quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

0816) A piscina dos artistas (28.10.2005)



Numa entrevista à revista inglesa Mojo (a melhor revista de rock que conheço), Paul McCartney refere um episódio divertido da carreira dos Beatles. Diz ele que, no auge da Beatlemania, Lennon (então casado com Cynthia) tinha comprado uma casa em Weybridge, perto de Londres. Eles estavam trabalhando nas canções do filme Help, e Lennon disse: “Ei, eu estou precisando de uma piscina aqui em casa”. “OK,” respondeu Paul, “então vamos compor uma piscina. Tem alguma idéia?” Lennon (cantarolando): “Eight days a week...” “Grande idéia! Isso vai dar uma piscina!” E logo a música estava composta. Diz McCartney, hoje: “Claro que isso era apenas um tipo de brincadeira que a gente fazia para manter a sanidade mental no meio daquela loucura. Mas não estávamos compondo qualquer porcaria só para construir uma piscina. Nós conseguíamos a piscina compondo músicas que julgávamos ser obras de arte”.

O conceito de “minha arte por uma piscina” dos Beatles coincide com um exemplo conhecido no campo da ficção científica, o de Robert Heinlein, o autor de Um Estranho numa Terra Estranha. O editor John W. Campbell declarou certa vez: “O problema com Bob é que ele não tem necessidade de escrever. Quando eu quero arrancar uma história dele, a primeira coisa que preciso é pensar em algo que ele gostaria de ter e não tem, como uma piscina. Em segundo lugar, tenho que convencê-lo de que ele precisa da piscina. E em terceiro lugar preciso convencê-lo de que ele precisa escrever e publicar uma história para poder pagar pela piscina”.

Tem um sutil detalhe psicológico aí. Existem indivíduos que não têm a ambição do dinheiro propriamente dito, a ambição do enriquecimento. Eles gostam das coisas boas que o dinheiro pode trazer-lhes, mas nem mesmo elas são um estímulo suficiente para que eles queiram enriquecer. É preciso às vezes surgir uma necessidade específica, uma bobagem, talvez, mas de qualquer modo algo que eles efetivamente queiram e precisem, para mobilizá-los, mobilizar sua energia criativa.

Os Beatles e Heinlein são um meio-termo entre os Ambiciosos (os que depois da primeira piscina precisam de uma segunda, uma terceira, etc.) e os Desambiciosos, para quem não vale a pena se esforçar para conseguir seja o que for, porque “podem muito bem passar sem aquilo”. Estes últimos muitas vezes produzem uma obra simplesmente pelo prazer que a criação artística lhes traz, pelos desafios “internos” do seu próprio trabalho (“será que conseguirei escrever este livro, pintar este quadro, fazer este filme do jeitinho que o imaginei?”), mas não se sentem motivados pela perspectiva de ganhos materiais. Pra motivar um ambicioso, basta colocá-lo em movimento, e ele nunca mais vai parar, porque não existe limite para o acúmulo de coisas materiais. Para motivar o outro, é preciso mantê-lo ligado no desafio da criação propriamente dita, os únicos capazes de fazê-lo arregaçar as mangas e pôr mãos à obra.


0815) Os memes de Machado de Assis (27.10.2005)




“Memes” são aqueles grãos de idéia que se instalam em nossa memória e parecem ter ali uma presença tão vívida que se mantêm à tona de nossa consciência. São aquelas coisas que ouvimos e que por alguma razão nos parecem interessantes, e ficam sempre “na ponta da língua”, prontas para serem passadas adiante na primeira conversa. 

Provérbios, slogans, trocadilhos, clichês, lendas urbanas, preconceitos, fofocas, boatos... 

Grande parte de nosso material bruto para conversa tem algo de meme, funciona como um meme. (Ver “Os memes”, 23.5.2003) Os memes, como a gripe, propagam-se no boca-a-boca, ou melhor, no voz-a-voz. 

Machado de Assis, um fazedor de frases como há poucos, tinha a noção clara de como estas coisas acontecem, e embora não se tenha detido a teorizar o processo, ilustrou-o de forma cabal em pelo menos dois escritos. 

Um destes é “O Anel de Polícrates” (em Papéis Avulsos, 1882), um diálogo entre dois personagens, em que “A” explica para “Z” detalhes da vida de um intelectual, um tal de Xavier (inspirado em Artur de Oliveira, amigo de Machado que morreu tuberculoso aos 30 e poucos anos). 

