segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

0747) Oropa, França e Bahia (10.8.2005)




(Rembrandt:
"Aristóteles contemplando o busto de Homero")

Um detalhe que os estudiosos da Literatura de Cordel observam com freqüência é a ausência do que poderíamos chamar de “verossimilhança geográfica” nas ambientações dos folhetos.

Num folheto como o Pavão Misterioso, por exemplo, a ação inteira se passa na Grécia e na Turquia, mas de grego e turco o ambiente não tem quase nada. Os dois rapazes turcos chamam-se Evangelista e João Batista; a jovem grega chama-se Creuza.

A maioria dos folhetos ambientados “na antiga Alexandria” ou na China ora aparecem cheios de elementos típicos do Nordeste (negros escravos, carros-de-boi) ora de elementos modernos (no caso do Pavão, há fotógrafos, engenheiros, etc.).

E tais distorções não se limitam ao mundo físico. Pegue qualquer folheto ambientado no Céu ou no Inferno e confira.

Esse tipo de liberdade poética, na verdade, não é uma excentricidade dos cordelistas. Sempre esteve presente na literatura. Quando Shakespeare faz uma história passar-se em Atenas, como Sonho de uma Noite de Verão, e a mostra repleta de seres sobrenaturais típicos do folclore britânico, como o Puck (“Robin Goodfellow”), os elfos, etc., está fazendo uma mistura entre os elementos exóticos e os elementos familiares ao público da época.

Bertolt Brecht fazia a mesma coisa, quando queria fazer fábulas políticas de esquerda mas achava mais prudente não ambientá-las na Alemanha: aí lá vinha a China, o Cáucaso, Nova York, etc. Era um pouco como naquele bar cujo dono, um português, proibiu que se contassem piadas de português lá dentro. Aí um engraçadinho chegou e começou: “Era uma vez dois japoneses. Um se chamava Manuel, o outro Joaquim”.

Artistas fazem isso o tempo todo, inclusive artistas plásticos. São numerosos os exemplos de quadros da época da Renascença mostrando a crucificação de Cristo onde tanto os apóstolos quanto os soldados romanos usam roupas renascentistas.

Cada artista faz, voluntariamente ou não, uma mistura entre o exótico e o familiar, para benefício da própria imaginação ou da platéia. O realismo histórico-geográfico na narração de uma história passada em outra época é uma preocupação relativamente recente.

Num poema em homenagem a Jorge Luís Borges, diz Julio Cortázar: “Ele falou Babilônia, e muito poucos entenderam que queria dizer: Rio da Prata”. É notória a indiferença de Borges quanto o local onde se passam seus contos; quando não usa nomes vagamente antigos (Babilônia, Babel), ele passa as primeiras linhas do conto perguntando-se em que país e em que época o ambientará.

Essa indiferença é a mesma dos poetas de cordel. Em Os martírios de Rosa de Milão, de Teodoro Ferraz da Câmara, é nesta cidade que transcorre a história; a jovem milanesa chama-se Rosa das Neves Bandeira, e o herói, que é de Veneza, chama-se Renato Dias Telêmaco de Aragão. Oropa, França, Bahia: o mundo e o cordel são uma coisa só.







0746) Um romance sem palavras (9.8.2005)


(o livro de Hu Wenliang, adaptado para caracteres ocidentais)

Tenho aqui em casa romance sem a letra E (La Disparition de Georges Perec), romance em imagens (Gods’ Man de Lynd Ward), romance sem começo nem fim (Lugar Público de José Agrippino de Paula), romance sem pé nem cabeça (Paniedro, de Herio Saboga)... Dá pra perceber que estou aqui me coçando para adquirir um exemplar do romance-em-código publicado há pouco na China pelo escritor Hu Wenliang. O romance está escrito em código, e ele oferece um prêmio (em moeda chinesa) equivalente a cerca de 17 mil dólares a quem o decifrar.

Quer se arriscar, caro leitor? Dou uma força, e lhe digo mais: você nem precisa fazer o pequeno investimento inicial de comprar o livro, porque “livro” mesmo não existe. O romance de Hu Wenliang consiste em apenas 14 sinais de pontuação chinesa, e pode ser copiado na maioria dos 308 saites da Internet que registraram o desafio. Só não o faço aqui por problemas técnicos – não sei se o jornal tem os respectivos caracteres. Mas é isso mesmo: são 14 caracteres chineses dispostos em cinco linhas, e que, segundo o autor, “contam uma história de amor”, que levou um ano para ser escrita.

