segunda-feira, 30 de novembro de 2009

1389) Papai Noel existe! (26.8.2007)


Uma das lições literárias mais inspiradoras que já recebi me foi dada involuntariamente (como aliás ocorre com a maioria das Grandes Lições), e por um guri de 5 anos. Era época pré-natalina e eu estava conversando com um casal de amigos na praça de alimentação de um shopping. (Na verdade não foi bem assim, mas se eu disser onde era ninguém vai acreditar, então vamos em frente com uma ficção plausível.) Aí chegou o garoto deles todo excitado: “Pai! Mãe! Acabei de conversar com Papai Noel!” Eu estava numa veia implicante e disse ao meu amigo: “Mas Fulano, você ainda não explicou a seu filho que Papai Noel não existe?!” O pirralho me fitou de cima a baixo com soberano desprezo e falou: “Claro que existe. Ele falou comigo, eu sentei no colo dele, ganhei um chocolate, puxei a barba dele...” Aí fez uma cara de conspirador, pôs a mão juntinho da boca e sussurrou: “É falsa!”

Um garoto de cinco anos entende melhor o que é ficção do que qualquer marmanjo de cinqüenta. De fato, como você vai dizer que o sujeito não existe, se em dezembro as ruas e as lojas estão cheias dele?! É o mesmo que se dá com o príncipe Hamlet, da Dinamarca. Se pudéssemos reunir todos os indivíduos que já usaram seu nome, vestiram suas roupas e disseram suas falas, encheríamos vários Maracanãs. Alguém tem a coragem de dizer que Hamlet não existe? Existe mais do que eu ou você, caro leitor, que se desaparecermos amanhã a Humanidade nem toma conhecimento. Mas desapareça Papai Noel, e você vai sentir o abalo no PIB.

Papai Noel e Hamlet podem não ter uma existência individual como a minha e a sua, mas a existência que têm é de causar inveja a qualquer um de nós. Para começo de conversa, são imortais, porque quando um ator morre o personagem continua. Depois, são ubíquos, podem estar em várias partes do mundo na mesmíssima noite. Por fim, são extremamente maleáveis, adaptam-se às culturas, às circunstâncias, às modas, aos momentos históricos. E, o que é mais importante, influenciam um número muito maior de pessoas.

Eles são o gérmen da humanidade futura, quando conseguirmos criar receptáculos eletrônicos capazes de registrar em si personalidades complexas, memórias totais, biografias inteiras. Temos hoje a ilusão de imaginar que os personagens literários são meras sombras ou reflexos das pessoas de verdade. O avanço da ciência nos mostra, para o bem ou para o mal, que sombras e reflexos somos nós. Que somos um mero estágio para a criação dos seres indestrutíveis do futuro, criaturas com muito maior complexidade mental do que a que nos dão nossos poucos bilhões de neurônios. Criaturas que serão feitas, como diz William Gibson, não de um iceberg, mas de uma Antártida de informação. Serão personagens, serão imortais, serão ubíquos, e nas suas memórias virtuais dedicarão alguns trilhões de terabytes para cultivar a memória dos bípedes mamíferos que os antecederam e que os inventaram.

1388) Puxa o rabo do tatu (25.8.2007)




Comprei num sebo uma edição de bolso de um dos livros mais fascinantes que já li, O Teatro do Absurdo, de Martin Esslin, que foi meu livro de cabeceira por volta de 1971, quando eu era um estudante de cinema que flertava à distância com o teatro. O livro de Esslin descreve e comenta a obra dos grandes dramaturgos do absurdo: Ionesco, Beckett, Genet e Adamov. Mais interessante, contudo, é o capítulo “A Tradição do Absurdo”, onde Esslin aponta com perspicácia a existência de um absurdo não-literário presente em todas as culturas, especialmente nas cantigas folclóricas e nas parlendas infantis.

