quinta-feira, 28 de maio de 2009

1054) Dylan e Pynchon (2.8.2006)



Nenhum outro órgão da imprensa mundial publicou até hoje esta conclusão cristalina e óbvia, para quem se disponha a observar os fatos: Bob Dylan e Thomas Pynchon são uma e a mesma pessoa. Ambos são reclusos e rodeados de mistério. Ambos têm uma linguagem barroca, intrincada, repleta de referências culturais esotéricas, e com imagens extremamente vívidas, inesquecíveis. Ambos tem um estilo labiríntico de contar histórias. Ambos mergulharam fundo na história e na cultura dos EUA e do Século 20 em geral.

A pista que desencadeou meu raciocínio foi o fato de que o grande romance de Pynchon O Arco-Íris da Gravidade, de 1973, foi dedicado a Richard Fariña. Fariña foi um músico e poeta boêmio do Greenwich Village que morreu aos 29 anos, num acidente de moto, na noite do lançamento de seu único romance, Been Down So Long It Looks Like Up To Me (“Tô Por Baixo Há Tanto Tempo Que Acho Até Que Tô Por Cima"). Num prefácio que fez a uma reedição deste livro (Penguin, 1983), Pynchon lembra que era editor do jornalzinho da Universidade de Cornell e publicava os contos e poemas enviados por Fariña, a quem descreve: “Sem paletó, sem gravata, com mais cabelo do que estava na moda, sempre andando com a mesma turma; quieto, mas intensamente presente, checando tudo”. Depois, Fariña e Dylan foram parceiros de boemia no Village, e formaram um quarteto famoso namorando duas irmãs cantoras chamadas Mimi e Joan Baez. As aventuras do quarteto e de sua geração estão contadas no livro Positively Fourth Street: the Lives & Times of Joan Baez, Bob Dylan, Mimi & Richard Fariña de David Hajdu (2001).

Bem, para mim é prova bastante de que Pynchon (que nunca deu entrevistas, e de quem só se conhecem duas fotos) é um heterônimo de Dylan. Até os períodos de silêncio dos dois coincidem. Agora, a imprensa anuncia para este mês de agosto o CD de Dylan Modern Times, seu primeiro disco com material original desde 2001. Seth Rogovoy, um dos poucos críticos que tiveram acesso ao disco, disse: “Tem referências diretas ao 11 de setembro; muitas referências à religião e à moral. É um disco cru, doloroso, e no final o mundo literalmente se acaba”.

E em dezembro será lançado o novo romance de Pynchon, intitulado Against the Day, e que será seu primeiro livro desde Mason & Dixon de 1997. O irônico resumo de Against the Day que a editora Penguin vazou “involuntariamente” para a imprensa dias atrás, ao que parece escrito pelo próprio Thomas Pynchon, diz: “Com uma catástrofe de proporções mundiais emergindo no horizonte para daqui a alguns anos, este é um tempo de corporações insaciáveis, falsa religiosidade, irresponsabilidade imbecil, e más intenções entre as elites do Poder. Nenhuma referência aos tempos de hoje é intencional ou deve ser subentendida”. Precisa de mais provas de que é um cara só? Eu não acredito que o mundo tenha a sorte de contar com DOIS caras que falem nesse mesmo tom.

1053) Caminhando pelo convés (1.8.2006)



Ano de eleições presidenciais é sempre aquela ocasião em que a gente se pergunta se aquilo tudo vale a pena. Se vale o esforço de tomar banho, trocar de roupa, pentear o cabelo, pegar o ônibus, esperar na fila, entregar o título, ir para a cabine, gastar a tinta de um X – ou, mais modernamente, apertar aqueles botõezinhos da urna eletrônica, pegar o ônibus de volta e imaginar que com isto contribuiu para mudar o rumo da História. Dizem os entusiastas da Democracia Republicana que toda eleição é ganha por um voto, e os milhões restantes são desnecessários e redundantes. Tem sua lógica, mas não resolve o problema, porque os votos não são assinados, e ninguém pode me provar que o voto decisivo foi o meu.

