domingo, 11 de outubro de 2009

1298) Máquina de escrever (11.5.2007)




Daqui a um milhão de anos, os arqueólogos da futura Humanidade estarão desenterrando, junto com ossadas de iguanodontes e crânios de tiranossauros, os arcabouços enferrujados das máquinas de escrever do século 20. Simpósios e mais simpósios serão organizados para discutir qual a serventia que teriam tido aquelas engenhocas tão intrigantes e perturbadoras quanto o Mecanismo de Antikhytera. 

Mal saberão eles que foi em cima dessas barulhentas contrapções que milhões de escritores gemeram, suaram, sofreram, viveram, se desesperaram, atravessaram os sete céus e os sete infernos de que fala o poeta.

Sofrimento de tal ordem que deu origem a um dos clichês cinematográficos mais desgastados em filmes sobre escritores: o cara datilografa, pára, começa de novo, pára, arranca a folha de papel, amassa, joga do outro lado do escritório, bota outra folha, amassa de novo... aí depois de fazer isso algumas vezes se desespera – e arremessa a máquina pela janela! 

Todo filme mostra esse clichê, e eu duvido que na vida real algum escritor já tenha feito isso.

Penso em Jack Kerouac pegando um rolo de papel contínuo com centenas de metros, enfiando a ponta dele na máquina e escrevendo On the Road do início ao fim, ao longo de três semanas, na base do café e da benzedrina, sem precisar trocar de folha. 

E penso em Raymond Chandler aos cinqüenta anos, um executivo desempregado tentando virar escritor, e mandando para a editora manuscritos (ou datiloscritos) em que ele se preocupava em alinhar todas as linhas na margem direita, porque pensava que se não fosse assim o livro poderia ser recusado.

Uns com tanta intimidade, outros com tão pouca. Intimidade com máquina de escrever se conquista aos poucos, através dos olhos, das mãos, dos dedos, ganhando-lhe a confiança e retribuindo-a com carinhos, como dizia Mário de Andrade, ao escrever na máquina uma carta para Manuel Bandeira em 1925: 

“E agora já sabe: quinze minutos que seja de descanso, estou na frente da Manuela batendo tipo sem parar. Manuela é o nome da máquina, por causa de você. Inventei agorinha mesmo isso. Não refleti nem nada: ficou Manuela”. 

Em pleno Modernismo nossos escritores tateavam com timidez no mundo high-tech do teleco-teco do teclado, isso quando Mark Twain já tinha se tornado em 1883 o primeiro autor a submeter um “manuscrito” à editora sob a forma de um texto datilografado (o livro era Life in the Mississipi, e Twain não datilografou ele próprio o texto, pagou alguém para isto).

E não só os escritores devem sua vida a ela; a partir de certa época, também os personagens. 

Já em 1897, Bram Stoker fazia sua personagem Mina Harker, a vítima principal do Conde Drácula, ter à sua disposição uma máquina de escrever onde ela registra em 62 páginas tudo que lhe aconteceu, com todas as informações necessárias para que o Conde seja descoberto, e diz, no Capítulo 26: “Oh, como sou grata ao homem que inventou a máquina de escrever Traveller’s!”



1297) Curso prático de cartomante (10.5.2007)



Como fazem as cartomantes para adivinhar nosso futuro? Ou, mais modernamente: como é que os autores de livros de auto-ajuda são capazes de adivinhar meus problemas e dizer coisas que servem como uma luva para aprumar minha vida? O psicólogo Ray Hyman, colaborador da revista Skeptical Inquirer (citada de vez em quando nesta coluna) resolveu fazer algumas experiências neste campo. Consultou hipnotizadores, lobistas, vendedores-de-enciclopédias a domicílio, publicitários, evangélicos, trambiqueiros profissionais – ou seja, todos os indivíduos que ganham a vida convencendo outras pessoas a fazerem o que é do seu interesse. (E a ambigüidade deste “seu” é proposital).

Hyman descobriu que os clientes desses indivíduos têm uma tendência (que os profissionais logo descobrem, incrementam e manipulam) a perceber mais significado numa situação do que de fato existe. Diante de frases aleatórias, essas pessoas projetam nelas suas próprias dúvidas e seus desejos, e encontram um sentido pessoal naquilo que foi dito. Disse Hyman: “Para conquistar a simpatia de uma pessoa basta dizer-lhe o que ela quer ouvir. Ela quer ouvir coisas a respeito de si mesma. Então, fale sobre ela mesma. Mas nunca lhe diga a verdade. Diga o que ela gostaria que fosse verdade”.