Esse absurdo verbal é mais visível nos livros de autores como Lewis Carroll ou Edward Lear, nos “limericks” irlandeses; mas sua origem são as cantigas infantis, ou “nursery rhymes” dos países de língua inglesa, uma fonte que nem sempre a crítica parece levar a sério. Nossas cantigas e parlendas infantis também estão cheias disso. Lembram-se dos sistemas de escolha para brincadeira de toca, de se-esconder, e outras? A pessoa que tira vai recitando frases e a cada sílaba toca numa pessoa ao longo de um círculo: “Fui-na-ma-ta-cor-tar-le-nha / San-tan-tônio-me-cha-mou / quand-do-san-to-cha-ma-gen-te / é-si-nal-de-pe-ca-dor... / Pu-xo-ra-bo-do-ta-tu, quem-tá-fo-ré-tu!” Sempre achei essa quadrinha uma coisa ominosa, ameaçadora, esse santo na floresta chamando o pecador para levá-lo... pro Céu? Tem uma que é puro mistério de Agatha Christie: “Lá em cima do piano, tem um copo de veneno, quem bebeu morreu... Puxa o rabo do tatu, quem tá fora é tu”.

Uma das malícias desse sistema de escolha era quando a gente dava uma suingada no ritmo e fazia com que o gesto não coincidisse com a voz: recitava no mesmo ritmo, mas o toque da mão adiantava ou atrasava de acordo com nossa conveniência, para que o “tu” colocasse de fora alguém que a gente escolhesse.

As frases não precisam fazer sentido. Havia uma cantiga de roda que terminava com todo mundo gritando: “A bença, vovó! Ficou no caritó!” Eu não era tão pequeno que não pensasse: “Oi, se ficou no caritó, não casou. Se não casou, como pode ser avó de alguém?” Essas cantigas infantis são o melhor exemplo do “nonsense”, o não-senso, o que não quer nem precisa fazer sentido. Resíduos de versos, de frases cotidianas, fragmentos de histórias, onomatopéias, coisas que nada querem dizer: querem apenas ser, apenas soar.

O universo dessas cantigas explica em parte a atração que as letras que-não-dizem-nada exercem sobre o público, o que pode ser aferido vendo-se o sucesso de marchinhas de carnaval, canções da axé music, e mesmo muita coisa da MPB. Não estou com isto recusando o sentido, mas não se deve esperar que toda letra de música seja tão cartesiana quanto as de Chico Buarque ou de Renato Russo, compositores sempre preocupados com o “conteúdo”. Há uma área da canção que nasce como brinquedo sonoro, brota como brinquedo, e como brinquedo tem que ser considerada.

1387) O Estranho e o dr. Freud (24.8.2007)



Num ensaio de 1919 (“O Estranho” ou “O Sinistro” -- Das Unheimlich) Freud procura examinar nossa sensação de estranheza e de ameaça quando nos deparamos com imagens que ele enumera: mortos, aparições, membros ou crânios decepados, pessoas enterradas vivas, autômatos que parecem humanos ou vice-versa, coincidências ou fatalidades, a compulsão de repetir atos inexplicáveis, etc. Freud compara essa sensação com a palavra alemã correspondente, “unheimlich”, que é a forma negativa de “heimlich”. E é o caráter desconcertante desta última que ele discute, porque é uma palavra que tanto pode significar “doméstico, aconchegante, familiar” como também “secreto, oculto” – dois sentidos aparentemente contraditórios.

Freud faz em seu ensaio um espantoso levantamento lexicográfico dos usos dessa palavra na língua alemã, e através das dezenas de exemplos que ele cita é possível até mesmo para um analfabeto em alemão, como é o meu caso, perceber as conotações que a palavra assume através das épocas, e de diferentes dicções: literária, regional, antiga, moderna... Minha teoria é que os dois sentidos de “heimlich” não se contradizem; um é a intensificação do outro.

Nossa mente atua em três círculos, ou esferas. Uma é a esfera pública, onde usamos nossa “persona”, nossa face social para consumo externo: nosso nome, rosto, profissão, função no mundo. Mas dentro dessa esfera temos uma outra onde nos refugiamos em busca de tranqüilidade. É o nosso espaço caseiro, doméstico, familiar (e isto é o sentido 1 de “heimlich”). Poderíamos compará-lo à sala de visitas, onde nos recolhemos para conviver com aqueles que nos são íntimos.