O livro, aliás, tem como título um outro caractere de que não disponho aqui, o que me lembra alguns experimentos gráficos do grande Osman Lins, como em Avalovara, onde uma personagem não tem nome, e é indicada por um sinal específico (um círculo com um ponto no meio e duas “asinhas” simétricas na parte superior); e me lembra também o cantor Prince, que de 1993 a 2000 aboliu o próprio nome e pediu para ser designado por um sinal gráfico (um círculo encimando uma seta que aponta verticalmente para baixo, a qual tem uma pequena barra transversal formando uma cruz; a junção do círculo com a seta é cortada horizontalmente por uma forma que tem uma extremidade encaracolada à esquerda e uma extremidade aberta à direita, lembrando uma trompa de caça).

Estas tentativas de descrições mostram que se o cara tiver disposição ele verbaliza inclusive o inefável e o indescritível. Como duvidar, então, de que haja de fato uma história escondida nos 14 sinais de Hu Wenliang, e que ele nos desafie a encontrá-la? Ele afirma, imperturbável: “Tenho minha resposta, que consta de cerca de cem caracteres chineses. Uma interpretação correta deverá incluir a descrição dos personagens e o enredo da história. Pagarei o prêmio a quem adivinhar pelo menos 80% da resposta.” Não sei se tentarei decifrar o livro dele, pois estou muito ocupado escrevendo os meus próprios, mas desde já o coloco na mesma prateleiras dos que citei acima, e do romance-tatuagem de Shelley Jackson que comentei aqui (“Quero ficar em teu corpo”, 9 de fevereiro). Chamo a isto literatura conceitual: um novo tipo de texto que minimiza a dupla tradicional enredo-estilo, e coloca a obra a reboque de um conceito. É a expansão da arte-conceito, que também já invadiu a pintura (Duchamp), a música (John Cage), o cinema, o teatro e muitas outras artes.

0745) O amigo silencioso (7.8.2005)




(Peter Quasim)

O escritor australiano Greg Egan, a quem cito com freqüência nesta coluna, correspondeu-se durante alguns anos com um indiano da Cachemira chamado Peter Qasim, preso na Austrália por imigração ilegal. 

Sei pouco sobre Egan. Apesar de publicadíssimo e premiado, é um autor que não gosta de badalação; dele só se sabe que trabalha com informática e mora em Perth, na costa ocidental da Austrália (seu saite fica em: http://gregegan.customer.netspace.net.au/

Ele começou a se corresponder com Peter Qasim enquanto este movia um interminável processo para ser posto em liberdade. Trocavam opiniões sobre ciência, astronomia, livros, política e religião – sendo Egan um ateu convicto e Qasim um homem religioso. 

Depois de uma imensa batalha legal, Qasim foi finalmente libertado este ano, depois de 6 anos e 10 meses de prisão. Numa de suas cartas para Egan, Qasim afirmou que precisava de Deus “como um amigo na solidão, um amigo que não fala, não ri e não chora”. Achei bonita e madura essa descrição. Eu, como todo agnóstico, tenho uma pulga atrás da orelha para todos esses papos de gente que diz que conversa com Deus, que ouve conselhos de Deus, que Deus lhe ordenou que fizesse isso ou fizesse aquilo. 

É um pouco como esses caras que onde chegam dão um jeito de enfiar na conversa a informação de que são “assim” com o Presidente da República, sabe como é? Boa coisa eles não têm em mente.

Não digo que todo mundo que acredita conversar com Deus seja um desonesto; muitas vezes é apenas uma pessoa auto-sugestionável, que atribui a Deus os conselhos que dá a si próprio. “Eu estava sem saber se guardava o dinheiro ou se trocava de carro, aí fiz uma prece, e Deus me disse: “Que é isso, meu filho, troque de carro, afinal você merece, trabalha tanto...” 

O Deus de Peter Qasim tem outro perfil. Talvez perca um pouco dessa face paternal, aconchegante, mão-no-ombro; talvez não tenha essa capacidade (milagrosa, de fato) de dizer-nos exatamente aquilo que mais precisamos ouvir.

