sábado, 30 de maio de 2009

1060) Revólver em punho (9.8.2006)



Uma discussão interminável entre os admiradores dos Beatles é sobre qual seria o disco revolucionário, o disco que “quebrou tudo” no universo da música pop. Para uns, é Sgt. Peppers; para outros é Revolver. Páreo duro, porque são dois discos que mudaram o mundo. Olhar a música pop daquele tempo e ver estes dois discos é como olhar para as areias do deserto e ver duas pirâmides se elevando mais de cem metros acima do solo.

Revolver foi lançado em 5 de agosto de 1966, e teve um impacto imediato. Muita gente ainda se lembra de quando escutou pela primeira vez “Eleanor Rigby”, com seu octeto de cordas, e teve que perguntar: “Isso são os Beatles?!” O disco ia do refinamento melódico e poético de “For No One” até a ficção-científica circense de “Yellow Submarine”; de canções românticas impecáveis como “Here, There and Everywhere” até experiências cósmico-místicas como “Tomorrow Never Knows” e “Love You Too”. E os Beatles pareciam dispostos a ir até os limites da sonoridade que se pode extrair de uma guitarra, em faixas como “And Your Bird Can Sing”, “I Want To Tell You”, “Taxman”.

É impressionante a gente observar que menos de um ano depois de lançar um disco assim o grupo lançou (em 1 de junho de 1967) Sgt. Peppers, cujas excelências não amiudarei aqui por falta de espaço. Voltemos a Revolver, cujos 40 anos estão sendo comemorados por estes dias. Uma das comemorações é um livro eletrônico lançado há pouco por Ray Newman: Abracadabra! The Complete Story of the Beatles’ Revolver. É um livro sem intenções comerciais, mas cheio de informações obscuras (é coisa de fã) e comentários interessantes. Quem for ao saite de Newman (em: http://www.revolverbook.co.uk/index.html) pode baixar o programa Adobe Acrobat, caso não o tenha, e em seguida baixar os 726kb do livro, de graça.

Há um interessante comentário de Ray Newman, falando não da transição entre Revolver e Sgt. Peppers, mas a anterior, entre Rubber Soul (de dezembro de 1965) e Revolver. Embora Rubber Soul seja um excelente disco por conta própria, e já era a seu modo um relativo arranha-céu dentro da música pop (e da própria obra dos Beatles), a distância entre estes dois discos parece imensa, a menos que, como Ray Newman, a gente lembre o compacto com “We Can Work It Out” e “Day Tripper”, lançado em dezembro de 1965, e depois o compacto com “Rain” e “Paperback Writer”, em junho de 1966. Estas quatro faixas cobrem com perfeição o terreno intermediário entre Rubber Soul e Revolver, mostrando o quanto a evolução dos Beatles era incessante, quase uma coisa mês a mês. Basta lembrar também que entre Revolver e Sgt. Peppers foi lançado outro compacto que caiu como uma bomba atômica: “Penny Lane” e “Strawberry Field Forever”, em fevereiro de 1967. Eram assim os anos 1960, meus amigos. O tempo em que obra-prima era sinônimo de sucesso financeiro.

1059) Luiz Orlando (8.8.2006)




No dia em que escrevo, a sexta-feira, 4 de agosto, desde cedo não param de chegar emails de amigos do Brasil inteiro, todos com a mesma triste notícia: morreu em Salvador o cineclubista Luiz Orlando da Silva. 

Não procurem nos jornais: ele não era um cara famoso. Orlando, como sempre o chamei, era uma formiguinha incansável da luta cineclubista, viajando a Bahia inteira, exibindo e debatendo filmes, fundando cineclubes, organizando encontros e festivais, carregando o imenso piano invisível onde os cineastas executam seus concertos. 

Conheci-o em 1973, quando comecei a freqüentar, juntamente com José Umbelino e Romero Azevedo, a Jornada de Curta-Metragem organizada por Guido Araújo em Salvador. Orlando era o braço direito de Guido lá no Clube de Cinema da Bahia. Era um neguinho franzino, de cabelo curto, óculos de grau numa armação prateada, puxando um pouco da perna, mas sempre em movimento, sempre incansável, sempre com uma pilha de livros, revistas e jornais embaixo do braço. 

No Instituto Goethe, onde funcionava o Clube, era o faz-tudo. Era ele quem ia ao aeroporto, tanto para pegar as latas de filme quanto para recepcionar os convidados da Jornada. Ia à Censura Federal levar a programação, resolvia os pepinos nos hotéis, levava o material para a imprensa (não havia fax ou email). 