Por que esse desalento? Dizem por aí que não adianta votar, porque todo político é desonesto. Eu não acho. Conheço pessoalmente um grande número de políticos, de vários Partidos e tendências, em cuja honestidade pessoal acredito. Não acho que os políticos brasileiros sejam mais desonestos do que, por exemplo, nossos industriais, nossos artistas, nossos banqueiros, nossos futebolistas, nossos policiais, nossos jornalistas, nossos fazendeiros. Mesmo os que roubam, não devem roubar o tempo inteiro. Na hora do aperto, cada qual puxa a brasa mais para perto de sua sardinha, procurando não exagerar para não dar na vista. Cada qual mexe os pauzinhos que tem à disposição; cada qual pega o telefone, ativa seus contatos, tece com sua voz e sua influência mais uma dúzia de fios numa imensa teia de interesses, uma teia tão complexa que cada um deles julga estar no centro. Nem sempre há uma relação direta entre um telefonema para Fulano e um dinheiro que pinga na conta. Dá tempo suficiente do cara se convencer de que uma coisa não teve nada a ver com a outra.

Este ano, vamos trocar de Presidente, de novo. Adianta? Não sei. É como trocar o capitão de um transatlântico, sendo que a tripulação anterior permanece, e a empresa dona do navio é a mesma. Na Democracia Republicana, manda quem pode, e obedecem os Presidentes que têm juízo. O Presidente é um ator, cercado por uma equipe que escreve seu texto, dirige sua performance, e passa 24 horas por dia adulando-o, convencendo-o de que ele manda, em vez de ser mandado. Vejam o máscara alvar de George Bush, a figura angustiada e turbulenta de Nestor Kirchner, a postura soturna e bem ensaiada de Vladimir Putin, a persona bonachona e televisiva de Jacques Chirac... Vocês acreditam que algum desses canastrões manda em alguma coisa?

Políticos honestos existem, e muitos. Entram no transatlântico achando que de algum modo conseguirão tomar de assalto a ponte de comando, coagir a tripulação à base do chicote e da promessa... “E la nave va”. O navio segue na mesma direção. O Presidente pode ir na direção oposta, mas estará apenas andando pelo convés. Vai chegar a um ponto em que, ou ele pára de andar e segue com o navio, ou então pula na água.

1052) Nós e vós (30.7.2006)



Vós que me ledes, caros leitores, deveis saber que um sujeito na minha posição recebe uma quantidade enorme de poemas. São livros, revistas, emails, o escambau. Uma tendência que tenho observado nos poetas de hoje é o uso dos pronomes “tu” e “vós”, geralmente de maneira equivocada. A segunda pessoal do plural é uma área pronominal em franco desuso e decadência, só chamada a intervir quando se trata de discursos parlamentares, ofícios burocráticos ou romances históricos. Aí pergunto: por que motivo, caros colegas, insistis em usar esses pronomes, quando torna-se evidente que não tendes a menor familiaridade com eles?

Acho que a principal razão para que lanceis mão de um tratamento tão obsoleto é o afã de conferir ao vosso discurso um tom de nobreza, de pompa, um vocativo formal e hierático capaz de evocar ao leitor um tempo ido, um mundo passado onde as fórmulas de respeito não eram mero clichê retórico. Procurais assemelhar-vos (mesmo que estilisticamente) aos protagonistas dessa era remota, porque percebeis (e repelis) o tom escrachado e frívolo dos tratamentos de hoje, com sua galhofa impudente, sua fingida intimidade entre interlocutores. Entendo e aceito, mas advirto: examinai bem vossas Gramáticas empoeiradas, recorrei ao Google quando necessário, insisti junto aos mestres, mas tende piedade dos leitores mais sensíveis.

Dias atrás li um poema que dizia assim: “Ide, poeta! Consintais que a vida te procure!” Meu caro e anônimo autor! Estás tão dividido e dilacerado quanto aquela dupla de irmãos siameses indo ao Fla-Flu no Maracanã. Ou bem te diriges ao poeta com a intimidade propiciada pelo “tu”, ou com o distanciamento e respeito implícito no “vós”. E olha que ainda estamos apenas no plano da intenção inicial, porque a forma usada no teu verbo, “consintais”, salta da frase como o bigode da Mona Lisa de Marcel Duchamp. Estuda! Treina os verbos mais traiçoeiros. Inventa para ti próprio um exerciciozinho como este, destinado a flexionar teus neurônios gramaticais. Tu os tens, e não são poucos. Precisam apenas de algo que só tu lhes podes fornecer: exercício. Mas não vás adiante de ti mesmo. Usa apenas o que sabes usar. O poema não é o território adequado para tentares pela primeira vez um tipo de elocução ao qual não te acostumaste. Consola-te pensando que todo mundo erra, eu primeiro que todos.

