terça-feira, 7 de abril de 2009

0958) O botão do prazer (12.4.2006)



Em seu utilíssimo livro The Science in Science Fiction (New York, Alfred A. Knopf, 1983), em que examina a base científica de muitas invenções e cenários futuros propostos pela FC, Peter Nicholls refere à página 157, no capítulo “Sonhos e Pesadelos do Futuro”, um curioso experimento de laboratório. Em 1958 o Dr. James Olds localizou no cérebro dos ratos brancos uma área que ele denominou de “centro de prazer”. Quando estimulada eletricamente, esta área parecia capaz de provocar no animal uma sensação intensamente agradável.

O Dr. Olds plugou nos crânios dos ratos alguns fios ligados a este centro-de-prazer, e os trancou em pequenas cabines onde havia uma barrazinha metálica que, uma vez pressionada, produzia uma leve descarga elétrica no fio. Ou seja, cada vez que o rato erguia as patinhas e apertava a barra, sentia um prazer intenso. Num dos experimentos, um rato pressionou a barra cerca de duas mil vezes por hora, durante 24 horas seguidas, sem parar sequer para comer ou beber, e depois perdeu os sentidos, dormindo durante todo o dia seguinte. Nicholls comenta que, do ponto da vista da ficção científica, isto nos leva a imaginar sociedades futuras onde “tarefas sem sentido sejam obsessivamente repetidas através do engodo de sensações agradáveis produzidas diretamente no cérebro”.

Pelo que vejo, no meio século seguinte a Ciência do Prazer evoluiu bastante. Plugues elétricos no cérebro são complicados de executar, mas aí está a indústria químico-farmacêutica, com seus estimulantes e anti-depressivos; drogas legais como o Prozac ou ilegais como o ecstasy; e assim por diante. Não é impossível contudo, que a tecnologia da Realidade Virtual (com seus capacetes, óculos, fones, luvas, sensores corporais) venha a assimilar algo desse princípio.

Não é absurdo supor que no futuro existam, por exemplo, Bordéis Virtuais onde o sujeito se inscreve, paga uma taxa, vai para um quarto e ali entra num escafandro cheio de eletrodos. No interior do capacete ele terá estímulos visuais, auditivos, e uma estimulação dos centros de prazer do cérebro, enquanto no restante da “vestimenta” recebe pequenos impulsos elétricos que lhe dêem a ilusão de movimento, de tato, de contato. Ele se sentirá tendo relações com uma mulher escolhida num “menu” oferecido pela gerência, e, como nas jogos eletrônicos, tanto pode escolher parceiras pré-programadas (que podem incluir atrizes, modelos famosas, etc.) como pode configurar sua própria “receita de mulher”.

Mais do que as “tarefas sem sentido obsessivamente repetidas” sugeridas por Peter Nicholls, me parece que uma cultura hedonista, permissiva e narcisista como a nossa tenderá a usar esse “botão do prazer”, conjugado a estímulos químicos e ambientações virtuais, para criar uma Indústria do Desejo não muito diferente da Máquina do Sexo do filme Barbarella ou das engenhocas eróticas imaginadas por Tomi Ungerer.

0957) O tele-autógrafo (11.4.2006)




(O Unotchit)

Observo com curiosidade o estranho hábito contemporâneo de colecionar assinaturas alheias. Fosse eu um pouco mais malicioso do que sou, imaginaria que quem pede um autógrafo está pensando em falsificar a assinatura do sujeito incauto que sai por aí mostrando a todo mundo como rubrica seus cheques. 

Surgiram desse ritual as famosas “noites de autógrafos” que todo escritor é obrigado a cumprir para divulgar seus livros. Durante uma festa ou um coquetel, o autor atende os leitores um por um, trocando algumas frases cordiais, e escrevendo uma dedicatória cortês. Livro na mão, o leitor vai para casa duplamente satisfeito: conseguiu um contato pessoal com o autor que admira, e pode prová-lo, porque na folha de rosto do livro está escrito: “Para o inteligente e talentoso Braulio Tavares, com o abraço e a admiração de Machado de Assis”. 

Surgiu agora uma invenção da canadense Margaret Atwood (autora de Madame Oráculo, O Assassino Cego, etc.), uma engenhoca que permitirá a todo mundo dar autógrafos à distância. É uma espécie de “notepad” que se conecta a uma caneta movida por uma garra eletrônica. As palavras que são escritas na superfície do notepad no terminal “A” são reproduzidas pela garra-caneta no terminal “B”. Ambos, é claro, podem estar a milhares de quilômetros de distância. 

Para reduzir a impessoalidade da ação, o sistema é conectado a um sistema de webcams com áudio, que permite ao fã conversar com o autor durante o breve encontro. Atwood é uma autora bissexta de ficção científica (A História da Aia, Oryx e Crake), embora ela não goste do rótulo. Diz ela: 

“Não posso estar fisicamente em cinco países ao mesmo tempo, mas com este sistema posso autografar em cinco países sem o desgaste físico das viagens”. 