Quando fui morar em Salvador e trabalhei no Clube, depois de 1977, nos revezávamos na sala de projeção, na bilheteria, na burocracia, na organização dos intermináveis debates (cineclubista adora debater). Orlando tinha sempre uma referência obscura a respeito de qualquer assunto. Era uma edição espanhola dum livro de Eisenstein, um artigo sobre Glauber saído na Itália, uma crítica do filme mais recente de Wim Wenders. 

Generoso, solidário, conhecia todo mundo em Salvador, sabia a cidade de cor. Qualquer problema, eu me socorria dele, que dizia: “Deixa comigo, eu conheço um cara em Brotas (ou na Barroquinha, ou no Garcia...) que quebra esse galho rapidinho...” Era nosso anjo da guarda. 

Vi-o pela última vez há poucos anos, quando fui dar uma palestra no Instituto Goethe e ele foi me buscar no aeroporto. Demos um abraço apertado e eu falei: “Tá vendo como é a vida, Orlando, agora eu sou um senhor grisalho, e o cabeludo é você...” Ele estava usando umas tranças rastafari que lhe caíam nos ombros, e morreu de rir. Somente agora, nos obituários, fiquei sabendo que era cinco anos mais velho que eu. 

Nas belas cenas iniciais de Os Sonhadores, Bertolucci e o roteirista Gilbert Adair dizem que os verdadeiros cinéfilos gostam de ver os filmes lá na fila da frente, para receberem as imagens antes do resto da platéia, antes que as elas cruzem todas as filas e, voltando a ser do tamanho de um selo postal, voltem para dentro do projetor. Eu sou assim. Orlando também. Ele não agüentou esperar e foi ocupar seu lugar reservado na Cinemateca Universal, foi ver os filmes do futuro, no lugar onde esses filmes estão sendo feitos.







1058) O Livro dos Salmos irlandês (6.8.2006)


(O Livro dos Salmos)

Era uma tarde plúmbea e tempestuosa naquele recanto remoto da Irlanda. Um monge recurvo caminhava pela charneca, pensativo, sobraçando seu livro dos Salmos de Davi. Corria o ano de 1006. O Milênio, com seus presságios e portentos, tinha vindo, e tinha passado. E o mundo continuava existindo. Os céus não se tinham aberto para dar passagem a legiões de anjos com espadas flamejantes. A única ameaça aos que ali moravam eram as imprevisíveis incursões dos vikings, que desembarcavam na costa e rompiam pelo território adentro, deixando atrás de si uma trilha de incêndios e vilas saqueadas.

O monge sentou-se numa pedra, abriu o livro no seu Salmo preferido, e leu em silêncio: “Quão amáveis são os teus tabernáculos, Senhor dos exércitos! A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne se regozijam no Deus vivo”. O vento agitava as urzes e as samambaias; ao longe, ouvia-se o balido das ovelhas que um pastor trazia de volta ao aprisco.

Vozes roufenhas fizeram o monge erguer os olhos do texto: na crista da colina mais próxima, ele avistou uma horda de guerreiros imundos e barbudos, com escudos enlameados, que descia a trilha em sua direção. O coração começou a saltar-lhe dentro do peito. Não temia pela sua vida: temia a destruição daquele manuscrito que imprudentemente costumava retirar da biblioteca do Mosteiro, para fazer-lhe companhia em seus passeios. Sem hesitação (porque já temera aquela cena, e por temê-la tinha se preparado para ela) envolveu o manuscrito em sua capa de couro, e, agachando-se, arrancou um pedaço da turfa espessa que cobria o solo. Ali, sob a camada vegetal em lenta decomposição, o precioso livro ficaria oculto para que viesse buscá-lo mais tarde, caso escapasse com vida.

Não sabemos se escapou. Sabemos que passaram-se os meses, os anos, os séculos. A Terra deu mil voltas em torno do Sol. Impérios e civilizações ergueram-se e ruíram. Os homens criaram máquinas insensatas e trovejantes, com as quais deixavam, atrás de si, trilhas de incêndios e metrópoles saqueadas. O mundo transformou-se numa colmeia fervilhante de maquinismos. Um destes maquinismos, um “bulldozer” da construção civil, estava revolvendo a turfa ressequida de um pântano, quando o homem que o manejava viu um objeto brotando daquela massa informe, e parou tudo para ver o que era.

A descoberta do Livro de Salmos do Pântano Irlandês (http://en.wikipedia.org/wiki/Irish_bog_Psalter ) foi considerada pelos arqueólogos o maior achado histórico feito na Irlanda nos últimos duzentos anos. Especialistas estão tentando recuperar e descolar as 20 páginas do manuscrito. Protegido do sol e do excesso de umidade, seu texto latino ainda pode ser lido, mil anos depois. Porque está escrito: “Até o pardal acha casa para si, e a andorinha ninho para si, onde possa criar os seus filhotes: junto aos teus altares, Senhor dos exércitos, Rei meu, e Deus meu”.