Xavier tem um dia uma idéia que lhe parece brilhante, e que se cristaliza numa frase: “A vida é como um cavalo xucro, ou manhoso; e quem não for bom cavaleiro, que o pareça”. Xavier profere a frase a um amigo, e nas semanas seguintes a reencontra na mesa ao lado num restaurante, numa roda de comensais num baile, num editorial de jornal, numa comédia no teatro, e por fim, suprema ironia, a ouve dos lábios moribundos do próprio amigo a quem a dissera pela primeira vez. Recomendo a leitura do conto, em que há muito mais que isto. 

O outro texto é “Evolução”, em Relíquias de Casa Velha (1906), que começa de uma maneira bem machadiana: “Chamo-me Inácio; ele, Benedito”. Os dois se conhecem numa viagem de diligência a Vassouras; falam dos problemas viários do país, e Inácio comenta: “Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro”. 

Daí em diante, Benedito irá se apropriando aos poucos da frase do outro. Dias depois a recorda a Inácio, dizendo; “Como o senhor dizia...” Os anos passam, os dois continuam amigos, Benedito entra para a política. Encontram-se por acaso em Paris, e a certa altura ele lembra a Inácio: “Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil, etc. etc.” 

Corre mais um ano; Benedito torna-se deputado, redige seu discurso de estréia e o mostra a Inácio, que se depara a certa altura com isto: “E aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil, etc. etc.” Inácio fica boquiaberto e silencioso, e só lhe ocorre atribuir este fenômeno de mutação da paternidade de uma idéia a um efeito da Lei da Evolução, de Herbert Spencer. 

O mundo das idéias e dos memes, amigos, sempre foi uma Internet “avant la lettre”. Nossos bisavós já copiavam e assinavam embaixo.








0814) O motorista e a circular (26.10.2005)



Foi muitos anos atrás, no antigo bar do velho Ferreira, o popular “Caldinho de Peixe” ali no Largo da Luz (que, suspeito, ninguém mais chama de Largo da Luz, nem de Posto Futurama). Um sábado de sol lancinante e de um calor insuportável que tentávamos suavizar com doses contínuas de Casa Grande e xícaras e mais xícaras de caldo fumegante. Nossa mesa se misturou com a de outros caras, o sol foi entardecendo, todo mundo começou a pagar e ir embora, ficamos eu e um sujeito. Por alguma razão eu comentei que tinha estudado no Estadual da Prata, e o cara (alguns anos mais velho do que eu) disse: “Ah, então eu devo ter te carregado muitas vezes. Eu fui chofer no circular da Prata”.

Já me referi a este mítico ônibus (“O ônibus da Prata”, 27.11.2004). Naquele dia, rememorei com o motorista (digamos que se chamava João) uma porção de episódios da época, e a certa altura comentei: “Mas deve ser um saco, esse negócio de ficar fazendo circular, não é? O mesmo trajeto, a mesma coisa, o dia inteiro...” Ele falou: “Ah, isso depende. Eu ficava procurando coisas pra me distrair. Por exemplo, eu parava num sinal, e olhava pra um boteco que tinha ao lado, aí via um cara sentando numa mesa com uma mulher, os dois muito sérios. O sinal abria, eu arrancava. Quarenta minutos depois, no circular seguinte, eu parava de novo no mesmo sinal, olhava de novo: já tinha duas cervejas em cima da mesa, e o cara já tinha puxado a cadeira pra junto da cadeira dela. Aí eu pensava: Eita, a coisa tá esquentando! E assim por diante”

João me deu nesse dia uma aula de auto-ajuda. Porque somos nós que decidimos considerar algo chato – ou interessante. Ele transformava o percurso dele numa série de pequenas cenas interessantes, e as acompanhava como quem acompanha novela. Era o movimento nas mesas de um bar, era um grupo de pedreiros erguendo uma parede numa construção, era uma turma jogando pelada no balde do Açude, era uma fila na calçada de um prédio público avançando a passo de lesma, era o movimento num posto de gasolina... João ficava “controlando” aquilo tudo a cada volta, acompanhando o que acontecera, tentando adivinhar o que podia ter acontecido no intervalo entre uma passada e outra. Mesmo quando tinha que passar direto sem poder dar muita atenção a uma cena, tudo bem, porque dois quarteirões mais adiante tinha a próxima cena, cujo andamento ele também estava doido pra acompanhar.

Ter curiosidade pelo mundo, pelas coisas em volta, é a melhor auto-ajuda que pode existir para evitar o tédio, o embrutecimento, o desalento, a falta de sentido. Somos nós que projetamos sentido nas coisas. Eu ando de ônibus até hoje, e em cada um dos meus percursos rotineiros tenho os “palcos” onde sempre está acontecendo algo interessante, algo que me mantém curioso e alerta, que não me deixa ligar o piloto automático e desperdiçar alguns minutos que eu poderia aproveitar melhor pensando, imaginando, tendo idéias.

