quarta-feira, 13 de maio de 2009

1024) Estética e Matemática (28.6.2006)



Podemos distinguir na Matemática o “processo dinâmico” em que a demonstração de um teorema transcorre ao longo do Tempo, e o “resultado estático” a que ela chega, quando bem sucedida. No primeiro caso, acompanhamos a evolução do raciocínio do matemático como acompanhamos uma história contada por um escritor. Mistérios e problemas vão surgindo e vão sendo satisfatoriamente explicados e resolvidos, até um desfecho final que “amarra” harmoniosamente todos os elementos que nos foram apresentados. Em casos assim, o pensamento matemático compartilha alguns elementos estéticos que encontramos no teatro ou no romance. Por outro lado, o resultado de tais raciocínios resulta muitas vezes numa fórmula abstrata, ou num diagrama geométrico, que ao serem vistos produzem um impacto estético imediato em que os contempla. Neste último caso, tais diagramas já existem num terreno em comum com o das Artes Visuais.

A Geometria, sendo a tradução visual da Matemática, pode nos dar uma satisfação estética parecida com a que nos dão as Artes Plásticas. Não sei se no computador de vocês existem esses protetores-de-tela, ou “screen savers”, em que formas geométricas coloridas vão se desfazendo e recombinando o tempo todo. Quando eu descobri isso quase morro de fome, porque ligava o computador e não conseguia mais trabalhar. Ouso mesmo dizer que o protetor-de-tela (com suas fractais, seus vitrais, seus balés abstracionistas) está se tornando uma Arte Decorativa tão importante para nossa época quanto o foi a arte do Mosaico ou a arte do Bordado em outras épocas. Só neste pequenino trecho da Teoria Estética, caros leitores, tem material bastante para várias teses de Mestrado. Alguém se habilita?

A Geometria expressa relações através de linhas, planos, formas, etc. Essas relações podem ter elementos de Harmonia, Simetria, etc. que encontramos expressos nas Artes Visuais. Alguém dirá que as Artes Visuais são artes porque expressam o modo humano de ver as coisas, ao passo que a Geometria, sendo uma Ciência (ou mais precisamente: uma Linguagem que se aplica às Ciências) é necessariamente impessoal, abstrata, não-humana. Bem, certas áreas da arte moderna são tão abstratas quanto um livro de Euclides. Se você consegue extrair satisfação estética de um quadro de Vasarely ou Mondrian, por que não faria o mesmo folheando um livro sobre Curvas Fractais?

Alguns desses grupos de artistas (Neo-Plasticistas, Abstracionismo Geométrico, ou sei lá como se chamam) têm sido criticados porque seu apego ao jogo rígido de formas estaria desumanizando a Arte. Do lado de cá, me parece que eles estão humanizando a Ciência: transpondo o mundo conceitual e árido das formas para um campo em que elas se contaminam da aura estética das obras (de outros estilos) que as cercam, nos museus, nas galerias, e provam que as criações do intelecto puro também podem ser humanas, e belas.

1023) Brasil x Gana (27.6.2006)



Escrevo estas linhas na noite do domingo, dia 25. Até agora, classificaram-se quatro das oito seleções que irão disputar as quartas-de-final da Copa. Ninguém brilhou. A Argentina, que tinha feito uma partida quase perfeita nos 6x0 sobre Sérvia-Montenegro, jogou mediocremente contra a Holanda, e agora contra o México. A Inglaterra marcou 1x0 no Equador no segundo tempo e levou dois cartões amarelos de tanta cera que fez. O time da Alemanha é uma daquelas divisões Panzer que eles mandam pra Copa de 4 em 4 anos: atropela todo mundo e vai em frente, agora empurrada pela torcida. Portugal bateu a Holanda por 1x0 num jogo emocionante mas feio, cheio de agressões, onde venceu o menos atrapalhado.

