sexta-feira, 11 de setembro de 2009

1258) Resistência Cultural (25.3.2007)




(Monteiro Lobato)


Às vezes me acontece estar numa mesa-redonda ou coisa parecida e alguém me apresentar assim: “E agora vamos passar a palavra a Braulio Tavares, escritor, compositor, um batalhador da resistência cultural nordestina”. Sei que é um elogio, e que se aplica a mim, até certo ponto; mas gostaria de ir agora um pouco além deste “certo ponto”.

“Resistência” lembra a Resistência Francesa, do tempo da ocupação da França pelos nazistas, na II Guerra Mundial. Indivíduos heróicos, agindo na clandestinidade, lutando contra um ocupante poderoso e bem armado, mas conseguindo atingi-lo de vez em quando por meio de táticas de guerrilha. Lembra também a luta atual de alguns grupos de iraquianos contra a presença do exército americano no país. (Nem todos, é claro. Grande parte não passa de gangues religiosas aproveitando o caos da guerra para liquidar os membros das gangues rivais.) A “resistência” é um movimento que cerra fileiras em torno de um território qualquer que está sendo invadido, e tentar rechaçar esta invasão.

Até aí, tudo bem. Se o nosso time está sendo atacado, precisamos de uma zaga eficiente. A questão é que, quando se trata de cultura nordestina, precisamos de muito mais do que meia-dúzia de zagueiros e volantes rebatendo bolas para a lateral. Precisamos de um meio-de-campo que receba essas bolas e as repasse para um ataque. Ou seja: não basta resistir ao lixo cultural que vem de fora, precisamos exportar o nosso Não-Lixo cultural, invadir os espaços alheios, proclamar a alta qualidade do que fazemos. A melhor defesa é o ataque.

Caetano Veloso, numa canção famosa, disse: “Sejamos imperialistas!” Como tudo que o baiano diz, tem uma ambigüidade crítica muito útil. Criticamos o imperialismo cultural que quer invadir nossa cultura, mas precisamos reconhecer que, se tivéssemos o mesmo poderio econômico deles, faríamos a mesma coisa. Então, tentemos fazê-la mesmo sem ter esse poderio. Sejamos imperialistas. Vamos fazer os filmes de Vladimir Carvalho passarem nos shoppings da Califórnia, vamos promover tributos a Jackson do Pandeiro em Paris, vamos obrigar “The New Yorker” a dar matéria de capa sobre Augusto dos Anjos. Como? Não sei, mas se a Bahia e Pernambuco fazem isso com seus figurões, então não é impossível fazê-lo.

Monteiro Lobato também afirmou: "Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir". Lembro isto porque falar apenas de “resistência” acaba tendo uma conotação imobilista, conservadora. Temos que resistir às mudanças impostas de fora, e nesse impulso acabamos resistindo a qualquer mudança, acabamos imobilizando e fossilizando nossa própria cultura. Mas se somos um exército que invade o território alheio não podemos ficar imóveis, temos que nos expor ao imprevisível, ao imponderável, temos que nos adaptar, nos modificar, se quisermos sobreviver. A melhor maneira de resistir à expansão alheia é expandir-se.

1257) É proibido proibir (24.3.2007)



Entre as pichações de paredes de maio de 1968, no movimento estudantil-operário que botou Paris de pernas para o ar, uma das mais famosas é: “É proibido proibir”. Ela deu origem a uma canção de Caetano Veloso (“A mãe da virgem diz que não... e o anúncio da televisão...”) que levou uma tremenda vaia num festival de TV, não por causa da música em si, mas porque Caetano inventou de interpretá-la no palco vestindo roupas de plástico e acompanhado pelas guitarras elétricas que na época estavam provocando uma polêmica interminável na MPB. Reza a lenda que foi Guilherme Araújo, espertíssimo farejador de modismos (que faleceu dias atrás), quem praticamente obrigou Caetano a compor uma música usando este slogan, que, ele previa, ia pegar mais do que chiclete em cadeira de cinema.