1057) “Love The Beatles” (5.8.2006)



Toda a imprensa brasileira está noticiando e celebrando a chegada ao país do Cirque du Soleil, com seu espetáculo “Saltimbanco”, que ficará em cartaz no Rio e São Paulo. Deve ser um espetáculo brilhante, a julgar por tudo que já vi do grupo na TV, nos últimos dez anos. Mas o que eu pagaria qualquer preço para ver não é esse espetáculo (o Cirque tem um repertório permanente de vários espetáculos, encenados por vários grupos simultaneamente). É o que está em cartaz no hotel The Mirage, de Las Vegas, intitulado “Love the Beatles” (assistam o trailer em: http://www.cirquedusoleil.com/CirqueDuSoleil/fr/showstickets/love/intro/intro.htm)

A obra dos Beatles parece aquelas bolsas mágicas que aparecem nos folhetos de cordel, nas quais basta meter a mão para tirar punhados e mais punhados de um dinheiro inesgotável. “Love” é o resultado mais recente desta magia. O espetáculo ocorre num espaço com 360 graus: o público fica no centro, rodeado por projeções em telas panorâmicas e pelos atores-acrobatas que encarnam personagens das canções dos Beatles. A trilha sonora é a experiência mais radical: Sir George Martin e seu filho Giles utilizaram as fitas originais dos discos do quarteto, remixando instrumentos e vozes numa colagem de sons que (segundo a imprensa) é de deixar zonzo qualquer beatlemaníaco. (E hoje os beatlemaníacos são muito mais numerosos do que quando os Beatles existiam).

O projeto surgiu da amizade entre George Harrison e o fundador do Cirque du Soleil, Guy Laliberté, e foi aprovado pela viúva de George, Olivia, bem como por Yoko Ono, Paul MacCartney e Ringo Starr. Dan Cairns, jornalista do “Sunday Times”, assim escreveu depois de ver um ensaio: “As harmonias vocais de ‘Because’ enchem o salão, misturadas ao canto de pássaros. Segue-se um ruído surdo e crescente, ao fim do qual ressoa o acorde inicial de ‘A Hard Day’s Night’; segundos depois, surge o crescendo da orquestra em ‘A Day In The Life’ mesclado com o solo de bateria de Ringo no final de ‘Abbey Road’, e tudo termina com a entrada do riff de guitarra de ‘Get Back’, tendo ao fundo a vibração da multidão de ‘Sergeant Pepper’”.

Esse tipo de coisa poderia resultar num samba-do-crioulo-doido, se eu não tivesse confiança total em George Martin, cujo bom-gosto e solidez musical teve um papel decisivo na carreira dos rapazes. Martin diz que na preparação de “Love” tanto MacCartney quanto Ringo o incentivaram a ousar mais, inventar mais. A colcha-de-retalhos musical traz ao palco os personagens das canções que todo mundo conhece: Lady Madonna, o Submarino Amarelo, o Homem Ovo, Lovely Rita, Lucy-in-the-Sky. Além da canção mais circense do grupo, “Being for the Benefit of Mr. Kite”, a interface perfeita entre a antologia sonora em que a música dos Beatles se transformou a partir de 1966 e o universo dos picadeiros e trapézios. Quem quiser torça o nariz, mas no dia em que esse espetáculo vier ao Brasil eu vou acampar na porta do guichê.

1056) A oposição ideal (4.8.2006)



A vantagem da democracia é a existência de uma Oposição livre, sem censura, sem repressão policial, uma Oposição aparelhada para criticar, e sem bloqueios institucionais que a impeçam de investigar e denunciar trambiques, falcatruas, sanguessugas, propinodutos e mensalões. A desvantagem da Democracia é que de vez em quando, pelas idas-e-vindas da política, a Oposição chega ao poder, e a primeira coisa que faz é deixar no capacho de entrada do Palácio todo o seu discurso, todas as suas promessas e ameaças, todos os seus valores e princípios. A Oposição só existe do lado de fora dos Palácios. É como num conto de fadas: o Príncipe que vai matar o Ogre cruza o limiar da porta do castelo, chega no salão, se olha num espelho, e percebe que agora o Ogre é ele mesmo.

PMDB, PFL, PSDB, PT, PDT... Por mais que se multipliquem as siglas partidárias refletindo a divisão de Poder em nosso país (agora apareceu até um tal de PCC, que parece que manda mais do que os outros) a verdade é que vivemos num bi-partidarismo simbólico entre partidos do Governo e partidos da Oposição (com a ressalva de casos como o PMDB, que sempre dá um jeitinho de sobreviver com um pé lá e outro cá). Quando o PT estava na Oposição, abria fogo cerrado contra numerosas práticas do governo do PSDB. Depois de 2002, quando a situação se inverteu, inverteu-se também o discurso de ambos: os tucanos, agora do lado de fora do Palácio, denunciam tudo de errado que acontece ali, como já acontecia durante seu reinado. O PT, agora do lado de dentro, adota o mesmo discurso ufanista, auto-glorificatório e não-me-toques que era uma especialidade tucana. “E la nave va”.