0813) Ted Nelson (25.10.2005)



O leitor já ouviu falar em Ted Nelson? Provavelmente não, embora isto não o impeça de daqui a alguns minutos estar sentado ao computador, clicando links e baixando arquivos. Nelson foi um dos pioneiros da World Wide Web, embora ele próprio renegue tudo isto hoje. Nascido em 1937, é da geração que criou “isso tudo que está aí”, mas, pelas ironias habituais da História, não é da geração vencedora. Ele inventou a palavra “hipertexto” e foi o criador do Projeto Xanadu, um mirabolante programa de hipertexto através do qual ele pretendia indexar através de links toda a informação disponível em texto no mundo inteiro. É chamado por uns “o pai do hipertexto”, “o maior visionário do mundo dos computadores”, etc. Para outros, é um “gênio falido”, “um sonhador que não deu certo”.

Material sobre Nelson pode ser encontrado por toda parte. Há uma coleção de frases suas em: http://xanadu.com.au/ted/TN/WRITINGS/TCOMPARADIGM/tedCompOneLiners.html. Nelson observa, argutamente, que em geral “tecnologia” é alguma coisa à qual você tem que se submeter, em benefício de alguém. E diz: “Hipertexto não é tecnologia, é literatura. Literatura é toda a informação que nós agrupamos e preservamos, primeiro em forma de livros e jornais e revistas, e agora em forma de filmes e gravações e CD-Roms e o mais que vier. O modo como a literatura do futuro será organizada irá definir até que ponto a humanidade poderá ter acesso a ela e compreendê-la. Isto não são questões que devam ser deixadas aos meros tecnologistas”.

Quanto à WWW de hoje, ele diz: “O HTML é precisamente o que tentávamos evitar: links que caem o tempo inteiro, links que conduzem apenas numa direção, citações cuja origem não se pode rastrear, nenhum controle sobre as versões de um documento, nenhum controle sobre direitos”. Nelson atuou numa fase crucial da criação deste mundo vídeo-texto-digital que hoje está aí. Teve idéias brilhantes que foram copiadas, imitadas ou transformadas por outros. Estabeleceu para si próprio objetivos gigantescos e intelectualmente ambiciosos, apenas para ver-se ultrapassado por sujeitos com projetos mais imediatistas e pragmáticos, os quais acabaram criando a WWW que temos hoje.


Seu destino parece um pouco o de Moisés, que guiou o povo hebreu à Terra da Promissão e morreu quando estava já chegando; mas na verdade é algo mais cruel do que isto. É o destino de quem ajudou a conceber uma Revolução, viu-a crescer mais depressa do que imaginava e fugir ao seu controle, e percebeu que de líder passou bem depressa a mero coadjuvante e, depois de algum tempo, a uma mera nota ao pé da página de um livro que imaginara ser seu. Mais ou menos (imagino) o que se deu com Trotsky na Revolução Russa (ultrapassado por Lênin e Stalin), e com a guinada vanguardista dos Beach Boys (eclipsados pelo Sergeant Pepper’s dos Beatles). Qualquer sujeito assim tem motivos para ficar meio amargurado.

0812) Notas dum pintor flamengo (24.10.2005)


("Moça com Jarro de Água", Vermeer)

“Na minha já remota infância, imaginava eu que um quadro era feito a partir das bordas para o centro, já com as cores, texturas e formas definitivas. Pensava que se alguém entrasse no ateliê de um artista o encontraria diante de um quadro metade em branco e metade já do jeito que estaria sendo visto, anos depois, nas paredes dos museus. O artista expandia essa imagem pronta por sobre a superfície vazia, até preenchê-la por completo. Parece absurdo? Pois consta ser assim que muitos poetas fazem: tomam de uma folha de papel em branco e tentam inscrever nela as palavras definitivas, na ordem definitiva, até o ponto final.

“Um quadro é feito por camadas, esboços rápidos a carvão que logo são cobertos por desenhos que aos poucos vão sendo preenchidos com tinta. É assim que sei trabalhar,
indo da visão do conjunto para as partes, do equilíbrio geral das formas para a individualização e variedade dos detalhes. Sem ter uma idéia geral em mente desde o início, a quantidade de tentativas e erros se multiplica muitas vezes.

“Bem sei que há escolas modernas que prescindem deste processo: os abstracionistas, os tachistas, os “action-painters” e outros. Mas lembre o leitor que cultivo uma arte onde há não só várias camadas de tinta, mas várias camadas de processos organizativos, se bem me exprimo. Há o conteúdo “literário” do quadro, sejam florestas, sejam personagens, sejam montanhas, castelos, salas de visitas ou vultos mitológicos. Há a composição do quadro, que deve ser atrativa ao olho e desafiadora ao espírito. Há o jogo dos volumes e profundidades, a alternância dos claros e escuros, a escolha e posicionamento do que seja vertical, horizontal ou oblíquo. Cada fase destas requer um planejamento que não colida com as fases anteriores e que deixe espaço para as seguintes.

