quarta-feira, 22 de julho de 2009

1169) Leia Fulano (12.12.2006)





(biblioteca da Universidade de Coimbra)

Esta é uma das frases mais úteis e mais perigosas que a gente escuta na vida, principalmente quando é jovem. 

A gente está discutindo um assunto qualquer e aí um sujeito mais velho e mais bem informado diz: “Ah, você nunca leu Fulano de Tal? Precisa ler. Tem tudo a ver com isso que você está dizendo”. 

Aluno relapso no colégio, sempre fui bom estudante fora dele, e quando ouvia algo assim corria para a biblioteca mais próxima. Claro que esse procedimento me trouxe revelações e decepções em igual medida. Recomendar autores é sempre um tiro no escuro. A gente nunca pode garantir que a reação química necessária vai acontecer – mas afinal, não custa nada.

Recomendações ao contrário (“Não leia!”) também têm peso, e às vezes podem nos trazer prejuízos. Quando eu tinha 21 anos, conversando sobre psicologia com meu guru João Bigode, ele se saiu com esta pérola: “Politicamente, Freud é o centro na psicologia, sendo que Reich é a esquerda e Jung a direita”. 

Não sei se João ainda assinaria embaixo desta fórmula tão audaciosa, mas ela despertou meu interesse por Wilhelm Reich, que aliás nunca consegui ler, devido ao seu estilo invulnerável. Foram precisos quase dez anos para que eu aceitasse abrir um livro de Jung, e depois que comecei não parei mais. Será que sou de direita?

O problema das recomendações é que elas são feitas na direção errada. Devemos recomendar aos amigos o extremo oposto do que eles são, para injetar um pouco de equilíbrio em suas vidas. 

Se você tem um amigo que é tímido e moralista, não lhe deve aconselhar Jacques Maritain, e sim Henry Miller. Se você conhece uma moça pragmática, dedicada aos aspectos políticos-ideológicos da vida, nada de Simone de Beauvoir; dê-lhe as contemplativas como Cecília Meireles ou Emily Dickinson. Ajuda a ampliar-nos os horizontes, a não afundar na mesmice.

“Leia Fulano de Tal!” Nunca vamos saber se aquilo vai ser útil ao nosso interlocutor. 

Tenho amigos que leram Charles Bukowski e levaram uma década para recompor o fígado e retomar uma vida normal. O contato precoce com os estruturalistas franceses é decerto responsável pela epidemia de opacidade que se alastrou na vida acadêmica brasileira nas últimas décadas. 

Alguns autores de estilo marcante grudam-se a nossa mente e é quase impossível livrar-nos deles: Fernando Pessoa e Clarice Lispector são dois exemplos notórios, que retornam para malassombrar as novas gerações, de dez em dez anos. Quando vejo alguém invadido por estes espíritos, recomendo doses maciças de Brecht e Hemingway.

Temos que escolher autores e livros baseados na confiança no poder terapêutico do Acaso, nos relâmpagos instintivos que nos sussurram palpites, e nas cadeias de associações de idéias que são a química profunda da Cultura. Portanto, não me peçam recomendações. O remédio que cura meus achaques pode lhes provocar crise alérgica. O acepipe que me deleita o paladar pode ser-lhes um bate-entope intragável.


1168) A arte de ler nuvens (10.12.2006)




A natureza da imagem cinematográfica é uma coisa engraçada. O que é aquilo? Uma superfície branca, boa de reflexo, chamada tela. Imagens semi-transparentes são projetadas ali para que as vejamos de uma certa distância. E essas imagens conseguem criar, assim como as camadas de tinta de uma pintura convencional, a ilusão de profundidade, de espaço, da presença de coisas. E da passagem do tempo.

O crítico Andrew Sarris resume assim o cinema: “A grande arte do cinema consiste em relacionar o que é mostrado com o que não é mostrado, e em definir essências a partir de superfícies”. 

Neste aspecto, o estudo do cinema não se distingue muito do estudo da fotografia. Ensaios de pessoas como Roland Barthes (A Câmara Clara) e Susan Sontag (Sobre Fotografia) mostram o quanto é possível a mente do sujeito viajar pelos quatro cantos do mundo e pelos labirintos da psicologia e da cultura tendo como ponto de partida apenas algumas manchas pretas e brancas sobre um pedaço de papel. Superfícies.

Ver cinema ou fotografia exige algo da argúcia de Sherlock Holmes. Holmes olha para um cliente desconhecido que acabou de entrar em seu apartamento e diz: “Boa tarde, Sr. Smith, o que o traz aqui? Nada sei sobre o sr., a não ser que é maçom, canhoto, ex-oficial da Marinha, viúvo, tem um casal de filhos, e que a janela do seu quarto dá para o nascente”. 

A meia página seguinte é dedicada a justificar estas observações a partir dos indícios de vestuário, aparência, pacotes que o Sr. Smith carrega, etc. Este espírito dedutivo está presente em parte no espectador de cinema, com o qual o diretor estabelece um diálogo de pistas e indicações.

