terça-feira, 19 de maio de 2009

1038) Syd Barrett, diamante louco (14.7.2006)


(Syd Barrett)

A história do rock registra as grandes vítimas dos excessos de drogas dos anos 60-70: Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin. Uma de suas vítimas mais talentosas foi Syd Barrett, cujo nome é pouco citado, talvez pelo fato de que uma parte dele morreu entre 1967 e 1968, e a outra na última sexta-feira, 7 de julho de 2006. Barrett, um dos fundadores da banda Pink Floyd, foi um guitarrista de talento, e compôs quase todas as canções do álbum The Piper at the Gates of Dawn. Drogas psicodélicas e uma prévia instabilidade mental o deixaram mais doidão do que até mesmo uma banda de rock comporta. Quando seu comportamento no palco e no estúdio tornou-se inviável, foi substituído por seu amigo David Gilmour.

A banda aposentou Barrett mas vê-se que havia uma ligação afetiva muito forte entre eles. Os direitos autorais de Barrett continuaram a ser escrupulosamente pagos, e o Pink Floyd chegou a produzir em 1970 dois discos (The Madcap Laughs e Barrett) em que Barrett, alternando momentos de psicose e de lucidez, era capaz de compor, tocar, cantar, acompanhado por Gilmour e outros amigos. Diz-se que o personagem neurótico e depressivo interpretado por Bob Geldorf no filme Pink Floyd: The Wall é em grande parte inspirado em Barrett. A banda lhe dedicou uma canção, “Shine On Your Crazy Diamond” (“Brilhe, diamante louco”) em seu álbum Wish You Were Here (“Gostaria que você estivesse aqui”), de 1975.

As fotos de época mostram um rosto pálido, olhos intensos e meio desarvorados, uma cabeleira negra e revolta. Ao morrer agora, com 60 anos, Barrett estava gordo, cabeça raspada, sofria de câncer e diabetes. Morava sozinho numa casa de subúrbio, vigiado pela irmã que morava a poucas casas de distância. Não era “um doido”; comportava-se mais como um senhor excêntrico e caladão, que não conversava com ninguém, mas conseguia cuidar de si, da casa, das flores do jardim.

O Pink Floyd sobreviveu à perda de Barrett, seu membro mais talentoso, assim como os Rolling Stones sobreviveram à perda de Brian Jones, seu melhor músico. A lenda em torno de Barrett nunca parou de crescer, e agora, com sua morte, promete recrudescer. O jornal The Guardian montou uma página de links relacionados a ele, que pode ser acessada em: http://arts.guardian.co.uk/features/story/0,,1817966,00.html.

Já vi alguém se queixar de que a cultura do rock celebra os drogados, os “heróis que morrem de overdose”, e que isto é uma má influência sobre a juventude. Pode até ser, mas somente por um erro de interpretação. O que celebramos é o talento, o brilho mental de jovens que mesmo tendo morrido com 20 e poucos anos deixam uma obra notável, cuja qualidade intensifica a dor da perda e a grandeza da tragédia. As canções de Barrett nos deixam o gosto nostálgico do que poderia ter sido sua vida se não tivesse “morrido” antes dos 30 anos. É como chorar por Castro Alves ou Noel Rosa.

1037) Chega de Copa (13.7.2006)



Vocês já devem estar arripunando Copa, depois de um mês inteiro de jogos e comentários. Eu também não agüento mais. Publiquei nos últimos dias algumas de minhas anotações feitas durante os jogos, mas prometo só voltar ao assunto quando Cafu se aposentar. É grande a vontade de escrever sobre a cabeçada de Zidane, mas vou deixar para fazê-lo depois que eu esfriar minha própria cabeça. (Em Campina já circulava uma piada: na segunda-feira Ronaldo Fenômeno telefonou para seu colega do Real Madrid e perguntou: “Pô, Zidane, que coisa, por que tu fez aquilo, cara?” E o argelino: “Tive uma convulsão”.)

Uma das poucas vozes sensatas que ouvi foi no saite “Idea A Day”, “uma idéia por dia”, onde um leitor disfarçado sob o sutil pseudônimo de Enadiz Enideniz sugeriu: “Poderia ser criada uma regra segundo a qual, se o jogo final da Copa do Mundo terminasse empatado, o vencedor seria o time que tivesse menos cartões durante a partida. Se houvesse empate, venceria o time que tivesse melhor índice de cartões durante o Torneio. Só haveria prorrogação se este índice também terminasse empatado”. No caso da decisão Itália 1x1 França, por exemplo, os italianos tiveram apenas um cartão amarelo, enquanto os franceses tiveram três amarelos e um vermelho para Zidane.