Vou mais além. Vós todos, Brasil afora, que vos acostumastes à estreita gama de tratamentos da linguagem coloquial da indústria-de-massas, devíeis freqüentar de quando em vez um “spa” com o nome de “Seminário de Português Aplicado”, do qual só sairíeis quando soubésseis conjugar, na ponta da língua, os verbos mais abstrusos. Mas se achais (como bem podeis) que tudo isto não vale a pena, basta continuardes empregando o feijão-com-arroz do você e do vocês. Não são anti-poéticos. Qualquer coisa pode ser poética, se souberdes usá-la com beleza, propriedade, criatividade, e, acima de tudo, bom-senso.

1051) Arte inflável (29.7.2006)



Maurice Agis é um artista britânico que desde 1970 trabalha em instalações interativas, espaços onde o público penetra e entra em contato com experiências sensoriais de vários tipos. Há poucos anos ele inaugurou uma obra chamada “Dreamspace”, uma enorme construção com cinco metros de altura e 2.500 metros quadrados de área, composta de mais de cem “aposentos” (células de plástico inflável ligadas por corredores). À entrada o público tira os sapatos, veste batas coloridas, e pode ficar lá dentro o tempo que quiser. Em cada aposento há efeitos de luzes coloridas, música “new age”, etc.

Disse o artista sobre o Dreamspace: “O espaço não é algo que você contempla: é algo que se experimenta. E o tempo não é algo que se experimenta: é algo que se contempla”. (Eu acho exatamente o contrário, mas afinal, Arte consiste muitas vezes em inverter o óbvio.) Maurice Agis diz: “A presença humana em meu trabalho é fundamental para que ele faça sentido”. A obra não é um objeto para ser admirado de fora: é um ambiente onde se deve entrar, circular, demorar-se, interagir.

Os frequentadores, quando saem, deixam num livro de visitas seus testemunhos: “Uma explosão maravilhosa de cores, uma experiência psicodélica... – Ver crianças saltando e homens adultos rodopiando me fez chorar, não sei se as lágrimas eram por um mundo já esquecido ou por um mundo recordado e trazido de novo à vida... – Inacreditável, único, cheio de paz – se existe um Céu, esta obra de arte não está longe dele”.

Pois bem: dias atrás, o Dreamspace, que estava montado num parque em Durhan, desprendeu-se das cordas que o mantinham ancorado ao chão e elevou-se verticalmente, cheio de gente no seu interior. A enorme estrutura tinha um engenhoso sistema de ventilação interna, controlando as correntes de ar em seu interior e evitando que elas a impulsionassem para cima. Algo deu errado. O Dreamspace partiu as amarras, elevou-se como um balão desgovernado, e foi arrastado pelo vento até a extremidade do parque, só não prosseguindo rumo ao rio porque ficou providencialmente enganchado em alguns postes e árvores. Mesmo assim, a imensa estrutura pendeu, tombou, derramando gente lá de cima como se fossem caroços de feijão. Duas mulheres morreram. Uma criança está em estado grave. Há dezenas de feridos.

Muito cruel, especialmente se considerarmos que a polícia trabalha com a hipótese de sabotagem: alguém poderia ter afrouxado uma das cordas de sustentação, o que aumentou a pressão sobre as outras. É irônico e trágico que uma obra voltada para a paz, o alto astral, o relaxamento das tensões, acabe se revelando tão vulnerável. Maurice Agis (que segundo a imprensa estava presente ao local, e ficou arrasado com o que aconteceu) afirmou certa vez: “Minha obra é uma ação na qual os cidadãos podem se encontrar e interagir para criar uma consciência maior da realidade”. De certa forma, e uma forma muito dolorosa, foi exatamente o que aconteceu.