segunda-feira, 26 de outubro de 2009

1330) Que mistério tem Clarice (17.6.2007)



A propósito de uma exposição sobre Clarice Lispector que ocorre em São Paulo, Zuenir Ventura, num artigo no “Globo”, perguntou-se, e a nós: “Como uma escritora tida como hermética, inacessível, introspectiva, é capaz de tanto sucesso de público?” A pergunta do mestre Zuenir é a mesma que me fiz por muitos anos, até perceber que não tem resposta porque é uma pergunta iludida, uma pergunta cujas premissas não batem com a realidade. Eu, por exemplo, me perguntava como é que uma autora tão intelectual conseguia ser tão lida, copiada, citada e imitada por adolescentes. Ora, não é bem isso. Se existe uma autora brasileira que não é intelectual é Clarice. Ou melhor: ela não é intelectual no sentido livresco-erudito da palavra, e sim no sentido metafísico, no sentido em que o jagunço Riobaldo é um dos grandes intelectuais da nossa literatura.

Clarice não é uma racionalista: é uma intuitiva que usa palavras simples e diretas para exprimir sensações mentais tortuosas e obscuras. Introspectiva? Isso, sim. Tudo que lhe acontece é da retina para dentro. Ela é capaz de escrever um livro inteiro narrando os poucos minutos de contemplação mútua entre uma mulher e uma barata numa cozinha. Enredo não era seu forte, porque quando ela começa a contar uma história a história dispara a galope para dentro dela e começa a contá-la. Tudo acontece dentro da mente dela. Mesmo quando descreve uma cena com pessoas almoçando e conversando numa sala não temos a impressão de ver a sala, e sim de estar olhando uma foto de Clarice e na pupila do seu olho estar acontecendo a cena, como se fosse uma janelinha do YouTube.

Num texto publicado aqui (“Claríssimo Espectro”, 14.11.2004) falei que ela criava a loucura como quem cria um cachorro dentro do apartamento. Era o seu estilo de conviver com o paradoxo, de dizer “eu sou mais forte do que eu”, “Eu não sou Tu, mas mim és Tu” e outros paradoxos lógicos que a Razão não comporta mas que são a essência da Literatura. Para a lógica aristotélica, A é A e B é B, e a questão acaba aí. Para a sensibilidade literária, A pode ser B. Ou pode ser X, pode ser 345, pode ser um coelho correndo em cima de um muro. Qualquer coisa, no momento da fagulha poética, pode ser qualquer outra, porque o Inconsciente (isto que popularmente é chamado de “emoção”) é o amálgama que “dá liga” entre as duas, que as funde numa única essência. E o Inconsciente não é racional. Pode ser analisado racionalmente, como descobriram Freud, Jung, etc., mas ele próprio não funciona pelas leis da Razão e da Lógica.

Por que motivo os adolescentes em geral entendem e amam Clarice? Porque em seus momentos de introspecção é assim que eles se sentem, são A e são Não-A ao mesmo tempo, movidos pelo choque e antagonismo entre corpos em plena metamorfose, pressões familiares e sociais, obrigação de tomar partido em disputas que não entendem, exigências e dilacerações que os deixam sem saber se são uma pessoa ou uma barata.

1329) “Clube da Luta” (16.6.2007)



Clube da Luta, de David Fincher (1999) é um desses filmes polêmicos cujos críticos contra e a favor se exaltam a tal ponto que a gente vê a hora eles se transformarem em outro clube-da-luta como aquele em que Edward Norton e Brad Pitt se esmurram até transformarem a cara um do outro em postas sanguinolentas. O filme tem uma história inquietante, um roteiro extremamente tenso e energético, uma realização visual rica de efeitos. Mas eu não gosto do filme. Por quê?