Brasil x Gana! Pense num jogo complicado. Já vi seleções olímpicas do Brasil perderem feio para Nigéria, para Camarões. Os times africanos têm tudo que nós temos de bom: a ginga, o drible, a agilidade, a flexibilidade, o improviso, o senso lúdico, a intimidade com a bola resultante de ter jogado com bola de meia, de plástico, de papel, de palha, de pano. Individualmente, os jogadores são espertos, quase todos jogam em times europeus. O que lhes falta é estrutura, tecnologia de treinamento, formação técnica e tática desde a base. O problema das seleções africanas não é dentro de campo, é fora; os times são bons, mas as estruturas... Dá pra tirar pelas nossas, pelas dos clubes profissionais do Brasil inteiro, que em geral são um horror.

Um jogador ganense disse: “Admiramos o futebol brasileiro, mas não temos medo. Muita coisa que o Brasil tem, deve a nós”. E está certo; deve também a Angola, a Moçambique, ao Senegal. Pode ser um jogo excelente, caso o Brasil faça uma escalação parecida com a do último jogo, e caso os ganenses joguem um futebol aberto, ofensivo (o que é provável) e sem violência (o que é difícil, porque batem que dá gosto). Nesta Copa, ninguém sentiu muita falta de Camarões, Nigéria ou Senegal, que já fizeram participações brilhantes em outras vezes. Gana e Costa do Marfim foram boas surpresas: dois times rápidos, habilidosos, com muita força física, talento, objetividade.

Tudo indica um jogo mais bonito e mais emocionante do que os que o Brasil fez até agora. Já enfrentamos o xadrez retrancado da Croácia, a vitalidade taurina dos australianos, a agitação entomológica dos japoneses. Vamos agora ter um teste atraente e difícil: uma escola de futebol semelhante à nossa, uma espécie de versão-beta de nossa própria Seleção, talvez sem os mesmos talentos individuais, mas com a capacidade de, num dia bom, numa daquelas tardes em que tudo dá certo, virar a mesa das expectativas e fazer História.

Se perdermos, vou ficar torcendo por uma final Portugal x Gana. De um lado, a fidalguia ibérico-católica, herdeira de Dom Sebastião e dos navegadores de Sagres. Do outro, a sabedoria milenar negro-tapuia, os jaguares ferozes do deserto. Seria a única maneira de termos o Brasil na final da Copa.

1022) O personagem sem dimensões (25.6.2006)




(ilustração: Diogo Salles)

Quando começa uma novela na TV, eu dou uma espiada no primeiro capítulo para reencontrá-los. E de vez em quando eles voltam. 

O Milionário de Bom Coração. A Jovenzinha Mimada. A Vizinha Fofoqueira. O Gigolô Sem Escrúpulos. O Casal Maduro em Crise. O Ex-Delinqüente Em Busca de Uma Chance. O Burocrata Inflexível. O Biscateiro Boa-Praça. E assim por diante. 

É típico da cultura-de-massas que certos personagens tenham uma dimensão apenas, uma característica, uma fórmula simples que os define logo nas primeiras cenas em que aparecem, e que continuará a defini-los até o final.

Um sujeito que é descrito logo no começo como o Conquistador Inveterado vai ter daí em diante a obrigação de olhar as pernas de toda mulher que passa, fazer fi-fiu, pedir telefone do cachorrinho, sussurrar no cangote da empregada. 

Não haverá nenhuma cena em que ele não seja obrigado a repetir esse conjunto de gestos, para que o espectador não esqueça: está diante de um Conquistador Inveterado. Ele pode ser bombeiro, advogado, surfista ou jogador de futebol, e sua profissão ficará ausente ou subentendida em muitas cenas; mas não o fato de que sua função na história é ser um Conquistador Inveterado. Ou um Marido Banana. Ou um Velho Ranzinza.

Existem dois tipos de espectadores de novelas: o que vê todo dia, e o que vê de vez em quando. Este último costuma perder de vista os personagens, que sempre são muitos, e é bem possível que com a novela há dois ou três meses no ar ele ainda não reconheça todo mundo. 