Vou além e sugiro que esse desempate pelo índice acumulado de cartões amarelos e vermelhos poderia ser estendido retroativamente a toda a fase eliminatória, que, pelo regulamento, faz parte oficial da Copa (a Seleção da casa, que não disputa eliminatórias, concorreria com seu índice da última eliminatória disputada). Aqui no Brasil já se usou esse critério disciplinar como desempate, não lembro se num Torneio Rio-São Paulo ou em algum campeonato regional. Seria justo ver um time jogar pelo empate na final da Copa pelo simples fato de ter um índice disciplinar melhor.

Foi uma Copa sem muito brilho, sem nenhum Grande Jogo. Teve alguns jogos emocionantes. mais pela dramaticidade do que pela técnica: Portugal 1x0 Holanda, Itália 2x0 Alemanha. Teve algumas belas exibições de um time só: Argentina 6x0 Sérvia-Montenegro, Espanha 4x0 Ucrânia. Mas não teve nenhum jogo de altíssimo nível. Em matéria de técnica, a Liga dos Campeões da Europa ganhou disparado.

Escrevi em 7.9.2003 (“A Copa do Mundo é nossa”): “Hoje o Brasil começa uma caminhada rumo ao altar dos sacrifícios. Nenhuma força política, econômica ou futebolística da Europa permitirá que em 2006 cheguemos aos seis títulos, deixando Itália e Alemanha nos três atuais.” Escrevi em 10.9.2005 (“Cheiro de 82”): “O Brasil tem sem dúvida uma equipe magnífica: ganhou com brilho a Copa América e a Copa das Confederações. Mas está, perigosamente, atingindo seu ponto máximo um ano antes da verdadeira disputa – justamente o que aconteceu com a Argentina na última Copa, que era um time assombroso em 2001 e pagou um mico histórico um ano depois”. O Anjo da Boca Torta disse amém. Até 2010!

1036) As figuraças da Copa (12.7.2006)


(Schopenhauer x Kahn)

Toda Copa do Mundo revela para um bilhão de espectadores uma galeria de jogadores que são famosos em seus países (senão não estariam na Seleção nacional), mas são ilustres desconhecidos para o resto do mundo. Uns são craques, outros pernas-de-pau, mas cada um, a seu modo, exprime uma diferente faceta do futebol, que as tem mais (refiro-me às facetas) que um olho de mosca.

Vejam o grampiolão Crouch, da Inglaterra. Não é bom jogador. Só seria titular no Treze se tivesse um bom pistolão. É desengonçado, tropeça nas próprias pernas, faz faltas o tempo todo. Tem um rosto esquelético de cadáver, olhos esbugalhados, faces encovadas, e seria um coadjuvante certo num desses filmes de zumbis de George Romero. O que faz numa Seleção Inglesa? É fácil: ele corresponde a uma fantasia futebolística britânica, a de que a maneira mais bela de fazer um gol é cruzar bolas na área para que alguém cabeceie. O mais engraçado é que “to crouch” significa “agachar-se, curvar-se”, e é justamente o que ele faz para cabecear. David Beckham, o melhor cruzador de bolas do mundo, cruza 50 bolas por partida, e numa delas o Crouch acaba botando pra dentro. (Cinco minutos depois que escrevi estas linhas, Beckham cruzou e Crouch fez o 1o. gol da Inglaterra em Trinidad-Tobago. Pense num profeta!)

A medalha de jogador mais esquisito da Copa talvez caiba ao coreano que fez um dos gols em Togo, acho que se chama Lee Chun Soo. Ele tem um bigodinho Gengis Khan, preto, e um cabelo descolorido meio Rod Stewart. Parece assassino profissional de filme japonês produzido por Tarantino. Aliás, em matéria de cabelo, certos jogos da Copa dão mais assunto do que em matéria de futebol. Parece que muitos caras faltam ao treinamento para ir ao salão, imaginando a hora em que serão vistos por 500 milhões de pessoas. O italiano Camoranesi tem um rabo-de-cavalo que lhe dá uma aparência de comanche de faroeste; o argentino Coloccini tem uns cachinhos de anjo barroco, mas é um autêntico carniceiro (que o digam as canelas dos adversários).