Esse Deus é como um sujeito a quem respeitamos e tememos, de quem gostamos, em quem confiamos. Ele não nos diz nada, mas está sempre do nosso lado, olhando, prestando uma atenção danada. Se agimos mal, ele não diz “Êpa!”, não interfere, nem sequer balança a cabeça em sinal de desaprovação. Não precisa. A gente já sabe o que pode e o que não pode. 

Ele está ali do lado para ver, e para ouvir; mas a decisão é nossa, e a confissão do erro, caso haja, é também iniciativa nossa. Ele não dá conselhos nem ordens. Se estamos num momento de depressão profunda, ele não surge envolto em luz para dizer: “Siga o seu coração...” Não precisa; nós já sabemos. 

A função dele é justamente, pela força catalisadora de sua presença, do simples fato de ele existir, nos levar à ação e à reflexão, nos conceder a liberdade e a responsabilidade, sabendo o tempo inteiro que não estamos sós. (Bem, pra quem acredita, imagino que deva ser assim.)






0744) Crítica, resenha e “relise” (6.8.2005)




(ilustração: Pascal Doury)

Quem comenta livros em revista ou em jornal é geralmente chamado de “crítico literário”. Pode até ser, mas a gente deveria usar estes termos com uma certa parcimônia.

O que se publica em jornal e em revistas de interesse geral, não-especializado, é resenha, não é crítica. São coisas diferentes. Crítica pressupõe um exame minucioso do texto: seu tema, as técnicas narrativas que emprega, as linguagens que utiliza, a relação triangular que estabelece com o Leitor e com a Literatura... Tudo isto requer um certo espaço, até para que o crítico possa fazer numerosas citações do texto, comprovando o que diz.

Já a resenha é um texto breve, e seu objetivo não é examinar e julgar o texto, mas descrevê-lo e dar uma idéia objetiva do que se trata, para que o leitor decida se o livro lhe interessa ou não.

O problema é que grande parte das assim-chamadas “resenhas” que aparecem na imprensa são na verdade cópias disfarçadas dos “press-releases” (os famosos “relises”) distribuídos pelas editoras, textos em que a obra é descrita, e efusivamente elogiada.

Como sou jornalista e escritor, recebo grande número de “relises” desse tipo (por correio ou por email), e vejo com freqüência esses textos sendo republicados em jornal, tintim por tintim. Eu mesmo já redigi dezenas de “relises” para livros ou discos (é um trabalho que paga bem); esses “relises” são assinados, mas numerosas vezes já vi meu texto reproduzido na íntegra, num jornal de alguma parte do Brasil, assinado pelo crítico local.

Isto me incomoda? Nem um pouco. Só aceito fazer “relises” dos trabalhos de que gosto, e os aproveito para fazer circular minha opinião sobre eles; em casos assim, autoria é o que menos importa.

A resenha deveria ser um meio-termo entre a crítica (que tende a ser objetiva, científica) e o “relise” (que é um elogio remunerado). Numa coluna como esta aqui, por exemplo, não se tem espaço (nem tempo, por ser um trabalho diário) para fazer crítica séria, nem de literatura, nem de música, nem de cinema. O que se pode fazer (e eu tento) é dar uma idéia do que é a obra.

Eu prefiro não perder tempo criticando livros de que não gostei. Geralmente não gosto porque não me identifico, mas imagino que aquele livro tem seu público, seus leitores, e não me cabe negar-lhes o direito de gostar de algo. É muito difícil aparecer um livro realmente ruim, mau, maligno, um livro que faça a gente se sentir na obrigação moral de gritar à Humanidade: “Afastem-se dele! Não o toquem!” Quando não gosto, jogo prum lado e vou ler outra coisa.

A resenha é uma tentativa de indicar, para os leitores que por acaso se identifiquem com as minhas preferências, livros que talvez lhes agradem. Toda resenha tem algum elemento de crítica, e toda resenha elogiosa tem algo de “relise”. Mas não devemos perder de vista que são três coisas diferentes: análise literária (a crítica), jornalismo cultural (a resenha) e publicidade (o “relise”).








