quarta-feira, 24 de junho de 2009

1124) “Sabrina” (21.10.2006)



Revi na TV esta comédia romântica de Billy Wilder. Lembrou-me certos folhetos de cordel em que a gente não bota muita fé porque já conhece a história, mas quando lê concorda que a leitura vale a pena pelo sabor do estilo e dos detalhes. Sabrina (1954) é um dos primeiros filmes que me lembro de ter visto, talvez com 6 ou 7 anos, e dele só recordava uma cena: um personagem senta sobre duas taças de champanhe, e depois um médico tem que extrair os cacos de vidro de suas nádegas. Criança esquece bailes, automóveis, mansões, brigas de socos, esquece até os movimentos dos olhos de Audrey Hepburn, mas não esquece uma cena assim.

Wilder conta sua Cinderela em celulóide com sutileza quase invisível. Ele usa o tempo todo, por exemplo, o tema visual da “barreira” entre os personagens. É a namorada de David (William Holden) pedindo-lhe (na quadra de tênis coberta) que se mantenha do outro lado da rede (e ele desobedecendo). É o plástico indestrutível em que Linus (Humphrey Bogart) aposta todas as fichas de sua corporação. São as sucessivas portas corrediças que é preciso transpor para entrar no escritório de Linus. É o diálogo entre este e o motorista, que lhe diz: “A sociedade é como uma limusine. Estão todos viajando juntos, mas existe o banco da frente, o banco de trás, e uma janela separando os dois”.

Diálogos são sempre uma das melhores coisas num filme de Wilder. Neste caso, não há como saber o que ele aproveitou da peça teatral em que o roteiro se baseia, mas, autoria à parte, não há como resistir a frases como “Democracia é uma coisa muito injusta... Nenhum pobre já foi chamado de democrático porque casou com um rico”.

Hoje, 50 anos depois, o presente modifica o Passado. Vemos com outros olhos Linus afirmar que só conhece Paris por ter feito lá uma conexão de vôo “porque estava indo fechar um negócio de petróleo no Iraque”. Ou quando ele e Sabrina passeiam de barco ouvindo a canção “Oh, yes, we have no bananas / we have no bananas today...” (de Frank Silver e Irving Cohn, 1923), que parece ter dado origem à marcha de Braguinha e Alberto Ribeiro, “Yes, nós temos bananas” (1937).

Como todas as comédias românticas, Sabrina tem a ausência de livre-arbítrio de uma tragédia grega. Mal os personagens são introduzidos percebemos que mesmo apaixonada por David, que é bonitão e galinha, Sabrina está destinada aos braços de Linus – workaholic, ensimesmado e carente. Há uma cena ótima, quando ela percebe estar-se apaixonando por Linus, em que David fica papagueando bobagens e ela pedindo: “David... me abrace... me abrace...” Lembra o diálogo em Os Brutos Também Amam, quando a esposa de Van Heflin, perturbada pela presença de Shane, pede com desespero ao marido: “Joe... abraça-me forte...” As histórias de amor de Hollywood são um pesado mecanismo de engrenagens de ferro, cujas intenções, depois que elas são postas em movimento, as personagens femininas são sempre as primeiras a vislumbrar.

1123) “Confidencial” (20.10.2006)



Recebo pelo Correio o livro
Confidencial, em que Chico Maria reúne algumas das entrevistas de maior repercussão feitas em seu programa homônimo na TV Borborema. 

Ali estão, confrontando-se com as perguntas firmes e implacáveis do entrevistador, figuras como Dom Hélder Câmara, Fernando Collor (na época, governador de Alagoas), Pelé, Ariano Suassuna, Leonardo Boff, Marcos Freire, Divaldo Franco, Luís Carlos Prestes, Fernando Ramos “Pixote” e Gregório Bezerra. 

Todo o material do livro é precioso, embora ele nos deixe com o apetite aguçado por muito mais. Não sei durante quanto tempo o “Confidencial” foi ao ar, mas foram certamente dezenas de entrevistas contundentes, respeitosas, emocionadas, polêmicas. A seleção feita para este livro traz nomes de expressão nacional: líderes políticos e religiosos, escritores, um ator, um esportista. Mas os arquivos do programa talvez tenham muito mais balas na agulha. 