Falando de figuraças, avistei de novo a cara de Oliver Kahn, o goleiro alemão campeão da antipatia. Na transmissão de Alemanha 2x0 Suécia, a câmara o mostrou no banco de reservas, o grupo todo vibrando com os gols e ele “de bode amarrado” porque ficou na reserva. Dias atrás, folheando um livro de filosofia, descobri por que ele é assim. Kahn é a cara, escrita e escarrada (só que com cabelo menos revolto), do filósofo Schopenhauer, autor de O Mundo como Vontade e Representação. Schopenhauer, em seus momentos mais pessimistas, via a existência humana como um processo sem sentido, marcado pela irrelevância e pelo sofrimento. Se a Teoria das Vidas Passadas é verdadeira, o sombrio filósofo reencarnou para comprovar essa tese em 2002, diante do pés de Ronaldo. A seleção alemã passou o rodo em todo mundo até agora, mas esperemos que pelo menos esta parte final da História se repita.

1035) As bobeiras da Copa (11.7.2006)



O jogador do Japão recebeu a bola e atrasou, rasteirinha, para o goleiro, que estendeu o pé para recebê-la, mas a bola quicou num montinho, pulou por cima do pé dele e saiu, mansa, pela linha de fundo, a um metro da trave. Se fosse pra dentro era gol. Foi uma das mais divertidas bobeiras da Copa, sempre farta em belos lances e pixotadas incríveis. Na TV a cabo tinha até um programa dedicado a elas, “World Cup Blunders”, ótima coleção de videocassetadas; coisas inadmissíveis até numa pelada de subúrbio, quanto mais no palco mais nobre do mundo.

E o gol-contra do cara da Itália, para os EUA? Bola cruzada da direita, subiu todo mundo para cortar de cabeça; alguém resvalou de leve e desviou a bola. O zagueiro se preparou para rebater à distância, mas o desvio de centímetros o fez pegar “na orelha da bola”, e, em vez de estourá-la rumo ao meio de campo, jogou-a com efeito para dentro do próprio gol. Um lance que certamente vai emergir em pesadelos até o fim da vida do bravo Cristian Zaccardo.

Uma marca que dificilmente será batida é a do jogador Milan Dudic, da Sérvia-Montenegro. No jogo contra a Costa do Marfim, este cidadão pegou na bola com a mão duas vezes, dentro da área: dois pênaltis que acabaram dando a vitória aos africanos por 3x2. Gostaria de saber como ele se explicou depois, no vestiário. Os juízes também fazem das suas: o juiz inglês de Austrália x Croácia, deu três cartões amarelos para um croata, episódio talvez único na história das Copas, e parece que foi posto “na geladeira” pela comissão de arbitragem.

A pior bobeira que se pode cometer numa Copa é perder um gol feito, e é inevitável. O gol que o atacante do Japão perdeu contra a Croácia, de frente pro gol, e conseguindo chutar a dois metros da trave, foi antológico. A França está se especializando nesta nobre arte; os gols feitos, escancarados, que perdeu em suas duas primeiras partidas não foram tão gritantes quanto os que perdeu na Copa de 2002, mas devem ter provocado calafrios de reconhecimento da Bretanha aos Pireneus. Vão chutar ruim desse jeito lá na Linha Maginot.

O Brasil fez das suas, também. Claro que vamos esquecê-las bem depressa, mas os estrangeiros vão passar as próximas décadas mangando da “cheirada” de Ronaldo e da pisada-na-bola de Ronaldinho Gaúcho diante da Austrália. Não estamos livres de videocassetadas, uma vez que temos Dida no gol e Lúcio na zaga, embora os dois tenham se saído bem até agora (escrevo antes de Brasil x Gana).

Um dos gols perdidos mais lamentados da Copa deve ter sido o do atacante do Equador, aos dez minutos de jogo contra a Inglaterra. O zagueiro Terry cabeceou para trás, o sujeito entrou sozinho, dominou, e bateu. Não percebeu a chegada em desespero do inglês que vinha na cobertura, e a bola, “caprichosamente”, como gostam de dizer os locutores, resvalou na sua perna, subiu, bateu na trave e foi pro espaço. Se fosse eu, tinha dado um drible pra dentro, e... Ah, deixa pra lá.