0743) O robô no camelo (5.8.2005)



Um robô vai montado num camelo, percorrendo as areias do deserto... A imagem parece uma mistura de Guerra nas Estrelas com Lawrence da Arábia, mas na verdade bateu nos meus olhos no saite da revista New Scientist. Não é um delírio spielberguiano, é uma competição de verdade que tem lugar nos Emirados Árabes, sem dúvida uma das regiões mais ciencificcionais deste imprevisível planeta. Perto das cenografias e das arquiteturas que xeiques milionários estão criando em Dubai, os filmes de George Lucas ficam parecendo o neo-realismo italiano.

A corrida de camelos está, para aqueles povos que têm sangue de beduínos nômades, como a vaquejada está para os nordestinos. O sujeito fica rico, intelectual, cosmopolita... mas continua gostando. Existem trilhas criadas especificamente para isto, existem festas equivalentes aos nossos rodeios e festas-de-peão. As corridas se dão de preferência nos meses de inverno, entre outubro e abril. Nos últimos anos, a tal da civilização começou a meter o bedelho. Organizações humanitárias passaram a protestar contra o uso de crianças como jóqueis nas corridas de camelos. As crianças eram submetidas a um treinamente severo, jejum, uma porção de maus-tratos que a revista prefere omitir. Providências foram tomadas. Jóqueis de camelos desde março de 2004 têm que ter uma idade mínima de dezesseis anos, e este limite foi aumentado para dezoito em julho de 2005.

Todo este cerca-lorenço é só para apresentar a teoria que me interessa, caro leitor. E que é a seguinte: “Se a gente gosta de fazer uma coisa, e a lei disser que é proibido fazer isto a seres humanos, basta substituir estes seres humanos por criaturas artificiais, e continuar fazendo.” Dê asas à sua imaginação – e pense numa providência providencial! O uso de robôs como jóqueis dos camelos começou neste mês de julho, e mereceu do xeique Mansour bin Zayed al-Nahyan, que é uma espécie de Ministro da Casa Civil dos Emirados Árabes, o comentário: “Foi um tremendo sucesso, e esta fase que se inicia irá testemunhar um enorme avanço neste esporte indispensável ao nosso país”. Os novos jóqueis, movidos a controle remoto, são fabricados por uma empresa suíça, e custam 5.500 dólares cada.

A ficção científica desembarca no mundo real quando se juntam três coisas: imaginação, tecnologia e grana. Não que a FC seja privilégio dos ricos, mas a produção tecnológica exige em geral pesados investimentos que os dólares petrolíferos, por exemplo, podem assumir sem estresse. Melhor esse dinheiro sendo gasto com vaquejadas inofensivas do que com mísseis inteligentes ou bombas de nêutrons. O mundo árabe é tão extremado e paradoxal quanto o Nordeste. Nele cabem tanto os palestinos que viram homens-bombas para matar israelenses quanto esses xeiques ricaços que gastam milhões com corridas de robôs. Eu entendo o desespero daqueles; mas rezo para que o futuro se pareça com o mundo destes.

0742) Garganta Profunda (4.8.2005)


(ilustração: J. Emilio)

Finalmente em 2005 foi esclarecido um interessante mistério. Quem era o informante misterioso, apelidado “Garganta Profunda”, que repassava pistas e informações preciosas para os jornalistas do Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, ajudando-os a esclarecer o caso Watergate, e contribuindo para a ameaça de impeachment que provocou a renúncia de Richard Nixon? O fato se deu há mais de trinta anos, mas não perdeu a atualidade, ainda mais quando o Brasil inteiro começa a considerar a possibilidade (calma, eu disse: “a possibilidade”) de um processo de impeachment contra o presidente Lula.

Em janeiro de 1973 um grupo de arapongas foi preso invadindo escritórios do Partido Democrata para grampear telefones ou sei lá o quê. Logo se descobriu que trabalhavam para assessores diretor de Nixon. Seguiram-se longas batalhas jurídicas, com o Washington Post fornecendo a maior parte da munição, até que em agosto de 1974 Nixon tornou-se o primeiro presidente dos EUA a renunciar ao cargo. Sempre que o governo fazia manobras de despiste, “Garganta Profunda” marcava um encontro com Woodward e lhe dava indicações cruciais, como a famosa frase “Siga o dinheiro”. Ou seja: descubra de onde veio o dinheiro, e por onde passou, e você terá todos os elos da corrente.