“Daí que tantas vezes o espectador da pintura se decepcione: “Mas é só isto, este quadro tão famoso? Uma mulher amassando pão perto de uma janela?” Uso o termo espectador a propósito. Pessoas assim gostam de quadros que, pelo inusitado de seu conteúdo literário ou pelo agressivo de suas cores, tome de assalto seus sentidos e se lhes imponha com autoridade. Querem, numa palavra, espetáculo. Quadros como os meus, no entanto, pedem não um espectador, mas um Leitor: alguém que sinta prazer em concentrar o foco da atenção num detalhes sem perder de enquadramento o geral da obra; alguém que destrinche, que decifre, que compare, que interprete, que vá e volte seguidamente de um ponto para outro até perceber as camadas de intenções, nem sempre evidentes, que articulam o Todo.

“Diferentes pinturas exigem diferentes leituras ou apreciações; não é o fato de comungarem tintas e telas que as transforma numa mesma espécie de artifício. Não se deve esperar, da música de saltimbancos, arquiteturas de uma sinfonia, nem se deve exigir desta a liberdade de improviso e a feliz imprevisibilidade que são as alegrias daquela”.

0811) O barulho e o silêncio (23.10.2005)




Já dizia o Budista Tibetano: “O que é criado no barulho é para ser vivido no barulho, e o que é criado no silêncio é para ser vivido no silêncio”. A cultura mega-urbana nos impõe um atordoamento sensorial constante, principalmente nos tímpanos. O cinema nem precisa falar: é Som Dolby Stereo onde a gente tem que ver uma briga de gangues com uma exatidão sonora onde se registra até o som da queda de um grão de poeira. O teatro é aquele bundalelê dionisíaco de sempre, com muito som e muita fúria. A música, ou é orquestra sinfônica, ou então é a atual e mortífera simbiose entre a guitarra elétrica e o bombo-de-maracatu. E assim por diante.

A literatura, benza-a Deus, continua a ser uma das últimas ilhas de silêncio que nos restam. Apesar de não ter recusado nenhum dos “gadgets” da era digital-eletrônica (computadores, hipertexto, CD-Rom, etc.) ela de certo modo ainda é praticada como o era mil anos atrás. Eu escrevo a maioria das coisas no teclado, mas quando tenho uma dificuldade qualquer eu sento no sofá, abro um caderno e pego a caneta. O ritmo da escrita à mão, mais pausado, mais de acordo com nossa respiração natural, ajuda a assentar a poeira, a trazer as idéias de volta para o lugar. Escrever à mão é um pouco como “passar primeira” ao se dar partida num carro. Depois que pega o embalo, a gente senta no teclado e prossegue, em segunda, terceira, quarta...

Houve um tempo em que a melhor coisa de escrever em computador era a possibilidade de botar um CD, um par de headphones, e poder escrever às 3 da madrugada ouvindo Rolling Stones no volume máximo, sem acordar a família ou a vizinhança. Hoje em dia, ouço cada vez menos música enquanto escrevo. Prefiro o trilar dos grilos. O ronco momentâneo de um carro que passa na rua e some para sempre. Tiros distantes na favela mais próxima. O som distante de um TV ligada noutro andar, um telefone que toca por trás de portas trancadas. O ronronar tranqüilo do computador aqui ao lado, e da geladeira lá na cozinha. O rascar macio da caneta no papel, um dos ruídos mais inspiradores que existem, sinal de que algo está acontecendo, sinal de que estou conseguindo fazer a ligação entre o espírito e a matéria.

A estrada editorial é longa, mas importa mais o que há nas extremidades do que o que existe no percurso. Numa das pontas dela, existe uma sala mergulhada no silêncio e na penumbra, uma mesa onde alguém se debruça sobre folhas de papel e escreve com algum tipo de caneta. Na extremidade oposta, outra sala, igualmente silenciosa e à meia-luz, onde outra pessoa, sentada numa poltrona ou diante de uma escrivaninha, lê um livro aberto à sua frente. Pouco importa que entre essas duas salas haja milhares de quilômetros, parques gráficos, caminhões, rugir de motores, guerras ou atividades industriais. Topologicamente, as duas salas pertencem ao mesmo espaço, e formam um só ambiente: o reino da palavra escrita, a arte de dizer coisas com o silêncio.