1034) God Save the Queen (9.7.2006)



Eu era pequeno e minha Tia Adiza, que morou na casa dos meus pais durante toda minha infância, vivia cantando um “hino de crente” que dizia: “Divino Salvador / contempla com favor / nosso país... / Dai-nos eterna paz / governo bom, capaz, / vida que satisfaz...” Não lembro a última linha, porque com o passar dos anos foi obliterada pelo verso final em inglês: “Goood saaave the Queeeen...” Não era um hino de crente, era o Hino da Inglaterra, cantado com fervor nas igrejas anglicanas de Campina Grande.

Vê-lo cantado em coro pela torcida inglesa numa Copa do Mundo é a coisa mais emocionante que a seleção da Inglaterra consegue proporcionar (porque, como diria o Professor Raimundo, “o futebol, ó...”). Nacionalismo, religião e futebol se mesclam com a naturalidade das grandes paixões irracionais e das grandes ideologias manipulatórias. Multidões adoram exprimir certezas coletivas. Elas atenuam a insegurança que esses caras experimentam quando cada um volta sozinho para casa e se lembra de quem é.

Hinos nacionais geralmente são bélicos e ufanistas, falam em sangue, em canhões, em morrer pela pátria. A Marselhesa, então, é muito punk, meu camarada! Nunca a ouço sem me arrepiar dos pés à cabeça. Devo ter algum cromossomo francês, porque nesse instante vem tudo à minha memória: as lutas de espadas dos Pardaillans, as aventuras de Rocambole e de Arsène Lupin, os filmes de Godard-Resnais-Truffaut, os livros de Sartre e Camus, aquela cena de “Casablanca” em que um botequim inteiro canta o hino, desafiadoramente, na cara dos nazistas... Como não ser francês, ouvindo uma canção como aquela? Como não procurar com a mão o sabre mais próximo?

O hino norte-americano nunca me seduziu muito, devido ao meu preconceito esquerdista. Só vim a me emocionar com ele depois que Jimi Hendrix, em Woodstock, o transformou numa melodia torturada por gemidos, distorções e bombardeios. Pela primeira vez vi naquele hino a expressão do Eu profundo do povo americano: um Eu em preto-e-branco, dividido, fendido, contraditório, repleto de ética puritana e de permissividade decadente, o retrato de um país Jekyll-e-Hyde que escancara para o mundo o que o futuro nos reserva de melhor e de pior.

O Hino Brasileiro tem uma boa letra, que só se prejudica pelo excesso de pompa retórica, mas pelo menos não é um convite heavy-metal ao morticínio. Será impossível uma letra de Hino que seja um bom poema? Nesta Copa fiquei conhecendo o belo Hino da República Tcheca, que diz: “Onde é o meu lar? Onde as águas fluem pelos campos, os pinheiros se agitam nas ravinas, os jardins exibem o florir da primavera. É um Paraíso na terra, o país dos tchecos, o meu lar. Se você vir uma terra que parece o paraíso, e encontrar almas ternas em corpos ágeis e de mente clara, um país vigoroso e próspero, com uma força que capaz de enfrentar qualquer desafio... você terá encontrado a raça gloriosa dos tchecos, e é entre os tchecos que está o meu lar”.

1033) Mais gols da Copa (8.7.2006)



Os deuses do futebol devolvem com uma mão o que tiraram com a outra. Em 2002, Ronaldinho Gaúcho fez na Inglaterra aquele gol de falta lá do meio do campo, desmoralizando o goleiro Seaman. Agora, no jogo de 2x2 com a Suécia, coube ao inglês Joe Cole marcar um gol parecido e muito mais sensacional, uma das obras-primas da Copa até agora. Recebeu pelo lado esquerdo da intermediária, matou a bola e mandou um tirambaço de efeito, pegando adiantado o goleiro sueco, e colocando a bola de rosca lá no ângulo. Um gol para se ver o replay de joelhos.

Gol repetido por Maxi Rodríguez, da Argentina, com o gol que desclassificou o México. Desta vez a bola veio de Sorín, lá da ponta esquerda, e Rodríguez estava no bico direito de área. Recebeu a bola no peito e, sem deixar cair, mandou de pé esquerdo no ângulo direito. O gol salvou a Argentina, que não estava conseguindo furar a defesa do México, e dependia de um chute longo para acertar o gol. (Depois que escrevi estas linhas, vi na Globo um replay dos gols de Cole e Rodríguez, em imagens lado a lado, mostrando a semelhança entre os dois).