Ele se divide em três partes. Na primeira, mostrando a vida de um executivo rico, “banana”, abestalhado, o filme é uma crítica ao consumismo, à passividade, à burocracia. Na segunda, quando ele fica amigo de Pitt e os dois criam um clube dedicado a brigas corporais, ocorre uma regressão ao animalismo, ao vitalismo, ao sentido zoológico da vida, ao materialismo corporal como reação à falta de sentido da vida em sociedade. Na terceira parte, eles começam a criar milícias voltadas para a violência cega, para a destruição gratuita de símbolos do Poder Econômico, como as firmas de cartões de crédito. A esta altura, o filme descambou para um homossexualismo machista sem sexo, fundado na agressividade, num sadomasoquismo militarizado e anarquista.

O primeiro terço do filme é uma excelente sátira à sociedade americana. O segundo terço é um desabafo vitalista, uma sacudida brutal que choca, impressiona, e é intelectualmente compreensível. O terceiro terço é um sintoma da desorientação dos próprios autores, que acabam mergulhando no delírio que criaram e acreditando na fantasia para-fascista com que tentaram satirizar a sociedade que renegam. Quando os cidadãos pacatos começam a participar do Clube da Luta (a respeito do qual é preciso manter segredo absoluto), sentem-se como garotos admitidos no interior de uma Sociedade Secreta onde podem dar vazão a sua agressividade, mesmo que seja ao preço de ter os dentes e o nariz partidos. Sentem-se vivos pela primeira vez. A mim, isto lembra a teoria do “Outsider” de Colin Wilson – o sujeito de inteligência superior que não consegue se adaptar a uma sociedade incapaz de compreendê-lo e de utilizar seus talentos. Para não morrer de tédio ou de depressão, ele às vezes vira um criminoso – só “para se sentir vivo de verdade”.

O filme de Fincher tem uma visão Bin Laden da política: para combater os males do capitalismo, basta explodir seus arranha-céus. É uma visão apocalíptica, destrutiva e fascista da política atual. Por ser tecnicamente muito bom, o filme inquieta, já que tudo que diz parece plausível. E o filme emperra numa situação que sempre existiu no cinema, mas parece estar existindo cada vez mais: o cara mostra aquilo tudo para criticar, ou porque gosta daquilo e quer mostrar a todo mundo? É uma discussão antiga, principalmente com filmes violentos. Fincher parece às vezes aquele fotógrafo que vai cobrir uma passeata e acaba participando dela.

1328) As árveres somos nozes (15.6.2007)



Está no YouTube, a caverna de Ali Babá do video alternativo. Tudo está no YouTube, desde vídeos domésticos até turmas de jovens bêbados acenando para a câmara até videocassetadas e clássicos do cinema mudo. O vídeo de que falo hoje é um desses sucessos efêmeros que todo mundo vê e todo mundo recomenda a todo mundo. As febres do YouTube são assim, rápidas, intensas, logo substituídas por uma febre semelhante em torno de um produto diferente. Algum tempo atrás, a febre era em torno de “Tapa na Pantera”, um video de uns 10 minutos com uma atriz cinqüentona elogiando os efeitos da maconha (efeitos que aliás são visíveis na protagonista durante todo o depoimento). Muito engraçado, mas não se compara ao caso em pauta.

O caso em pauta é um vídeo de pouco mais de 3 minutos cuja parte principal é a trilha sonora: duas pessoas tentando ensinar um sujeito a repetir a frase: “O jardineiro é Jesus, e as árvores somos nós”. Trata-se de uma gravação original em áudio, com desenhos rudimentares que ilustram e comentam as besteiras que escutamos. Porque o camarada simplesmente não consegue repetir a frase. Tem horas que ele parece débil mental, tem horas que parece alcoolizado, ou que parece fazer de propósito – enfim, ele diz: “O zardineiro é Zesus...” Aí é interrompido: “Não, não. O jardineiro é Jesus, e as árvores somos nós”. Ele tenta de novo: “O jardineiro é Jesus, e as árveres...” Os outros o corrigem: “Ár-VO-res!” E ele: “Ár-VO-ROS!” “Não, não: as árvores somos nós” E ele: “As árveres somos nozes”.