Uma das técnicas que Hyman aprendeu com seus consultores foi o que ele chama de “fishing”, “pescar”, e consiste em fazer com que o cliente fale bastante sobre si mesmo, e depois dizer-lhe a mesma coisa de volta, só que com outras palavras. Na maior parte dos casos, o sujeito não percebe. Outros conselhos: sempre dê a impressão de saber mais do que de fato sabe; não tenha medo de elogiar o cliente sempre que houver uma chance.

Hyman dedicou-se por algum tempo à leitura de mãos: pedia para ver a palma da mão de alguém e começava a dizer o que achava que aquela pessoa queria ouvir. O sucesso era imediato. A coisa chegou a um ponto em que ele começou a acreditar que tinha de fato poderes de adivinhação extra-sensorial. Para fazer um teste, começou a dizer exatamente o contrário do que as “palmas” pareciam dizer-lhe – e percebeu que as pessoas continuavam acreditando em tudo!

O que isto nos diz sobre a natureza humana é, em princípio, meio deprimente. Diz que somos crédulos, bobos, inseguros, e que qualquer pessoa perceptiva e pouco escrupulosa é capaz de nos levar na lábia, simplesmente através da adulação com ar professoral. (Grandes políticos e grandes “Don Juans” fazem isto pela vida afora.) Por outro lado, talvez nos diga algo de bom. Diz que acreditamos em nós mesmos; que procuramos sempre o melhor; que somos capazes de usar meia-hora de papo furado de um desconhecido como uma mola propulsora do nosso entusiasmo, de nossa vontade de fazer com que as coisas dêem certo. No dia em que uma cartomante me disser que eu vou fazer uma grande viagem e eu finalmente criar coragem e for conhecer o Japão, como posso me queixar dessa sábia madame?

1296) Cultura informal (9.5.2007)



Debate-se em todo lugar a Cultura Erudita e a Cultura Popular, mas existe uma outra dicotomia que não vejo discutir, e que em muitos pontos coincide com essa, sem ser a mesma coisa. Eu chamaria a essas categorias Cultura Formal e Cultura Informal. Não é a mesma coisa que Erudito x Popular, e acho que pode ser mais bem compreendida se fizermos um paralelo com a Economia.

Chamamos de Economia Informal a toda essa atividade econômica que toma conta de nossas ruas: camelôs, vendedores ambulantes, etc. É chamada de informal porque vive à margem dos registros, dos controles e da fiscalização do Estado. Quem a pratica não tira documentos, não requer alvará, não emite nota fiscal, não assina carteira dos empregados, não transaciona através de uma conta bancária da “firma”. Dinheiro entra e dinheiro sai; mercadoria vem e mercadoria vai; e o governo não vê nada e não recebe um ceitil. Grande parte dos brasileiros prefere trabalhar assim. Num país de impostos tão múltiplos e escorchantes, e de tantos exemplos de como gastar mal o dinheiro público, até lhes dou razão.

Passemos para a Cultura Informal. Não sei se podemos traçar uma linha nítida separando-a da Cultura Formal, porque é mais uma questão de grau do que de sim ou não. Mas podemos tentativamente estabelecer que a Cultura Formal é aquela que se cria, se discute, se processa e se consome dentro dos meios oficiais, que são os do Estado e os do Mercado. Os meios oficiais do Estado são as universidades, as academias de letras, os conservatórios, as galerias e escolas de Belas Artes, as escolas e grupos de teatro com apoio oficial, etc. Os meios do Mercado são as editoras e livrarias, o circuito teatral e musical (casas de shows, etc.), todos os espaços onde se produza cultura e exista não apenas uma vigilância fiscal do estado (cobrança de taxas, necessidade de autorização, etc.) como também exista uma espécie de consenso de que é naquele espaço e naquela atividade que acontece a verdadeira cultura, e lá é possível ser um artista profissional.

A Cultura Informal, por outro lado, é o borbulhante caldo amadorístico que precede todo esse profissionalismo. Ela envolve toda a atividade cultural em que circula pouco ou nenhum dinheiro; em que as pessoas agem motivadas pelo entusiasmo próprio, sem que ninguém as contrate ou as obrigue; onde as obras são produzidas e circuladas pessoa-a-pessoa, sem intermediários e sem cobertura da imprensa. Grande parte da cultura popular ou folclórica ocorre nesta faixa, mas as duas não são sinônimas: as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, por exemplo, já pertencem à Cultura Formal, enquanto que recitais poéticos e happenings musicais da Zona Sul carioca são praticados por jovens de classe alta, mas tão tipicamente exemplos de Cultura Informal. Seria útil traçar o perfil de uma e de outra, pesar as vantagens de uma e de outra, para que soubéssemos quando seria mais conveniente fazer parte de uma ou da outra.