Do Brasil, vou escolher o último de Ronaldo contra o Japão, por causa da participação de Juan. O melhor zagueiro da fase classificatória da Copa (estatísticas da Fifa) ganhou uma bola na defesa, tinha espaço pela frente, e partiu. Quando o zagueiro vem desmarcado lá de trás, os defensores ficam com medo de “ataiar o home” e deixar alguém desmarcado. Juan foi, foi, tocou para Ronaldo, recebeu de volta, tocou de novo, aí Ronaldo girou num semicírculo fazendo a bola sobrar para o pé direito, e desferiu uma bomba que compensou com juros aquela vergonhosa “cheirada” que deu contra a Austrália.

Tiro o chapéu para David Beckham, um craque muito antipatizado neste país pelo fato de ser garoto-propaganda-de-si-mesmo. Mas se pegarmos uma peixeira daquelas bem boas e descascarmos todo o marketing, toda a parafernália “fashion” e “metrossexual”, toda a badalação pop, é um ótimo jogador, e bate na bola como ninguém. Seu gol de falta contra o Equador, nas oitavas de final, foi irretocável. Uma bola de curva, rente à trave, sem muita força mas inalcançável. E o melhor: um gol que ele já fez incontáveis vezes, tanto pela Inglaterra quanto pelo Real Madrid, ou seja: não é sorte, é competência. Até agora, a falta mais bem batida da Copa.

E há os gols que não são propriamente bonitos, mas mostram a inteligência por trás do jogo. Os três gols do Brasil em Gana foram três bolas enfiadas no meio da defesa adversária, que tentava fazer linha de impedimento. No primeiro e no último, Ronaldo e Zé Roberto entraram à vontade, na cara do goleiro. No segundo, a bola enfiada foi para a ponta-direita, onde Kaká e Cafu entraram livres para proporcionar a Adriano o gol (um gol meio de canela, parecida com um que Tostão fez na Copa de 70, no Peru, acho). Gols de beleza tática, feitos de paciência na espera, rapidez no lançamento e frieza na conclusão.

1032) FUCK (7.7.2006)



O palavrão tem o poder que lhe conferimos com nossa reação diante dele. Quanto mais uma platéia se escandaliza, mais está se deixando manipular por quem visava justamente o escândalo. Se você quer derrubar um humorista, que se esforça para ser engraçado, não ria. Se quer neutralizar um sujeito que quer escandalizar, não se escandalize.

Lembro-me, na adolescência, de uma peça teatral de Jean-Paul Sartre, A prostituta respeitosa. Descobri depois que o título em francês era La p... respectueuse. Logo na pátria do “filme francês” (que naquele tempo era gíria para “sacanagem”)! Fiz agora uma busca nos sebos online, e constato que a edição de 1947 da Gallimard traz o título completo: La putain respectueuse, ao passo que a edição de 1962 da mesma editora traz o palavrão abreviado. Por quê? Públicos diferentes, códigos diferentes? Mistério.

Nos anos 1970, “O Pasquim” usava muitos palavrões, e isto chegou ao máximo na famosa entrevista que fizeram com Leila Diniz, que falava mais palavrão do que um cantor de hip-hop. A censura os obrigou a substituir o palavrão por um asterisco entre parênteses: (*). Qual o propósito disto? Não sei, porque no jornal saía assim: “Ah, Fulano, vai tomar no (*)”. Pra mim, é a mesmíssima coisa. Os pasquineiros deitaram e rolaram em cima dessa bobagem. Daí a pouco estavam dizendo: “Ah, Jaguar, vai pra asterisca que asterisquiu!”

O diretor Steve Anderson está preparando o lançamento de um documentário intitulado Fuck, e o tema do filme é justamente a palavra-título. (Para quem não sabe, é a palavra que indica o ato sexual, seja como verbo, seja como substantivo) A imprensa americana costuma chamá-la “a palavra com F” (“the F-word”), e o filme já coloca uma interessante questão metalinguística, porque o debate a respeito da palavra estará não apenas dentro do filme, com em volta dele. Como o título vai aparecer no jornal? Na TV? Na fachada do cinema?