Dentro dessa esfera, no entanto, existe outra mais reservada ainda. Uma esfera secreta, oculta (e este é o sentido 2 de “heimlich”), um lugar onde existimos a sós, dentro de nós mesmos. Não temos nenhuma palavra em português para abranger os dois sentidos de “heimlich”; talvez a que mais se aproximasse fosse “privado”, palavra que tanto pode se aplicar ao espaço do convívio familiar (residência privada, aposentos privados) quanto ao local cercado de tabus e proibições (a Privada propriamente dita).

O Estranho, para Freud, é o que envolve ressonâncias emocionais ligadas a estas esferas. Não é simplesmente o que provoca terror – porque um tigre faminto, um criminoso armado ou um terremoto também o provocam, mas esse terror não vem acompanhado pela sensação do Estranho. O Estranho (“unheimlich”) é algo que foi familiar e não o é mais, porque foi reprimido, tornou-se oculto. E é algo que foi oculto e também não o é mais, porque emergiu, escapou à repressão, retornou para nos assombrar como algo que supúnhamos morto e sepultado. O Estranho é portanto essa contradição em termos, algo “estranhamente familiar”, que nos produz uma sensação de angústia como a que temos quando vemos uma pessoa de aspecto desagradável e só depois percebemos que é o nosso reflexo no espelho.

1386) “Cão sem dono” (23.8.2007)



Este filme realizado no Rio Grande do Sul, escrito por Marçal Aquino (baseado em um livro de Daniel Galera) e dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca, poderia também se intitular “No mato sem cachorro”, boa descrição da vida do personagem Ciro (Julio Andrade), um rapaz com idéias literárias que vive sozinho num apartamento de boêmio (colchão de casal no chão, livros empilhados, posters nas paredes) e tenta ganhar a vida fazendo traduções. Sua namorada Marcela (Tainá Muller) é um modelo que vive com um pé na boemia noturna e outro no sonho de uma carreira internacional.

Ciro patina na perplexidade de muitos rapazes que se formam, saem da casa dos pais, conquistam a liberdade da vida adulta, e julgam que é sua obrigação “viver intensamente”, ou seja, fazer sexo a torto e a direito, fumar, beber, experimentar drogas, comer e tomar banho apenas quando tiver vontade, trabalhar o mínimo necessário para pagar as contas. As primeiras conseqüências desse estado de coisas são uma rápida deterioração dos níveis de prazer proporcionados por essas atividades, uma exaustão física que faz o cara aos 25 anos ter um vislumbre de como se sente um cara de 80, e uma perplexidade crescente que pode ser sintetizada na frase “E agora?”.

Estes sintomas recebem o rótulo de “angústia existencial” quando o paciente tem pendores filosóficos. O sujeito se sente boiando. Tem tudo que sonhara ter aos 15 anos, mas, e daí? O cão sem dono do título não é o simpático Churras que faz companhia a Ciro, é o próprio Ciro, acossado dia e noite pela clássica pergunta existencialista: “O que fizemos com a nossa liberdade?”

O filme tem algumas belas cenas isoladas, que não são belas por serem excepcionais ou fora do comum, mas porque conseguem transportar para a tela, com naturalidade, pequenos episódios da vida de jovens brasileiros que parecem com gente de verdade, e não com gente fantasiada de jovem americano – embora eles ouçam rock, fumem maconha e dancem nas boates. Um acidente bobo de moto leva Julio e Marcela a um jantar na casa de outro casal, no qual as pessoas falam, bebem, fumam como se não existissem câmeras e equipe em volta. Um longo monólogo do pai de Ciro (Roberto Oliveira), comentando sua próprias experiências com drogas, tem aquele tom de contenção e ansiedade daquelas pessoas que nunca falam aos filhos sobre certos assuntos e quando o fazem temem que seja tarde demais. O porteiro do prédio de Ciro pinta uns quadros meio toscos, meio abstracionistas, pelos quais ele fica fascinado. Há uma cena em que, sentados no colchão do quarto, Marcela canta e Ciro a acompanha ao violão, de maneira descontraída e amadorística, exatamente como milhões de casais de namorados têm feito desde que surgiram no planeta os namorados, os violões e os colchões de casal. Momentos assim, breves, desjuntados, verdadeiros, dão a Cão sem dono um jeito de cacos de uma vida que não formam um todo. Um belo e melancólico filme.