Sábias palavras de quem tem 66 anos! A autora teve a idéia do tele-autógrafo, reuniu técnicos e criou uma firma para produzir a máquina, à qual batizou como Unotchit (que se pronuncia “you not touch it”, “você não toca nisto”). 

Tudo bem; mas é preciso lembrar que o autógrafo é uma pequena cerimônia no altar do Ego. Não o Ego do artista famoso, mas o Ego do fã anônimo, que usará o autógrafo para convencer a si mesmo e aos outros de que o Artista Famoso o conhece: não está ali uma prova insofismável? 

É fácil esquecermos que Fulano de Tal já deu dezenas de milhares de autógrafos a pessoas com as quais não se demorou mais do que trinta segundos. Os trinta segundos que nos foram dedicados são inesquecíveis e preciosos, temos a prova manuscrita do Contato, e isto nos basta para ficarmos pensando pelo resto da vida que também somos importantes. 

Nesta nossa civilização do Ego, bastam alguns minutos passados ao lado de um ídolo (e o nosso nome escrito em sua caligrafia com uma frase gentil) para que possamos alimentar durante muitos anos a sensação de que nós também existimos naquele mundo encantado que só podemos admirar à distância.







0956) A tradução e o original (9.4.2006)



Borges afirmou, num ensaio célebre, que cada autor cria seus próprios precursores, quando cristaliza um estilo ou um universo temático, e com isto agrega a si obras dispersas de autores que o antecederam, que ninguém lembraria em conjunto se não fosse por ele. Hoje há muitos “precursores de Kafka”, mas se Kafka não tivesse existido e criado uma obra tão forte nós não nos aperceberíamos deles, ou daquela peculiar inclinação presente em suas obras. Um precursor é, de certa forma, um eco que precede o som. Esta teoria é um das muitas que Borges elaborou para dizer que o Presente e o Futuro modificam o Passado. O Passado não é intocável, porque ele é Linguagem. Só existe quando é citado, referido, exibido, e ao fazermos isto podemos interferir nele. George Orwell dizia algo semelhante em 1984, sobre o modo como as ditaduras reescrevem a História em seu próprio benefício.

Ariano Suassuna tem um divertido parágrafo no Romance da Pedra do Reino (Folheto LXXVII), quando o poeta católico-ibérico Samuel Wandernes afirma: “Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso! Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da ‘Ilíada’ e da ‘Eneida Brasileira’: Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores grego e latino dessas obras dele! Castilho é o autor do ‘Fausto’ e do ‘Dom Quixote’, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da ‘Divina Comédia’ que Dante traduziu para o italiano!”

Como em todas as galhofas de Suassuna, esta tem um curioso fundo de verdade, se não com relação aos nomes citados, mas no que diz respeito à dinâmica da recriação das obras. Traduzir é apossar-se de um texto alheio, dando-lhe uma forma nova que pode, às vezes, ser atribuída mais ao tradutor do que ao autor. No idioma inglês, a Bíblia traduzida por ordem do Rei Jaime I criou modelos linguísticos tão fortes a partir do século 17 que acabou tendo tanta influência literária quanto influência espiritual; o mesmo pode ser dito da tradução alemã de Lutero. Quem traduz, cria um objeto novo. Vemos isto o tempo todo na música. “My Way”, o grande sucesso de Frank Sinatra, é na verdade uma canção francesa (“Comme d’habitude”) que teve versão em inglês feita por Paul Anka. Ninguém lembra disto. Todo mundo acha que o original é em inglês.

Os norte-americanos têm feito nos últimos anos numerosas refilmagens de filmes estrangeiros que fizeram sucesso mediano: Três solteirões e um bebê, Vanilla Sky, Desperado, todos são traduções que na cabeça de muita gente se tornaram “the real thing”, o filme original, e o outro uma cópia antecipada. “Traduzir” um filme é diferente de traduzir um texto, mas a mecânica básica é a mesma. Se alguém me pedir para traduzir Guerra e Paz de Tolstoi, está me pedindo para ler um livro em russo e escrever um livro em português dizendo as mesmas coisas, até onde for possível. É uma obra que não existia antes na língua portuguesa; é um livro novo.

0955) Dicionário da MPB (8.4.2006)



Uma das grandes vantagens da Internet é a possibilidade da consulta rápida a obras de referência como dicionários e enciclopédias. Sou do tempo em que um tradutor profissional, aqui no Rio de Janeiro, tinha que anotar num caderninho as principais dúvidas e depois passar uma tarde na biblioteca do Consulado Americano, rastreando palavras ou expressões obscuras. Hoje em dia, encontra-se isto com um simples clique.

Um saite a que costumo recorrer quando escrevo sobre música é o “Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira”, em: http://www.dicionariompb.com.br/. Acho que alguns leitores devem achar que eu sou uma sumidade ou que tenho memória privilegiada, porque quando falo de um disco antigo eu dou a data, ou quando cito versos de uma canção obscura eu dou o nome dos compositores. Ledo engano, amigos. Eu vou lá e procuro. Se o que estou fazendo aqui é jornalismo (como imagino que seja), me sinto na obrigação de dar a informação exata.