Creio que o Brasil, mesmo como todo falso moralismo, tem vistas largas nesse aspecto. Algumas palavras são palavrões num Estado, mas não são em outros. Quando um paulistano diz: “Tá fazendo um puta calor, ô meu”, ninguém acha que ele falou palavrão. Na Bahia, um pai diz ao filho pequeno: “Se quer ver TV, primeiro tem que estudar, fazer o dever de casa, a porra toda” – e ninguém acha que isto é pornografia. É um termo tão inócuo quanto o “trem” dos mineiros ou o “troço” nordestino. Por outro lado, já vi uma novela da Globo dizer “xibiu” em pleno horário nobre. Será que ninguém avisou o que quer dizer?

“Fuck” e “fucking” estão se tornando cacoetes verbais insuportáveis dos norte-americanos. É de longe a palavra mais pronunciada em qualquer diálogo entre marginais, bandidos, indivíduos rebeldes em geral. É uma palavra que revela a esquizofrenia moral do nosso mundo: o mais proibido é o que mais se procura, o que provoca mais emoção, o que desabafa mais, o que produz catarse mais intensa.

1031) Favoritismo (6.7.2006)


(Brasil 0x1 França)

Parecia um samba de uma nota só. Desde que saiu a lista de convocação da Seleção, um enxame de jornalistas passou a crivar Parreira com todas as variantes possíveis da mesma pergunta. O Brasil é favorito? Por que o Brasil é favorito? Você acha que o favoritismo do Brasil pode prejudicar o desempenho? Como lidar com o favoritismo? E assim por diante. Parreira negaceou, negou, irritou-se, mas acabou entregando os pontos e dizendo, numa entrevista histórica: “Precisamos assumir que somos mesmo favoritos”. Era tudo que a imprensa queria.

Temos uma carência profunda, freudiana, de que nosso time entre numa competição como “franco favorito” (eita adjetivozinho irônico). Eu sou o contrário. Gosto de entrar como franco atirador (lá vem o adjetivo de novo, parece um trauma), como zebra, azarão, que entra em campo sem ser percebido e vem comendo o campeonato pelas beiras como fez em 94. Pegar o adversário de surpresa, enquanto ele se distrai com a própria arrogância, a própria vaidade, o próprio favoritismo.

É fácil explicar a ânsia infantil de nossa imprensa e de nossa torcida pelo favoritismo. É o medo da disputa. É o medo de encarar a batalha, de bater de frente com o inimigo. Ficamos angustiados com a possibilidade de não conquistar o título, e resolvemos comemorar o título por antecipação, porque mesmo que venhamos a perder (como aconteceu agora), a maior parte da festa já aconteceu. Essa mentalidade contamina os jogadores, ainda mais cercados daquele oba-oba idiota: treinos sob aplausos, mocréias que invadem o gramado para se agarrar com os jogadores. Nosso time não se esforçou porque já estava cansado de comemorar o título por antecipação. É como dizia o Coronel Galdino (com vocabulário mais regional e mais descontraído, claro): “Se o orgasmo viesse no começo, ninguém se daria ao trabalho de consumar o intercurso”.

À Seleção de 2006 aplica-se a crítica feita por Zico após a derrota de uma de nossas seleções olímpicas: “O problema é que eles foram buscar uma medalha, e as outras seleções foram disputar uma medalha”. Leio no jornal que em Chapecó (SC) um grupo de desorientados queimou uma estátua de Ronaldinho Gaúcho, que outro grupo de desorientados tinha erguido alguns anos atrás. Estes saltos maníaco-depressivos, em que passamos da euforia para a caça-às-bruxas, são um registro eloqüente da nossa infantilidade emocional. Somos como o menino mimado que, quando um brinquedo emperra, ele, em vez de tentar consertá-lo, joga-o pela janela do apartamento. Nossa Seleção tem excelentes jogadores, e repito o que já escrevi aqui: se jogassem como num clube, treinando juntos, decentemente, o ano inteiro, formariam um time quase imbatível. Nossa faxina emocional teve início na noite de sábado passado. Os Reis do Futebol estão nus. Recomecemos de baixo, galera! Eu prefiro assim. Vai doer, mas é o caminho mais promissor para o nosso desempenho na Copa de 2010. Brasil-ziu-ziu!