Percebemos melhor esses processo quando o vemos diluído em clichê. Um sujeito apressado fala ao telefone. Sai, bate a porta. Zoom da câmara sobre um chaveiro esquecido sobre a mesa. O espectador entende que o cara bateu a porta por fora e não vai conseguir entrar. 

Recados narrativos são dados o tempo inteiro pelo filme, e o espectador, desde criança, vai aprendendo a somar dois mais dois.

Mas o que dizer dos recados não-narrativos, das imagens que o diretor filma porque o impressionam sem que ele saiba por quê? No cinemão industrial isso não é muito freqüente, porque os roteiros passam por uma bateria de gente que dá palpite, faz perguntas... Imagens duvidosas são sumariamente cortadas: “Se você não sabe por que ela está ali, como espera que o público adivinhe?” 

E no entanto filmar cinema devia ser algo como filmar nuvens em movimento, acompanhando o modo como elas de transformam , e tentar influir nessas transformações. Ver cinema seria uma arte parecida com a arte de ver nuvens, achá-las parecidas com uma letra, com um castelo, com uma barba. 

Como acontece com certos filmes de Raul Ruiz ou de David Lynch, que parecem uma coleção de imagens que o diretor trouxe para nos mostrar: “Eu achei isto aqui mas não sei o que é. O que você acha?”






1167) O poeta de cinco anos (9.12.2006)



Um garoto carioca entrou em 2003 para o “Livro Guiness dos Recordes” como o mais jovem escritor editado em todo o mundo. Seu nome é Matheus de Souza Barra Teixeira, mora no Rio de Janeiro, e sua façanha foi publicar o livro “A Ilha dos Dragões” aos cinco anos de idade, quando ainda não sabia ler nem escrever. O esperto Matheus contou a história em voz alta enquanto tomava banho. Sua mãe gravou tudo, pôs no papel e mandou para a editora.

Ah, ia me esquecendo: Matheus é bisneto da poetisa Cecília Meireles, e sua mãe, Vânia Barra, trabalha como agente literária. O que talvez explique tanto o talento quanto a publicação. No caso de Matheus, existe a consciência de uma linhagem familiar, a compreensível expectativa de que algo das habilidades da bisavó se manifestem na criança. E existe a convicção de que, no momento em que isto aconteça, a imprensa terá um ótimo “gancho” para noticiar o fato.

Não li o livro do menino e não estou aqui para botar defeito, até porque já vi histórias ótimas criadas de improviso por garotos dessa idade. O que não vejo com bons olhos é essa besteira de “entrar para o Guiness”. Pelo menos o menino o fez através de uma atividade interessante, e não com uma idiotice como “o cara que comeu mais repolhos pendurado de cabeça para baixo” ou “a mulher que repetiu a mesma palavra 100 mil vezes sem parar para dormir ou para comer”. O Guiness era de início um divertido registro de coisas fora do comum. Hoje em dia virou um manual de estímulo à insensatez quantitativa.

O caso de Matheus lembra a francesa Minou Drouet, que aos sete anos publicou um livro de versos. Os críticos se dividiram. Uns anunciavam que havia surgido “um Mozart da poesia”. Outros diziam que os poemas não eram escritos pela garota, e sim por sua mãe. Outros, por fim, diziam apenas que os poemas não eram bons. Jean Cocteau, com sua ironia peculiar, afirmou que “todas as crianças são gênios, menos Minou Drouet”.

Temos crianças-prodígio na música, como Mozart e tantos outros; também na matemática, como Gauss e tantos outros. E nenhum na literatura. Fiquei agora uns quinze minutos remexendo nas poeiras da memória em busca de uma criança que publicou um livro notável com menos de dez anos, e só me veio à cabeça Minou Drouet. Será que escrever um romance é mais difícil do que redescobrir sozinho as proposições geométricas de Euclides, como fez Pascal na infância? Talvez a matemática seja um sistema ordenado e infalível no qual basta aplicar as regras e ousar imaginar variações. Músicos e matemáticos têm, ao fim e ao cabo, o mesmo tipo de talento, que uns manifestam em forma de combinações sonoras e os outros em forma de cálculos abstratos. Mas um romance requer algo mais. Requer conhecimento em-360-graus da vida e do mundo, requer estrada, requer experiência, requer conhecimento de como as pessoas são e pensam – e isso uma criança não tem como compreender.

1166) As doenças do espírito (8.12.2006)


(Dogville)

Li em algum lugar que a Arte é um remédio contra os males do espírito, um bálsamo que corrige nossa visão do mundo e nos reconcilia com a harmonia do Universo. Talvez esta visão um tanto idealista, dos tempos da Antiguidade, tenha dado origem à idéia moderna de que cabe à obra de arte “mudar o mundo”, corrigir problemas sociais, etc. Praticamente todo o cinema engajado tem esta ansiedade: a de ser um remédio, propor uma solução, deflagrar um processo de cura. Os clássicos do cinema político partem todos desta intenção: La hora de los hornos de Solanas (1968), A batalha da Argélia de Gillo Pontecorvo (1966), La vie est à nous de Jean Renoir (1936), Deus e o diabo de Glauber (1964), Z de Costa-Gavras (1969), A chinesa de Godard (1967), The Day After de Nicholas Meyer (1983), Fahrenheit 9/11 de Michael Moore...