Sabe-se agora que “Garganta” era Mark Felt, um alto diretor do FBI insatisfeito com a relação ditatorial que a Casa Branca mantinha com o FBI. OK, tudo isso está nos jornais e no livro O homem secreto de Woodward (Ed. Rocco), mas o episódio remexe num problema que na minha cabeça está mal-resolvido até hoje. Será que a delação é sempre vergonhosa? Pode existir um “dedo-duro” do Bem? Num tempo cínico e pragmático como o atual pode parecer uma questão irrelevante, mas passei minha juventude esgueirando-me entre as botas de uma ditadura militar, e a palavra “dedo-duro”, delator, denunciante, era o pior e mais asqueroso insulto que se podia dirigir a alguém. Muitos amigos foram delatados e morreram, ou passaram pela tortura. Delatar alguém era uma vergonha indizível, e a História mostra que não foram poucos os delatores que pagaram pelo seu crime com a vida ou com partes indispensáveis de sua anatomia.

Escrevi há algum tempo sobre Daniel Ellsberg (coluna de 6 de maio), o sujeito que em 1971 fez algo parecido: pegou documentos secretos do Pentágono, mostrando os “podres” da Guerra do Vietnam, e os repassou para a imprensa. Ellsberg e Felt eram funcionários do Governo, do qual dependiam, e ao qual tinham jurado lealdade. Mas foram capazes de admitir que o Governo a que serviam estava errado, tinha cometido crimes, e era seu dever comunicar esses crimes à nação. Ellsberg, que fez isto publicamente e deu a cara à tapa, me parece mais corajoso do que Felt, mas aqui não se trata de heroísmo pessoal, e sim de um compromisso maior: “Vou trair aqueles a quem servi até hoje, porque meu senso moral me diz que eles estão errados, e merecem pagar por isto”.

0741) A natureza humana (3.8.2005)


(Mikhail Bakunin)

Leio no blog do jornalista Ricardo Noblat uma citação do anarquista russo Mikhail Bakunin, um trecho que parece ao dono do blog (e a mim também) imbuído de um ominoso sentido profético. Diz Bakunin: "Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana."


Pensou o mesmo que eu pensei, caro leitor? Então, passemos adiante. Tudo bem: é a natureza humana. Mas a natureza humana será só isto? Marx, um sujeito furiosamente otimista, dizia que não. Que os nossos valores éticos são condicionados pelo ambiente moralmente poluído do capitalismo, onde a lei é “cada um por si e Deus contra”, onde para ganhar dinheiro o sujeito é capaz de vender a mãe e dar a sogra de brinde. Nesse clima de competitividade feroz, e de fácil enriquecimento uma vez que se chegue a determinada altura da “escada social”, todo mundo é corrompível, todo mundo tem um preço. Mas (prosseguia o barbudo redator da “Gazeta Renana”) com o advento do socialismo tudo seria diferente. O socialismo e sua conseqüência final, o comunismo, iriam instituir um novo clima moral, uma nova super-estrutura de valores, idéias e princípios.

Bem, isso para mim é tão válido quanto dizer que no ano 2500 teremos colonizado Marte e que lá o cinema vai ser de graça e o futebol não vai ter impedimento. Ou seja: a previsão é tão a-longo-prazo que de certo modo se auto-invalida, porque daqui até lá, como naquela história popular, “ou morro eu, ou morre o rei, ou morre o burro”. Nunca saberemos como será a “natureza humana” daqui a cem ou duzentos anos, e só podemos lidar com o que temos à mão agora. A frase de Bakunin aplica-se a operários que chegam ao Poder, mas poderia aplicar-se também a sociólogos de esquerda que chegam ao Poder, ou a católicos apostólicos romanos que chegam ao Poder. Não importa sua origem ou suas idéias anteriores: o Poder é uma espécie de kryptonita que anula suas qualidades e nivela a todos diante de uma máquina surda, cega e muda, uma máquina secular de auto-enriquecimento.

Dinheiro é a mais perigosa das drogas. Vicie um cara em dinheiro, e ele fará de tudo para conseguir mais. A maior parte de nós não vive sem uma dosezinha no fim do mês, não é mesmo? Dinheiro é perigosíssimo, inclusive porque dá aos viciados aquela ilusão de onipotência tão característica de algumas drogas. Não existe “natureza humana”: existem as “culturas humanas”, e quando viciadas em dinheiro elas ficam entregues aos traficantes de sempre.