Isto (creio eu) explica o fato de que as pessoas de uma mesma família se chamem tanto pelos nomes: “Mas Ludmilla, vocês não vão marcar esse casamento nunca?” “Ora, Vanessa, estou esperando Jaime se formar”. É preciso martelar na memória do público distraído que esta aqui é Vanessa, a outra é Ludmila. 

O mesmo se aplica às características psicológicas de um personagem. Se Fulana de Tal está caracterizada como sendo a Solteirona Azeda e Repressora, não faz muito sentido mostrá-la numa cena doce, encorajando a sobrinha a namorar com o padeiro. Porque “contradiz o personagem”.

Personagens podem ter mais de uma dimensão. Fulano é um Burocrata Inflexível, que só pensa no trabalho? Mas ele pode ser também o único sujeito ético da empresa onde trabalha, qualidade positiva que o torna um personagem mais complexo. 

E pode ser além disso um sujeito que tem um hobby meio juvenil, o que o torna simpático por outro lado. E pode ser um cara apaixonado em vão por uma mulher, o que lhe dá uma aura de romantismo e sofrimento. Nada disto contradiz sua “definição”. 

São características que apontam em direções diferentes. Isto enriquece o personagem, porque sabemos intuitivamente que as pessoas de verdade são assim. Mas sutilezas assim só podem ser percebidas e assimiladas por quem se aprofunda na obra; no caso da novela, por quem vê todo dia. Será o medo de perder o público flutuante que impede a novela de ir mais longe?








1021) Matemática e Estética (24.6.2006)



A Ed. José Olympio relançou a Iniciação à Estética de Ariano Suassuna, um volume despretensioso e utilíssimo em que o autor “dá uma geral” nas principais teorias da Estética, de Platão e Aristóteles até Hegel e Bergson. Mesmo lidando com uma matéria tão rarefeita, Suassuna evita o jargão e mantém o discurso num tal nível de acessibilidade que até eu, que tenho uma formação filosófica da ordem do zero-vírgula, fico com a sensação de ter entendido uma porção de coisas. Pois já dizia Ortega y Gasset: “A clareza é a cortesia do filósofo”.

Alguém dotado da mesma clareza devia escrever um livro intitulado “Iniciação à Estética da Ciência”. Discutem-se os aspectos estéticos das obras de Arte (as quais, é claro, têm outros aspectos além deste: aspecto social, político, comercial, etc.) e ninguém fala no lado estético da Ciência no que tem de mais criativo. O excelente livro A Experiência Matemática de Philip J. Davis e Reuben Hersh tem um capítulo intitulado “A componente estética”, que abre com uma admissão explícita, por parte de Aristóteles, de que todos os elementos que caracterizam o Belo na Arte também estão presentes nas ciências matemáticas. Reuben e Hersh lamentam a pouca discussão formal destes aspectos, embora eles façam parte da atividade teórica e prática dos matemáticos, e os comparam aos móveis coloniais norte-americanos: não existe nenhuma codificação teórica do seu estilo, não obstante eles seguiam uma tradição estética passada de pessoa para pessoa.

Dizem eles: “Têm sido feitas tentativas para decompor a estética matemática em suas componentes – alternâncias de tensão e repouso, expectativas alcançadas, a surpresa de perceber relações insuspeitadas e unidades, prazer visual sensual, prazer na justaposição do simples e do complexo, da liberdade e das existências, e, naturalmente, nos elementos familiares da arte, harmonia, equilíbrio, contraste, etc.” Pode-se distinguir a existência de aspectos estáticos e dinâmicos na Matemática. Quando Reuben & Hersh usam termos como “expectativa”, “surpresa”, “alternâncias de tensão e repouso”, claramente estão considerando a Matemática como um processo que se desenrola no Tempo (como seriam na arte o teatro ou a música) e não simplesmente um objeto estático que pode fornecer uma impressão instantânea (como uma escultura ou uma pintura), ainda que um exame mais prolongado possa revelar novos detalhes ou novas relações.