Não vou repetir tudo porque perde a graça, e aliás não tem muita coisa fora isto. Já recebi desde janeiro uns 50 emails de gente conhecida e desconhecida me indicando este video, com link e tudo. E já devo tê-lo mostrado, em minha casa e na casa dos outros, a outras 50 pessoas. Por que? Creio eu que é pelo apelo irresistível do besteirol, uma das principais forças propulsoras da Internet. Fazer besteirol com cobrança de ingresso é coisa para profissionais como o Casseta & Planeta. Nem todo mundo está dispostos a pagar para ouvir isso. Mas na Internet você exibe sem pagar nem ganhar, e um milhão de pessoas assistem sem ganhar nem pagar. E fica tudo em casa.

O zardineiro é a Internet, esta capacidade incrível de semear idéias, sejam elas a Teoria do Campo Unificado Einsteiniano ou uma coroa elogiando o baseado. O jardeneiro semeia, espalha, pulveriza, ou – no idioma local – disponibiliza, e as pessoas chovem sobre aquilo como abelhas chovem sobre as flores, transformando-se em agentes involuntários da polinização. O YouTube é uma invenção recente de dois caras de 20 e poucos anos, e hoje vale bilhões de dólares. Eles são os jardineiros, são Chessús, são o grande mestre da sinapse social. E as árveres somos nozes, para o Bem e para o Mal, bebês engatinhando no novo patamar da comunicação, um mundo que para as gerações futuras será o único possível, e não conseguirão imaginar como era o mundo antes.

1327) Os homens que mataram o facínora (14.6.2007)



Com este título, inspirado no faroeste clássico de John Ford, o jornalista Moacir Assunção publicou (Rio, Ed. Record, 2007) mais uma obra na bibliografia sobre Lampião. Desta vez, o foco não cai sobre o cangaceiro, embora muita coisa seja dita sobre sua vida, sua família e seus combates. Como o título indica, Assunção se volta para os antagonistas de Virgolino Ferreira, tanto os que foram por ele próprio considerados seus inimigos mortais – seu ex-vizinho Zé Saturnino, o chefe de volantes Zé Lucena, quanto Mané Neto, um dos mais valentes perseguidores dos cangaceiros, e João Bezerra, o chefe da volante que em julho de 1938 surpreendeu o bando de Lampião na famosa Grota de Angicos e matou 11 deles, entre os quais o Capitão e sua mulher Maria Bonita.

Assunção é um jornalista dedicado, que além de consultar livros e jornais viaja pelos lugares onde os fatos aconteceram e entrevista os sobreviventes dessas epopéias sertanejas de quase um século atrás. A história do cangaço vive sendo reescrita sem parar, mas uma das coisas que mais prejudicam sua compreensão é o intenso emocionalismo de muitos que escrevem contra ou a favor. Para uns Lampião era um criminoso sádico, interesseiro, bajulador de coronéis; para outros, um cavaleiro andante combatendo injustiças, perseguido por governos corruptos e policiais sanguinários. Ora – como se diz por aí, “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Relatos imparciais são sempre bem vindos, quando mais não seja para colocar os fatos em primeiro plano.

O livro tem histórias trágicas, episódios curiosos. Um detalhe interessante é a menção ao combate em 1924 entre Lampião e as forças de Teophanes Ferraz Torres, perto da Lagoa do Vieira (PE); ferido no pé, Lampião passou 40 dias escondido na Serra do Catolé, nas proximidades da Pedra do Reino, ou Pedra Bonita.

