disciplina, de leitura de textos alheios. Quando começamos a escrever (a criar, no sentido mais amplo) estamos apenas repetindo o que já vimos, reciclando clichês, copiando lugares-comuns. É preciso jogar todo este lixo fora, escrever abundantemente, copiosamente, irresponsavelmente, para que um dia, quem sabe, a nossa própria voz comece a se fazer ouvir.

A metáfora usada por Breton diz respeito a um dos Doze Trabalhos de Hércules. O herói foi encarregado de limpar as estrebarias do Rei Augias, que tinha o maior rebanho de gado da Grécia, e cujos estábulos jamais tinham sido limpos. Havia ali décadas e décadas de cocô de gado acumulado, cristalizado, transformado numa crosta com metros de espessura, mais dura do que basalto vulcânico. E Hércules tinha que limpar aquilo tudo em apenas um dia.

Conta-se que este trabalho foi executado mas cancelado pelo Rei Euristeu (o tal rei que obrigou Hércules aos doze trabalhos). Por que? Porque ao que parece os trabalhos visavam testar a força e a coragem do herói, e neste Hércules usou a inteligência.

Quando ele chegou lá nos estábulos e viu o tamanho do problema, teve uma idéia brilhante. Em vez de pegar uma marreta e sair quebrando, ele andou alguns quilômetros e construiu com pedras uma represa, desviando o curso de dois rios próximos. Somados, os rios produziram uma enxurrada irresistível que passou por dentro dos estábulos, corroendo, minando, desagregando, esfarelando, desconjuntando toda aquela placa tectônica de cocô-de-rocha. Depois de um dia inteiro de enxurrada, os estábulos estavam mais limpos do que os salões do palácio de Euristeu.

Breton era um freudiano de primeira hora e sabia do que estava falando. As estrebarias são um símbolo de todo o dejeto mental que se acumula no nosso inconsciente, seja através das leituras, seja através dos nossos complexos, traumas e outros processos. A cabeça está suja por dentro. Há um acúmulo gigantesco de problemas não-resolvidos, de excreções que não foram jogadas fora e estão bloqueando o fluxo das emoções e das idéias. É preciso desviar para ali um fluxo irresistível de energia mental criadora – que para Breton era a “escrita automática” – para diluir, esfarelar e expulsar todos aqueles resíduos cristalizados.

O que faltou a Breton dizer, talvez, foi:

“Escreva – mas não publique. Isso aí é seu dever-de-casa terapêutico. Ainda não é literatura. Literatura é só depois que a água estiver correndo limpa, e sua voz pessoal puder se fazer ouvir. Não publique agora. Tem tempo.”






1408) Tropicália (18.9.2007)



A exposição sobre a Tropicália em cartaz no MAM (Rio) mexeu com meus neurônios de memória. Com melancolia, constatei que já tive quase todos os LPs ali expostos, alguns hoje raríssimos, como o primeiro de Tom Zé, e
A Banda Tropicalista de Rogério Duprat

Ali estão discos perfeitos como o primeiro disco solo de Caetano, o “disco do fardão” de Gil, o Gal a Todo Vapor, os três primeiros (e melhores) dos Mutantes, o “disco tropicalista” de Nara Leão, os discos pós-prisão de Caetano e Gil, e assim por diante. 

Esses discos abriram na música brasileira, para o bem e para o mal, uma porta que nunca mais será fechada. Digo “para o bem” porque o nível de inteligência e de criatividade desses jovens artistas de vinte e poucos anos era uma coisa assombrosa. Compunham, cantavam, tocavam, escreviam e polemizavam num nível que a própria crítica não estava acostumada a presenciar – nem a acompanhar. 

E digo “para o mal” porque o Tropicalismo sofreu o karma de todos os movimentos culturais que se impõem num mercado: foi diluído, bastardizado e deformado por seus próprios seguidores, aproveitadores, imitadores e epígonos. 

O mundo é uma coisa engraçada. O fracasso de um movimento faz com que sua mensagem não encontre eco e sua ação se esvazie, mas em compensação seus princípios permanecem intactos, nas mãos de meia dúzia de guardiões fiéis. 

O seu sucesso, por outro lado, faz com que os guardiões percam as rédeas do processo, e os princípios estéticos e ideológicos do Movimento sejam arrebatados pelos vendilhões do Templo, pelos oportunistas de última hora, pelos macaqueadores sem talento, pelos profissionais do rótulo e do slogan, pelos teorizadores desinformados, e pela multidão inevitável que sempre ouvirá o galo cantar mas nunca saberá onde. 

O Tropicalismo teve inimigos à esquerda e à direita, mas se impôs porque teve a seu favor uma combinação propícia de circunstâncias. Teve o talento desmedido dos seus integrantes, teve o fato de defender o cosmopolitismo num momento em que isto significou uma oxigenação e um enriquecimento para a cultura brasileira, e o fato de que tinha a seu favor a mais poderosa das forças: o Mercado. O Mercado era mais preparado para utilizar as bandeiras da Tropicália do que as bandeiras, por exemplo, do Movimento Armorial ou da Poesia Concreta. 

O Tropicalismo trouxe para dentro da MPB as influências da música erudita de vanguarda e da música eletrônica; trouxe a música pop dos Beatles e de Bob Dylan; trouxe uma relação com as artes plásticas e o design; trouxe (através do Concretismo, seu aliado de primeira hora) uma aguda consciência da Semiótica e da Teoria da Informação; fez um ajuste de contas (nem sempre bem compreendido) com elementos arraigados em nossa cultura como o kitsch e o melodrama. 

Vê-lo hoje como um movimento que defendia a guitarra elétrica, as roupas de plástico e os cachos de bananas na cabeça é vê-lo no que trouxe de pior, e recusar o que nos trouxe de bom.