O “Dicionário Cravo Albin” é muito útil para pesquisas ou mesmo para “ficar passeando” lá dentro e reencontrando nomes que a gente tinha esquecido. Pode-se buscar um nome específico, pode-se clicar num índice alfabético, pode-se seguir uma dica aleatória que aparece do lado esquerdo da tela cada vez que ela é carregada. Agora mesmo, na tela que abri, apareceu: “Você conhece? Vanildo dos Pombos”. Eu nunca tinha ouvido falar, mas cliquei pra conferir, e sei agora que Vanildo é um sanfoneiro nascido em Vitória de Santo Antão, já tocou com o Mestre Ambrósio, teve a música “Vaqueiro Arroxado” gravada por Genival Lacerda, e assim por diante.

Para efeito deste artigo, bolei um teste. Anotei 10 nomes de artistas que muita gente talvez não conheça, para ver se havia verbetes sobre eles: Ari Lobo, Sérgio Murilo, Augusto Calheiros, Silvério Pessoa, Demônios da Garoa, Paraguassu, Gordurinha, Pedro Osmar, Celso Adolfo e Claudionor Germano. Olhei de um em um: o saite tem verbetes extensos sobre todos, com biografia, comentários e discografia (ou lista de obras, no caso dos compositores). Os verbetes não esgotam o assunto, mas se você quer ter uma idéia de quem são esses artistas, é um ótimo começo. Notei que nos casos de Silvério e de Pedro Osmar falta uma atualização discográfica com CDs mais recentes. Olhei o verbete a meu próprio respeito: tem várias incorreções de títulos ou de datas, mas no geral é um verbete útil e preciso.

Dicionários assim podem servir para tirar dúvidas de especialistas, mas servem principalmente para dar elementos ao ouvinte casual ou ao jornalista que precisa terminar um artigo. Se ele não sabe quem são Titane, Edvaldo Santana, Américo Jacomino, Cabruêra, o grupo Rumo, a banda Ave Sangria – não esquente, é só clicar. Claro que não tem tudo. Não achei verbetes sobre Carlos Pitta, Manuelzinho Silva, Júnior Barreto... Mas, se nem tudo no mundo é perfeito, então qualquer coisa pode ser aperfeiçoada.

0954) “Z” de Costa-Gavras (7.4.2006)



Foi um dos filmes mais discutidos da década de 1970 e certamente um dos filmes políticos mais discutidos de todos os tempos. Ganhou um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, e foi proibido no Brasil pela ditadura militar, curiosa contradição que nos leva a lembrar o quanto os súditos, muitas vezes, querem ser mais realistas que o rei. A verdade é que Z de Costa Gavras não poderia mesmo ter sido exibido aqui no Brasil. A história que conta parecia-se demais com as histórias dos assassinatos políticos que estavam acontecendo em nosso próprio país. E ainda se parece. Não pude deixar de recordar casos confusos do momento atual, como as mortes não-explicadas de políticos como os prefeitos Celso Daniel e Toninho do PT. São aqueles casos em que morre um sujeito, e durante os anos em que se arrasta o processo ocorre uma verdadeira epidemia de mortes “naturais” e “acidentais” exterminando as testemunhas. É pior do que a Maldição do Faraó.

Z refere-se de modo indireto mas claro à Grécia daquele tempo, então sob a ditadura de um bando de coronéis. No filme, um cientista (Yves Montand) chega a uma cidade do interior para participar de um comício anti-nuclear. As autoridades fazem o que podem para intimidar os organizadores do comício, mas este acaba se realizando. Do lado de fora, a polícia vigia a guerra de slogans e cartazes entre grupos pacifistas e anti-pacifistas. Infiltrados na multidão, estão alguns brutamontes que acabam ferindo mortalmente o cientista. O resto do filme acompanha a investigação feita por um promotor não-alinhado com os militares (Jean-Louis Trintignant) e um fotógrafo independente que presencia o crime e resolve denunciá-lo (Jacques Perrin).

Z tem um ótimo roteiro, uma narrativa rápida, e um dos seus pontos principais é o modo como nos exibe as entranhas das ditaduras militares. Alguns dos personagens principais do filme são aqueles sujeitos meio marginais, meio sub-empregados, metidos a brutamontes, que nos regimes violentos são usados nos grupos de quebra-quebra, nos enfrentamentos com estudantes, etc. Muitas vezes se organizam em grupos de intimidação ou de extermínio. São pura massa de manobra: sujeitos broncos, metidos a machões, doidos por uma chance para participar de espancamentos sob a proteção de uma autoridade qualquer.

Um velho provérbio diz que a maior ameaça numa ditadura não é o ditador, é o guarda da esquina. As ditaduras impõem a violência para atingir seus objetivos, e, como vivem da violência, interessa-lhes estimular o florescimento desta nobre atividade. Isto lhes permite recrutar para si os violentos não-ideológicos (os que só querem mesmo um pretexto para dar porrada) e extinguir a violência ideológica dos grupos de oposição, como foi feito com nossa guerrilha tupiniquim. O curioso é que mesmo depois que as ditaduras acabam, não acaba a tentação de recorrer aos seus métodos. “Vamos dar um cala-a-boca em Fulano antes que ele estrague tudo”.