Uma história que me comoveu foi a do massacre da família Gilo, na Fazenda Tapera (PE). Um cabra de Lampião chamado Horácio Grande era inimigo do fazendeiro Manoel Gilo, e falsificou uma carta em nome dele, insultando e desafiando Lampião. Lampião foi até lá com o bando, e depois de uma noite de tiroteio matou 13 pessoas entrincheiradas na casa da fazenda. O velho Manoel foi o último: trazido à presença de Lampião, afirmou que não tinha mandado carta alguma, até porque não sabia escrever, e que o autor da mentira era Horácio. Este puxou do revólver e matou o fazendeiro ali mesmo. Fosse eu o Rei do Cangaço, o tal do Horácio não ficava vivo nem mais um minuto. Lampião limitou-se a expulsá-lo do bando.

O livro de Assunção não tem a profundidade interpretativa de outro que estou folheando, Guerreiros do Sol, de Frederico Pernambucano de Melo. Como a maioria dos livros sobre cangaço, é uma recolha de episódios contados e recontados de diferentes pontos de vista. Pertence ao que poderíamos chamar de “história oral preservada por escrito”.

1326) O preconceito de gênero (13.6.2007)


(Raymond Chandler)

Tem certas perguntas que já me preparei para responder pelo resto da vida. Uma delas é: “A ficção científica é sub-literatura?” Troque “ficção científica” por “literatura policial, de terror, etc.” e calcule os milhares de vezes que um sujeito tem que suspirar e puxar do bolso a mesma resposta. Não, não é. Nenhum gênero literário é uma garantia de sub-literatura “a priori”, assim como nenhum deles é garantia de Obra de Arte “a priori”. Um gênero é um conjunto de regras, de convenções formadas espontaneamente pelos que o praticam. Cada obra brota do zero, e o ponto de qualidade que ela vai atingir depende apenas do artista.

Assim como existe o preconceito negativo contra alguns gêneros, existe um “preconceito positivo” com relação a outros. Alguns praticantes do “romance social”, por exemplo, consideram que basta ser um romance “que exprime a realidade social de um país” para que qualquer livro escrito sob essas convenções narrativas seja uma Obra de Arte. Pois não é. Pode ser um livro bem intencionado, cheio de princípios nobres e de disposição para retratar o país, etc.; e com tudo isso pode ser um livro literariamente péssimo. Sub-literatura. Os exemplos são inúmeros.

O erro contra os gêneros (principalmente os que têm popularidade) têm várias razões. Uma delas é a desinformação dos elitistas. Um sujeito elitista é exigentíssimo, não lê qualquer coisa, não escuta qualquer coisa. Com o tempo, vai se parecendo com aquele cientista que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até “saber tudo sobre nada”. Já vi crítico literário dizendo: “Admirável Mundo Novo não é ficção científica, é literatura”. É o mesmo que alguém dizer: “Hamlet não é uma tragédia elizabetana, é uma peça teatral”.

Eu talvez nem devesse dar exemplos com ficção científica, que, bem ou mal, até que não é muito vilipendiada em nosso país. Mas em nossa imprensa temos pelo menos dois termos que equivalem a uma verdadeira maldição, anátema, condenação prévia. São eles “axé music” e “auto-ajuda”. Quando alguém quer recorrer a um exemplo extremo de má qualidade, de banalidade, de ausência de talento, joga um desses termos na mesa e estamos conversados. Não precisa explicar por quê. “Todo mundo sabe” que esses dois rótulos só se referem a coisas que, por definição, não prestam.

O sujeito elitista não ouve axé-music porque parte do princípio de que esse gênero de música é incapaz de produzir uma boa canção. Está errado. O mesmo vale para o livro de auto-ajuda, e para o filme de super-heróis, e para a peça besteirol, e assim por diante. Raymond Chandler dizia que o grande escritor é o que consegue produzir uma grande obra dentro de uma forma pobre ou desgastada. Quanto maiores as limitações do gênero escolhido, maior o mérito do artista e da obra que o elevaram. É como o jogador de futebol que consegue “dar um drible em cima de um lenço”, ou seja, com pouquíssimo espaço disponível.