1385) Lá e cá (22.8.2007)




(Garcia Márquez)

T. S. Eliot, americano de nascimento, inglês por adoção, afirmou: “Para dizê-lo da maneira mais modesta possível, minha obra não seria o que é se eu tivesse nascido na Inglaterra, e não seria o que é se eu tivesse ficado na América”. 

Para muitos escritores é uma bênção essa condição sofrida de viver dividido entre dois polos. Devendo lealdade e afeto a duas forças que o atraem em direções opostas, ele ganha uma visão mais ampla, que não teria se se entregasse totalmente a apenas uma das duas. 

O escritor é o cara que acende uma vela a Deus e outra ao Diabo, é o cara que enxerga com dois olhos, e por isso tem a visão em paralaxe que funde duas imagens planas numa imagem em relevo.

O escritor (talvez o artista em geral) precisa de um teatro mental, um palco imaginário onde faça acontecerem suas histórias. Para alguns é conveniente que esse palco não tenha nada a ver com o ambiente onde transcorre sua vida cotidiana, sua ida ao trabalho, as ruas que cruza, os prédios que contempla. É preciso que sua experiência diária seja destilada e recomposta em outro cenário, um cenário que mobilize sua energia afetiva, sua motivação emocional, e um cenário construído a quatro mãos pela imaginação e pela memória.

Julio Cortazar era argentino mas migrou para Paris aos trinta e poucos anos. Acusado pelos argentinos de ter se afrancesado, fez uma obra literária em que, mesmo quando ambientada na França, a Argentina está por inteiro. 

E o que dizer de Carlos Drummond, que saiu de Belo Horizonte para o Rio também aos trinta e poucos, e foi se tornando mais mineralmente mineiro até o fim da vida? 

Ariano Suassuna saiu aos quinze anos de Taperoá para o Recife, e durante os 65 anos seguintes sua obra literária foi uma recriação de Taperoá. 

Gabriel Garcia Márquez passou a infância em Aracataca, na Colômbia, de onde tirou grande parte da inspiração para romances escritos muitos anos depois, em Bogotá ou na Europa. Dizia Márquez que após a morte do avô que lhe contava histórias maravilhosas, falecido quando ele tinha oito anos, nada mais de interessante tinha acontecido em sua vida.

Por um lado, existe essa necessidade de ter na mente o Teatro Imaginário onde as histórias ocorram, um espaço imaginativo não contaminado pelos aspectos pragmáticos e rotineiros da vida. 

Por outro lado, há o choque entre duas culturas, dois modos de viver, às vezes duas Histórias, dois países, dois idiomas. O artista deixa de ser provinciano (“provinciano” não é quem vive em cidade pequena, é quem só consegue ter um único ponto de vista sobre as coisas). 

Deve fidelidade a dois senhores, deve amor a duas cidades ou duas nações talvez incompatíveis, experimenta o que Cortázar chamou de “a sensação de não estar de todo”, o que pode ser fator de angústia, mas uma angústia criativa, de busca incessante por respostas que nunca serão fáceis, porque nunca satisfarão por completo aos dois mundos que são seus.






quinta-feira, 26 de novembro de 2009

1384) “Saneamento Básico – o Filme” (21.8.2007)




Semanas atrás vi num cinema um cartaz de um filme chamado Saneamento Básico, e comentei: “Quem será o idiota que bota um título idiota como este num filme?” Então vi que o filme era de Jorge Furtado, e disse: “Ah, preciso ver esse filme, deve ser ótimo”. Furtado talvez seja o único sujeito no Brasil que pode botar um título como esse num filme e escapar impune. Sempre acredito que ele é capaz de glosar com inteligência e leveza qualquer mote que lhe seja proposto, qualquer idéia, por mais absurda que pareça. Sua habilidade com roteiro, diálogos e atores estão presentes em filmes como O homem que copiava e Meu tio matou um cara, nos quais ele desenvolve um estilo peculiar de comédia de costumes da juventude gaúcha. (Ainda não vi o primeiro filme dele, Houve uma vez dois verões, de 2002).