Na época do “Confidencial” eu já não morava mais em Campina, mas vinha com freqüência. Almoçava vendo as entrevistas de Chico Maria, sem perder um respiro; e Campina inteira parava, para ouvi-lo perguntar a Prestes por que ele apertara a mão de Getúlio Vargas, o homem que entregou sua esposa Olga Benário para ser morta por Hitler. 

Parava (como lembra o mestre Gonzaga Rodrigues, no prefácio) para ouvi-lo perguntar ao ex-prefeito Plínio Lemos: “Por que o sr. mandou matar Félix Araújo?” Como lembra Paulo Maia num dos posfácios, Chico perguntava “cordialmente, mas sem perdão”. 

Num terreno minado como o da política nordestina, ele abria o telefone para que o público perguntasse, e não permitia a edição do programa, que ia ao ar inteiro. 

Jornalistas sérios buscam evitar duas armadilhas opostas: ser o entrevistador obsequioso (ou previamente cooptado) que apenas levanta a bola para o entrevistado cortar, ou o entrevistador mal-intencionado que vasculha a vida do convidado para expô-lo ao ridículo ou ao constrangimento diante das câmaras, não porque a vítima mereça, mas para que ele, o entrevistador, possa sair se gabando e valorizar o próprio passe. 

Entre estes extremos marrons, o jornalismo balança. Uma vez fui convidado por Chico para uma entrevista no “Confidencial”. Confesso hoje que fui morrendo de medo. Não sabia o que esperar. Imaginava Chico perguntando: “É verdade que você compõe suas músicas imitando Bob Dylan?” E eu responderia: “Sabe, Chico, não se trata propriamente de imitação, é uma espécie de paráfrase meta-estrutural...” Mas não sei se ia colar. 

No “Confidencial”, em plena ditadura, Chico Maria fazia, de maneira respeitosa mas firme, a pergunta que todo mundo tinha vontade de fazer mas não tinha coragem. Mais fácil do que fazer a pergunta é inventar uma resposta (à revelia do entrevistado) e sair espalhando-a por aí. O “Confidencial” era o contrário do que seu nome sugeria: uma discussão pública e aberta, num tempo em que a mentira e a fofoca anônima reinavam no país.





1122) Aparelhos de Aparência Suspeita (19.10.2006)




Já que o terrorismo veio para ficar, amigos, relaxemos e divirtamo-nos. 

Esta semana vi no saite “BoingBoing” (uma das minhas fontes mais freqüentes de informação, como os leitores-de-caneta-em-punho devem saber) outra das conseqüências menos trágicas (mas igualmente reveladoras) da nossa nova condição. 

Quem quiser conferir, dê um pulo no saite original: http://junkfunnel.com/sld/.

Trata-se de uma engenhoca intitulada “Aparelho de Aparência Suspeita” (“Suspicious Looking Device”). Consta de uma caixa metálica, cor de cenoura, com um cabo para segurar (como se fosse um ferro de passar roupa), botões, e um mostrador de números digitais que exibe números em contagem regressiva. Dentro, tem motor, rodinhas, sensor de distância, sensor de toque, e alarmes. 

Para que serve? Bem, o AAS serve para ser ligado e abandonado sub-repticiamente num local público qualquer. Mais cedo ou mais tarde alguém vai vê-lo ali, quietinho, mas zumbindo de leve, e com uma contagem regressiva no mostrador: 00847... 00846... 00845...

Qualquer um de nós já viu uma bomba-relógio, pelo menos em filmes de Van Damme ou de Chuck Norris. O objetivo do AAS não é explodir (ele não contém, repito, não contém explosivos). O objetivo é fazer alguém ir chamar o guarda mais próximo. O guarda (se é que eu já vi seriados de TV) vai tirar o quépi, coçar a cabeça, e depois abrir os braços como um Cristo Redentor e pedir que todos se afastem dali. Aí vai pegar o walkie-talkie e dizer: “Moreira, dá um pulinho aqui na Praça de Alimentação, câmbio”.

Daí a meia-hora haverá um grupo de umas 50 pessoas se acotovelando para ver a “bomba” de perto. E mais cedo ou mais tarde alguém estenderá a mão para tocá-la. (É cientificamente impossível que alguém não o faça.) 