Não podemos mostrar um segundo de uma sinfonia ou de uma canção, para dar uma idéia do que é a obra. A música ocorre no Tempo, e é impossível apreendê-la num relance. Por outro lado, uma pintura possui uma “totalidade instantânea”. Podemos apreender num vislumbre o conjunto da obra, mesmo que seja o teto da Capela Sistina. Eu imagino que certas fórmulas matemáticas, como E=mc2, têm essa beleza instantânea, mesmo que para apreender essa beleza exista um processo subentendido, processo que precisa ser esmiuçado ao longo do tempo.

1020) Nosso complexo de vira-lata (23.6.2006)



Em tempo de Copa, voltam a ressoar os clichês de sempre: “a Europa curvou-se ante o Brasil”, “com o brasileiro não há quem possa”, etc. Slogans triunfais que tentam revogar, com uma penada, nosso complexo de inferioridade diante da Europa e da América do Norte. (Por alguma razão freudiana, nenhum brasileiro se sente inferior aos africanos ou aos asiáticos.) De 1958 em diante fizemos do futebol o principal argumento para nos convencermos de que não somos uma sub-raça, não somos vira-latas, não somos terceiro-mundo (na cabeça de quem pensa assim, estes três termos são sinônimos).

Mas, afinal, quem é que se acha inferior aos europeus e norte-americanos? Curiosamente, não é o povão. O povão brasileiro consegue admirar, boquiaberto, as façanhas econômicas e sociais daqueles povos, mas nem por isso deixa de achar que o seu próprio sistema de vida vale a pena. Pergunte a um sertanejo nordestino, a um morador de periferia de metrópole, a um capiau do Sudeste ou Centro-Oeste, a um pescador litorâneo ou a um dono de bodega de cidadezinha do interior: “O sr. acha que o povo brasileiro é inferior ao povo dos Estados Unidos?” O máximo que ele vai dizer é: “Inferior não! É mais pobre e mais bagunçado, mas pode muito bem tomar jeito”. Tirando aqueles que estão mergulhados na depressão profunda da miséria (e são muitos milhões, acreditem), os brasileiros do Brasilzão podem se achar injustiçados, sacaneados, esquecidos, explorados, irresponsáveis, o escambau. Inferiores, nunca.

O complexo de inferioridade, o complexo de vira-lata a que se referiu tantas vezes Nelson Rodrigues, é cultivado pelas nossas elites, a quem cabem as fatias mais gordas do PIB, as melhores oportunidades de estudo e trabalho, e a quem compete dialogar com os países estrangeiros – os nossos políticos, nossos diplomatas, nossos industriais, nossos banqueiros, nossos artistas, nossos intelectuais... Estes, que vivem em contato com o “mundo lá de fora”, enrubescem de vergonha todas as vezes que, lá fora, são identificados como brasileiros e tratados como cidadãos de segunda classe. Estes, que em princípio seriam os únicos batizados contra o pecado original da pobreza, são os que mais se angustiam ao perceberem que isso não lhes garante a entrada automática no Paraíso do Primeiro Mundo.

“É coisa de Primeiro Mundo!” Com que volúpia, com que inveja, com que suplício de Tântalo os membros da nossa elite vira-lata pronunciam esta frase, toda vez que vêem algo limpo, algo bonito, algo organizado, algo decente, algo justo, algo bem-feito, algo que é como devia sempre ser. Com que desespero eles constatam que são civilizados o bastante para saberem o que é “bom”, mas não o bastante para compartilharem daquilo em sua plenitude – porque trazem em seu DNA esses genes mulatos, caboclos, terceiro-mundistas. Talvez isto explique a volúpia de Tânatos que possui essa elite, disposta a afundar o país mesmo que tenha de morrer afogada junto com ele.