Saneamento básico tem um subtexto ecológico (a necessidade de tratar esgotos urbanos) e de sátira à burocracia, porque na cidadezinha falta um esgoto e não há verba para ele; mas há verba para um filme, e a rapaziada tem que fingir estar fazendo um filme para poder construir o esgoto. A partir daí, juntando alguns jovens que não entendem nada de cinema (interpretados por Wagner Moura, Fernanda Torres, Bruno Garcia e Camila Pitanga) temos o divertido privilégio de conhecer como se produz um filme “trash”, ou seja, um filme com uma idéia grotesca e sem sentido, em que atores sem experiência interpretam cenas mal concebidas, com figurinos pegados no fundo da mala e efeitos especiais da Era Paleozóica – estes a cargo do expert-de-província interpretado por Lázaro Ramos.

Os filmes de Furtado têm diálogos inesperados e verossímeis, com tudo que há nos nossos diálogos reais: os ziguezagues, as repetições, as falações simultâneas, as frases deixadas pela metade, e a peculiar surdez psicológica que nos acomete quando estamos mais concentrados em pensar no que diremos em seguida do que em prestar atenção ao que o outro está dizendo agora. Seus atores, jovens, rápidos, acostumados entre si, mantêm esses longos diálogos no ar como uma peteca que não cai nunca. Falei nos jovens, mas o veterano Paulo José faz um velho fabricante de móveis a quem cabe uma ótima ponta como cientista louco e boas contracenas com o “italiano” Tonico Pereira.

Há décadas se diz que o cinema brasileiro vive entre dois extremos: obras-primas que ninguém entende e filmes vulgares que apelam para a ignorância. Faltaria aqui (dizem) aquele meio termo que mantém de pé a maioria das indústrias cinematográficas: o filme de entretenimento de boa qualidade. Pois bem, uma das melhores coisas do cinema brasileiro dos últimos 15 anos é a quantidade de filmes com esse perfil. É o caso de Saneamento Básico, que traz para a tela grande algumas coisas boas da nossa televisão (jovens atores de talento, ação e diálogo naturalistas mas com imaginação e criatividade, narrativa rápida). Além de ser uma divertida homenagem ao cinema-lixo.

1383) O herói, o monstro e a donzela (19.8.2007)





("Saint George" de Burne-Jones)

As capas dos “pulp magazines”, as revistas de ficção científica dos anos 1920-1940, me fascinam pela sua imaginação desenfreada, pelo aparente absurdo, por um pensamento selvagem que deleitaria os surrealistas dos anos 1920. 


Há nessas capas uma situação que se repete ciclicamente, e que eu batizei “o herói, o monstro e a donzela”. É a imagem de uma mulher jovem, bonita, aterrorizada, sendo ameaçada (ou às vezes carregada nos braços) por um monstro que pode ser um alienígena, um robô, um ser anfíbio e lagartiforme, um cientista louco, um esqueleto vivo, um zumbi, um vampiro; e do lado oposto da imagem surge um herói, geralmente jovem, musculoso, empunhando uma arma qualquer e confrontando o monstro, naquela atitude de “solta ela senão morre”. 


Seria possível reunir um álbum volumoso só com variantes desta imagem básica, e ela ocorre na ficção científica, na fantasia, no terror. Sempre este triângulo recorrente, cuja estrutura não pode se dever apenas a determinações editoriais ou à falta de imaginação.