Já vi muita gente questionando esta frase. Um professor de Lógica Formal tentou me demonstrar o quanto ela é absurda, visto ser uma frase que nega a si mesma num “loop” recursivo, equivalente ao de “Esta frase é uma mentira”. Ariano Suassuna se insurgiu, em mais de uma aula-espetáculo, contra a permissividade moral que ela implica: “Então quer dizer que se um sujeito quiser estuprar e matar uma criança nós não podemos proibi-lo? Eu, hein!” Um amigo meu, com vocação para professor de Melancolia, afirmou: “Dizem isto porque têm vinte anos e são radicais. Quando tiverem quarenta, dirão que É Coibido Coibir”.

Eu vejo a frase de um modo diferente. Levá-la ao pé da letra, claro, nem pensar. O verdadeiro libertário é contra as proibições, mas sabe que alguma coisa pode ser proibida. O que a frase significava para os rapazes e moças daquele tempo era “Você não pode me proibir todas essas coisas que vive me proibindo”. O “você” em alguns casos eram os pais, em outros casos o governo, e por extensão quem quer que tentasse nos impor uma proibição que sabíamos injusta. Não só injusta como eticamente comprometida. Pais que enchiam diariamente a cara de uísque proibiam os filhos de beber ou de experimentar maconha. A frase tinha então como subtexto: “Você não pode me proibir uma coisa que permite a si mesmo”. Claro que mesmo assim o pai poderia ter seus argumentos para justificar a proibição, mas naquele tempo a maioria dos pais não argumentava com os filhos. “Tá proibido e tamos conversados”. Se o filho recalcitrasse, tome bofete. Por isto, haja barricada nos bulevares, haja carro incendiado e paralelepípedo na testa dos gendarmes.

“É proibido proibir” é uma dessas frases que não exprimem uma verdade lógica. Exprime o dilaceramento emocional de quem experimenta uma situação-limite da qual só consegue se evadir pela ruptura de conceitos, pelo estilhaçamento da razão, pela violentação da lógica, pela afirmação paradoxal e contraditória de uma coisa impossível. Uma afirmação que traz em si uma crispação emocional de revolta e inconformismo, imediatamente reconhecível a quem já tenha se sentido vítima de uma injustiça.

1256) Ern Malley (23.3.2007)



Desde que assisti Verdades e Mentiras de Orson Welles (“F for Fake”), há quase trinta anos, passei a encarar de maneira diferente o falsificador de obras de arte. Ele difere do mero plagiário (que tenta fazer passar como sua a obra de alguém) ou o copista (que reproduz um quadro alheio e tenta vendê-lo como original). Naquele filme, Welles nos apresentava Elmyr de Hory, um sujeito capaz de pintar um Modigliani inexistente tão bem quanto Modigliani o teria feito. Isto é crime? É arte? É metacrítica? Cartas para a redação.

A fraude literária é um capítulo desse fascinante romance. Ela ocorre quando alguém inventa um autor inexistente, escreve obras e as divulga, atribuindo-as ao “fantasma”. Um caso famoso ocorreu na Austrália em 1943, em torno do escritor imaginário Ern Malley. Um belo dia, o editor da revista literária “Angry Penguins” recebeu alguns poemas enviados por uma leitora. Os poemas, meio vanguardistas, tinham sido escritos pelo irmão dela, falecido aos 25 anos. Max Harris, o editor, adorou os poemas e fez com eles uma edição especial da revista. Acabou sendo processado e preso porque alguns poemas tinham conteúdo obsceno. Mas o pior foi quando descobriu que “Ern Malley”, o falecido poeta, não existia, bem como sua “irmã”. Tudo era uma fraude concebida por dois desafetos literários seus, James McAuley e Harold Stewart.

Li uma resenha do livro (The Ern Malley Affair, de Michael Heyward) em que o episódio é reconstituído. É uma história de fofocas e picuinhas, típica da feira de vaidades que cerca a Poesia, país onde não circula dinheiro e onde a única moeda é o prestígio. Ou talvez fosse melhor dizer que a Poesia é um país onde não há dinheiro e cada poema é um cheque, que vale pela assinatura de quem o oferece. Cabe ao interlocutor decidir, pela assinatura, se o cara tem saldo na conta ou não.