Nesse instante, os sensores internos serão acionados, e o aparelho irá emitir uma sirene ensurdecedora, e se deslocará lateralmente, sobre rodinhas embutidas. Exercício para casa: Visualizar cena subseqüente.

O AAS é uma invenção do artista Casey Smith. Não tem outra função senão ter aparência suspeita e pregar um susto em pessoas que suspeitam de aparências. No saite de Smith, que fica no endereço reproduzido acima, você encontrará outras engenhocas úteis como o “Terrorômetro”, que calcula a cada minuto a quantidade de referências ao terrorismo que surge na imprensa eletrônica mundial, e exibe o resultado num visor. 

Quanto ao AAS, várias leituras são possíveis. 

Primeira: “Já não bastava a Al-Qaeda querendo nos matar de verdade, vem agora um palhaço nos pregar sustos de mentira”. 

Segunda: “É um processo de mitridatismo, de imunização progressiva, para que percamos o medo do Terror”. 

Terceira: “Melhor um susto do que uma bomba”. 

Quarta: “O impacto do susto, o alívio da sobrevivência, a chance da reflexão”. 

Quinta: “A arte é longa, a vida é breve, mas às vezes a gente dá graças a Deus que seja o contrário”.







1121) O Som do Concretismo (18.10.2006)


(Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos)

A poesia concreta deu uma ênfase excessiva ao visualismo, tornando-se com isto o ponto mais alto da poesia escrita, da poesia que só existe no espaço visual, na página. Ao mesmo, tempo, entretanto, ela promoveu o desmembramento da palavra em unidades menores autônomas: a sílaba, a própria letra. E com isto trabalhou as sonoridades, as aliterações, as paronomásias, os jogos de palavras que sempre levam a Poesia de volta ao terreno da fala e do canto. Parece que o grande alvo, o grande adversário do Concretismo não era tanto a Fala e sim a Discursividade, o blá-blá-blá retórico de uma poesia que falava muito e dizia pouco, ou que tentava dizer muito recorrendo a conteúdos mas mostrando um enorme desleixo quanto à forma. Aquilo que Leminski chamou “uma poesia porosa”.

O Concretismo explodiu essa discursividade profusa, confusa, prolixa. Compactou a sintaxe, erodiu todo o supérfluo, redefiniu as relações entre as palavras usando novos conceitos geométricos e espaciais, numa tentativa de quebrar a fluência beletrista da “poesia de bacharéis” capaz de encher com texto descartável léguas e mais léguas de papel indefeso.

O Concretismo tentou reduzir a poesia ao essencial, baseado naquela velha equação (Dichten = condensare) em que o termo alemão para “poesia”, “Dichtung”, mostra suas raízes no verbo “condensar” e termos correlatos (denso, densidade, etc.) Poesia é linguagem concentrada, compactada, o máximo de sentido no mínimo de palavras.

Sem o Concretismo o caminho poético de Gilberto Gil e Caetano Veloso seria outro, como seria outro o de artistas posteriores como Arnaldo Antunes e Chico César. Todos estes são poetas (poetas da música, é claro, mas para efeito da presente análise não se distinguem dos poetas de livro) que se beneficiaram do que o Concretismo descobriu ao explodir o supérfluo e voltar ao essencial. Mas, ao defender a bandeira do Visual, os poetas paulistanos trouxeram de volta à luz o que a poesia tinha de auditivo, redescobrindo a importância do som das palavras, e o prazer lúdico cuja origem está na Oralidade.

Os poetas do grupo Concretista (Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari) pagaram caro pelo seu eventual elitismo, pela sua propensão à polêmica, e pelas críticas impiedosas dirigidas à produção poética que lhes era contemporânea – críticas que, mesmo quando esteticamente fundamentadas, encontravam resistência devido ao tom às vezes arrogante ou desdenhoso com que eram formuladas.

Quando tentou cantar embaixo de vaias a música “É Proibido Proibir” num festival de música, Caetano Veloso bradou para a platéia: “Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!” (ou seja, “estamos lascados”). Se o grupo concretista tivesse tido uma habilidade política e uma flexibilidade diplomática à altura das suas muitas e fundamentais contribuições estéticas, sua influência na poesia brasileira teria sido muito maior e mais benéfica do que efetivamente foi.