Quando um sintoma retorna o tempo todo, tem alguma coisa por trás dele, empurrando-o, querendo fazê-lo surgir à luz. Um dia, me deu um estalo: São Jorge, o dragão e a donzela. 



Peguem os milhões de imagens de São Jorge que circulam pelo mundo, e estes três elementos sempre estarão presentes, obrigatórios. Eles se devem à lenda de São Jorge colhida da Legenda Áurea (coletânea de lendas e mitos cristãos do século 13). 

Segundo a lenda, havia uma cidade cuja lagoa (ou fonte) foi ocupada por um dragão, que trouxe a praga para a cidade, e exigia sacrifício de vidas humanas. Quando a filha do rei foi sorteada para sacrifício, o rei prometeu metade do seu reino a quem a salvasse. Vestida de noiva, ela foi conduzida à lagoa para ser entregue ao dragão. 

São Jorge apareceu, fez o sinal da cruz, enfrentou o dragão e cravou-lhe a lança. Quando o dragão foi ferido, Jorge pediu à princesa a sua cinta e amarrou-a ao pescoço do dragão, que a partir de então ficou manso como um cordeiro.


O mito é uma espécie de ritual de purificação masculina para ter direito ao casamento nobre. O dragão representa os “instintos bestiais” masculinos, que todos conhecemos tão bem. Ele bloqueia o acesso à fonte (ao fluxo livre e saudável de energias psíquicas), e representa uma ameaça à noiva. 

É preciso que o herói, o Ego, combata e domine esses instintos brutais (que são uma metade dele mesmo), com o auxílio da Igreja (o sinal da cruz, que em versões mais antigas é o bastante para derrotar a fera), da mulher (a cinta) e do próprio falo, simbolizado pela lança e indicando que não houve uma perda de masculinidade.

Nas capas das revistas “pulp” a lança é substituída por pistolas que emitem raios, etc. Elas expressam um triângulo amoroso entre a mulher e as duas faces do homem, a face bestial e a face civilizada, no qual a civilização deve predominar, seja destruindo, seja subjugando os instintos primitivos.






1382) Fanfic (18.8.2007)




“Fanfic” é o termo inglês para designar “ficção de fãs”, as histórias escritas pelos fãs de determinado autor, série de TV, quadrinhos, etc., utilizando os mesmos heróis. Sempre existiu, mas se propagou exponencialmente com a Internet, o espaço ideal para a fanfic, que é por definição uma coisa feita por gente desocupada, fanática, e sem a menor ilusão de ganhar dinheiro com o que escreve. Escreve por puro prazer, puro deleite. O processo é basicamente o seguinte: você lê um ou vários livros e se apaixona por aquela história, aqueles personagens, aquele universo inteiro. Fica esperando mais livros, mas eles não aparecem, seja porque o autor já morreu, ou porque foi escrever outras coisas. O que você faz? Você começa a escrever novas histórias ambientadas naquele universo.

Há quem diga que o primeiro “fanfic” famoso foi a continuação espúria do Dom Quixote que saiu em 1614, assinada por um tal de Avellaneda, provocando tal indignação em Cervantes que o levou a escrever a II Parte do livro, onde ele senta o malho no plagiador. Não existe neste caso a relação de fã (“Avellaneda” também abre seu livro falando mal de Cervantes), mas aí está presente o mecanismo básico: adotar para si universo e personagens alheios, e escrever novas histórias. De minha parte, acho que o personagem que desencadeou de vez este processo foi Sherlock Holmes. Já em meados do século 20, a quantidade de histórias sherlockianas escritas por Conan Doyle era uma fração ínfima do que se publicava.

Hoje, o universo de Harry Potter é o que tem dado origem ao maior número de “fanfics”. Alguns anos atrás, este posto era ocupado pelas histórias dos universos de “Star Wars” e “Star Trek”. A imensa maioria de tais textos é escrita por adolescentes, sem o menor propósito “literário” e sem a menor esperança financeira. Este último item diferencia a “fanfic” das adaptações e reescrituras feitas por escritores profissionais, utilizando personagens que estão em domínio público. Se Stephen King ou Isaac Asimov escrevem histórias de Sherlock Holmes (como já o fizeram) não é “fanfic”, é literatura profissional.