Vejo muita gente dizer: “Ah, eles falam isso, mas têm o rabo preso, quando estavam no Poder faziam a mesma coisa, quando voltarem ao Poder vão fazer de novo o que criticam agora, não são melhores do que ninguém...” Política, colegas, não é simplesmente esse campeonatozinho entre dois grupos, para ver “quem chega lá primeiro”. Política é a escolha de quem vai administrar o Tesouro público, o dinheiro do Povo (o que já não é pouco); e é também a disputa para escolher quem vai representar o nosso conceito de nacionalidade, nossa auto-imagem como povo.

Quando elegemos alguém estamos passando um cheque em branco, estamos dando carta-branca, procuração com plenos poderes para alguém agir em nosso nome. Fazer oposição é tão sério quanto governar. Não importa se o Opositor tem rabo preso. A crítica ao Governo não tem que servir simplesmente para comparar suas qualidades com as qualidades da Oposição. A crítica deve ser feita em função de um ideal de ética e honestidade que esteja acima de todos: do governo, da oposição e de todos nós, acima até do próprio povo. Se até um presidiário (quanto mais um político suspeito) aponta corretamente um erro do Governo, pouco importa o que o presidiário fez, pois não é com ele que o Governo está sendo comparado, e sim com o que o Governo deveria e poderia ser.

1055) Delenda Cartago (3.8.2006)


(ruínas de Cartago)

“Delenda Cartago!” é uma frase latina que significa “Cartago deve ser destruída!”, ou, mais modernamente, “Deletem Cartago!” Era uma frase de Catão, político romano que defendia a destruição da cidade africana devido à ameaça econômica e bélica que ela representava para Roma. A campanha surgiu durante as Guerras Púnicas, três guerras sucessivas ocorridas ao longo de um século, até que o exército romano sitiou a cidade, invadiu-a, degolou todo mundo, incendiou, e depois espalhou sal sobre as ruínas. Naquele tempo não tinha esse negócio de ONU ou Convenção de Genebra para atrapalhar uma guerra.

“Delenda Cartago” é também o título de um dos poemas épicos mais belos da língua portuguesa, escrito por Olavo Bilac: “Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontes do céu da África...” Bilac descreve em alexandrinos cinemascópicos o cerco, e reproduz alguns dos mitos que cercam essa batalha tão famosa quanto a do Cerco de Tróia: a de que quando os arcos dos defensores tinham suas cordas partidas de tanto disparar flechas, as mulheres cartaginesas cortavam seus longos cabelos para fabricar novas cordas e defender a cidade. Vocês gostam daqueles filmes épicos-históricos de David Lean, Eisenstein, Ridley Scott? Leiam Bilac.

A frase de Catão ficou na História, contudo, como um dos “bordões” mais famosos da política. “Bordão”, na gíria dos redatores de TV, é aquela frase que um personagem repete o tempo inteiro, e que se torna sua marca registrada: o professor Raimundo dizendo “E o salário, ó...”, ou Didi Mocó dizendo “É muita cafusão, eu tô muito cafuso...” O bordão do político romano era na verdade uma frase mais longa: “Ceterum censeo Carthaginem esse delendam”, algo como “olha, eu não sei não, mas por mim, essa tal de Cartago deveria ser passada-no-rodo o quanto antes”. Ele a repetia ao fim de todos os seus discursos, mesmo que o tema deles fosse o custo de vida ou a vitória do Flamengo na Copa do Brasil.

Catão mostrou o quanto é importante a repetição de uma ordem até que ela seja obedecida. Catão maltratou, martelou, massacrou os ouvidos do Senado romano durante anos com essa frase. Cravou-a como um prego no juízo de cada um dos seus concidadãos. Transformou-a num clichê da época, num lugar-comum, num bordão repetido por todos. Conseguiu impô-la como verdade, como mandamento, como Uma Lei da Natureza. E Cartago foi destruída.

Foi uma batalha de um homem só, e uma batalha heróica (não discutirei aqui se Cartago era boa ou ruim, se merecia ou não o ferro, o fogo e o sal). Ela ficou como exemplo para os atuais Senhores da Guerra, e seus bordões. “O Iraque deve ser invadido”, dizem uns. “Israel deve ser destruído”, bradam outros. Para nós, que somos neutros nessas guerras, são bordões insensatos. Para eles, que cresceram com esse “loop” girando eternamente em suas consciência, é algo que não lhes ocorre discutir. É uma Lei da Natureza. Precisa ser obedecida.