Na verdade, por mais que alguns destes filmes tentem ser uma resposta clara e nítida às questões políticas da época, existe neles muito mais um teor de diagnóstico do que propriamente de remédio. Por mais que o cinema político tente oferecer soluções, predomina nele aquela atitude de “não sei o que quero, mas sei o que não quero”. E na verdade é muito mais fácil mostrar os erros e as barbaridades do capitalismo selvagem e das ditaduras militares do que fazer uma proposta nítida, viável, de uma sociedade que substitua este sistema e que resolva de maneira satisfatória os problemas que ele não resolveu.

O filme político funciona muito mais como diagnóstico do que como remédio, e na verdade funciona mais como sintoma do que como diagnóstico. Claro que numa situação de crise todas as manifestações externas, sem exceção, valem como sintoma, mas temos de reconhecer que algumas obras, mais do que outras, fazem aflorar o espírito do tempo, no que este tem de melhor ou pior, de mais urgente e irreprimível, de mais característico daquele instante. Para a leitura sagaz e sherlockiana de um crítico marxista-estruturalista francês, um filme de Xuxa ou de Walt Disney é um sintoma político tão revelador quanto um filme de Godard; mas mesmo sem ir a este extremo de clarividência, vamos admitir que filmes marcantes são aqueles em que as questões cruciais de um momento vêem-se refletidas pela primeira vez, ou de uma maneira inédita, reveladora.

O filme político, aquele que tem uma agenda ideológica clara, pode ser um sintoma assim, mas não necessariamente, porque é um filme que já nasce numa atitude de defesa, de prever questionamentos e antecipar-se a eles com argumentos. Grande filmes políticos como sintomas de uma época geralmente são feitos por cineastas que estão mergulhados nas contradições dessa época, que agem como cúmplices dela, e ao mesmo tempo a denunciam. Não são uma cirurgia a laser, invasiva, curadora; são uma chapa de Raios-X. Um notável filme político atual é Dogville de Lars von Trier, em cartaz no Cine Banguê.

1165) O Mostrador de Sombras (7.12.2006)





Existe algo de inesgotavelmente fascinante no cinema fantástico em preto-e-branco feito entre as décadas de 1910 e 1920. Os teóricos do cinema antigo estavam certos quando diziam que o cinema em preto-e-branco era mais verdadeiro do que o cinema a cores. 

“Como?!”, perguntarão os Observacionistas, aquele que se limitam a constatar o imediato; “o mundo é colorido!” Para estes, o cinema preto-e-branco é menos realista porque é um Aquém, é algo que não conseguiu chegar a um ponto qualquer; ficou faltando. Eu poderia inventar um grupo oposto, os Megafísicos, para os quais o cinema mudo era um Mais Além, uma forma de ir direto à Essência das Coisas, desprezando (por uma bendita limitação técnica) características secundárias como o Som e a Cor.

O P&B é mais realista porque é mais completo: além de mostrar “o mundo de fora” transmite melhor o caráter meio onírico, meio alucinatório da experiência cinematográfica. 

Vi há pouco uma citação de D. G. Winston onde ele se refere a esta experiência como equivalente a pensamentos “que não surgem desde logo em nossa mente em forma de palavras, e que elas, portanto, não podem expressar adequadamente; pensamentos que é mais fácil para nós associar à cor, à composição e ao sentimento do que à sintaxe e à lógica”. Claro que onde ele diz “cor” podemos entender também as infinitas nuances de cinza do filme em P&B. 

Em todo caso, o crítico aponta para algo que acho importante: o caráter não-verbal da lógica cinematográfica, que muitas vezes deixamos de perceber porque a imensa maioria dos filmes que vemos é de natureza narrativa, e portanto atrelados à lógica verbal narrativa. Isso nos faz esquecer que as imagens podem se associar não pela lógica, mas pela combinação meio aleatória de tonalidades, de formas luminosas ou de movimentos. Uma narrativa abstrata feita com imagens figurativas, por assim dizer.

Já em 1916, o teórico Hugo Münsterberg dizia algo parecido: 

“O drama cinematográfico nos conta uma história humana suplantando as formas do mundo exterior, ou seja, espaço, tempo e causalidade, e ajustando os acontecimentos às formas do mundo interior, ou seja, atenção, memória, imaginação e emoção”. 

O diretor sente-se à vontade para romper com a lógica de espaço, tempo e causalidade, se isto servir à sua imaginação, ou para estabelecer uma relação de memória, e assim por diante.

A imagem cinematográfica fascinou estes teóricos dos primórdios do cinema pela fluidez com que se deixava manipular, seja no interior do quadro (pela luz, enquadramento, movimento dos atores ou da câmara, etc.) seja no próprio transcurso da sucessão de planos, através da montagem. 

Talvez somente hoje, com a extrema maleabilidade que a informação digital nos proporciona, estejamos vivendo um momento tão rico de possibilidades para a manipulação de imagens quanto o momento que foi vivido nos anos 1910-1920 por Griffith, Eisenstein, Dreyer, Fritz Lang e outros mestres do Primeiro Cinema.