Alguns episódios colaterais do caso são instrutivos. Numa universidade um professor de literatura colocou, lado a lado, um poema de “Ern Malley” e um do respeitado poeta inglês Geoffrey Hill, perguntando qual dos dois era a fraude. Deu meio a meio. Outro aspecto interessante destacado na resenha é que o livro de Hayward traz longos relatos das discussões, no tribunal, em que respeitáveis juristas analisavam os poemas de “Ern Malley” para que a Corte decidisse se eram obscenos ou não, e se eram autênticos ou não. Segundo o resenhador, “é uma redução-ao-absurdo da desconstrução literária”. Fiquei com vontade de encomendar o livro só para ler esta parte.

Quem decide se um verso é Poesia ou não? Se um verso de alguém é atribuído a outra pessoa isto pode torná-lo melhor, ou pior? Qual é a diferença entre uma fraude e um heterônimo? Um verso medíocre pode ser lido diferentemente, se descobrirmos que foi Drummond quem o escreveu? O monólogo de Hamlet torna-se literariamente inferior quando descobrimos que quem o escreveu foi um tal de Shakespeare? Cartas para a redação.

1255) “Menino de Engenho” (22.3.2007)



Menino de Engenho é o romance rural que me revelou, como a muitos brasileiros urbanóides, o cheiro doce-azedo dos canaviais, os bois mortos descendo na enxurrada da cheia, o estralejar do fogo nas taquaras, a senzala abafadiça com suas avós centenárias, o carneirinho arreado e selado para o sinhôzinho cavalgar, o escravo gemendo no tronco, Antonio Silvino de pé no terreiro com o bando perfilado às suas costas, as crueldades e as doçuras das sinhás da Casa Grande, as safadezas dos meninos com as negrotas pelo meio do mato. Devemos lembrar, também, que a adaptação de Walter Lima Jr. foi um dos filmes mais equilibrados e autênticos do Cinema Novo, e só não foi mais valorizado na época porque não era um filme sobre a Revolução, sobre o levante armado dos camponeses, e não se parecia em nada com o cinema de vanguarda europeu. (Na melhor das hipóteses, parecia um roteiro memorialista de Fellini filmado por Kurosawa.)

Dizem os críticos que quem revolucionou a cabeça do jornalista Zé Lins foi seu encontro com Gilberto Freyre. Este o convenceu de que era possível fazer romance sem pensar na literatura européia, usando apenas duas armas: a língua brasileira e a vida brasileira. Bastava isto para criar uma Literatura, e o romance regionalista da década de 1930 foi a melhor prova. Muita gente achou, depois do sucesso de Zé Lins, que tinha de escrever como ele e tinha que recordar coisas parecidas com as que ele recordava. Equívoco mais comum do que se pensa. Hoje está cheio de gente achando que para ser bom escritor tem que escrever como Jorge Luís Borges ou Guimarães Rosa. Zé Lins descobriu que já tinha em si todo o necessário para fazer grande literatura, que bastava olhar para dentro e narrar para fora. Daí em diante, foi um livro por ano, cada qual melhor do que o outro. Pelo menos metade de sua longa obra é de nível muito alto, ainda hoje.

Menino de Engenho, curiosamente, começa com uma cena de melodrama urbano (marido ciumento mata a mulher a tiros) e esta tragédia não tem prosseguimento na narrativa. O filho único é mandado para morar com o avô, e aos poucos ficamos sabendo que o pai era mentalmente instável e estava agora num manicômio. Como é de se esperar, ninguém fala as coisas às claras para o menino, e toda sua infância se passa cobrindo com camadas e mais camadas de experiências novas e explicações novas este fato central misterioso, cuja única justificativa é mais misteriosa ainda: a Loucura.

Não fosse esse núcleo doloroso, Menino de Engenho talvez fosse apenas um romance bucólico de exaltação às simplicidades e encantos do mundo rural. Do jeito que é, é uma história sofrida, onde cada experiência nova faz atrito na sensibilidade exposta do garoto, que tem um olho infalível para as violências, as crueldades, as coisas que ninguém explica. É um narrador de romance psicológico contracenando com personagens e ambientes de um romance de costumes regionalistas