A Internet é um maracanã de saites dedicados à fanfic. Um dos mais interessantes, que fornece links para todos os textos, é o FanFiction.net (http://www.fanfiction.net/book/). Há um longo índice de personagens/universos, com o número de textos catalogados. A seção recordista atualmente é “Harry Potter” com 306 mil títulos, seguido pelo “Senhor dos Anéis” com 40 mil. Mas o menu é variado: “Sherlock Holmes” tem 720, “Shakespeare” tem 976, “Homero” tem 168, “A Bíblia” tem 2.269, “Charlie e a Fábrica de Chocolate” tem 668, “Desventuras em Série” tem 1.227, “Os Miseráveis” tem 1.484, “O Fantasma da Ópera” tem 8.009, “Alexandre Dumas” tem 177, “Código Da Vinci” tem 206, “F. Scott Fitzgerald” tem 64, “Jane Austen” tem 687, “Charles Dickens” tem 182... Mãos à obra, jovens escritores. As possibilidades, como sempre, são infinitas.

1381) O anjo azul (17.8.2007)


(a cena que descrevi de memória)

Revi dias atrás este filme clássico de Josef von Sternberg. É o filme que revelou Marlene Dietrich, e consagrou um dos “posters” mais famosos do cinema: Dietrich, no palco de um cabaré, sentada num banquinho, com uma cartola prateada na cabeça, erguendo no ar a perna dobrada, vestida em meias de nylon, segurando-a com os dedos cruzados no joelho. Dietrich virou estrela de Hollywood, virou símbolo sexual, virou mulher-enigma para os intelectuais, virou modelo para um milhão de travestis.

O filme conta uma daquelas histórias cruéis em que um homem de meia-idade, sério, conservador, se apaixona por uma sirigaita que acaba fazendo dele gato e sapato e conduzindo-o à sarjeta. O professor interpretado por Emil Jennings é uma figura alternadamente antipática, simpática, ridícula, patética. Podemos entender sua paixão pela cantora, uma paixão atabalhoada e que culmina num casamento absurdo. Como todo puritano, o professor nunca viu aquilo, coitado, e quando vê, não resiste. Lembra aquele personagem moralista e circunspecto de Nelson Rodrigues em O Casamento; no dia em que toma um pileque, acorda na cama de uma prostituta que elogia suas numerosas performances ao longo da noite inteira.

O crítico Roger Ebert comenta com argúcia que é fácil entender o que o professor vê em Dietrich, danado é entender o que ela viu nele. Talvez respeitabilidade, casamento, uma cortina de fumaça para a velada prostituição que ela exerce entre os camarins e os hotéis. Dietrich ora se mostra carinhosa com o velho, ora ríspida, ora desdenhosa. Ele nunca sabe (nem nós) como ela vai tratá-lo na cena seguinte. Mas fica ali, grudado no pé dela, como um cachorro enxotado que pede socorro a quem o enxotou.

David Thomson acha que o personagem de Dietrich no cinema não tinha muito a ver com a atriz real; foi uma criação de Sternberg ao longo dos sete filmes que fizeram juntos entre 1930 e 1935, e talvez reflita aspectos da relação tempestuosa que os dois viveram como diretor e atriz, homem e mulher. Dietrich, diz Thomson, “era uma invenção do cinema, uma mensagem entendida pelos espectadores mas não por ela mesma. (...) Nunca mais ela voltou a ser aquela mulher, e tanto esta perda lhe fez falta quanto ela foi sempre incapaz de compreendê-la”.

Dietrich foi transformada por Sternberg, diz ele, na “essência da mulher sado-masoquista”, predadora, cruel, insaciável e indiferente. Ao mesmo tempo, ele cita as palavras de Sternberg descrevendo como a tratava nas filmagens: “Não fui um entusiasta, mas alguém que criticava mecanicamente, friamente, qualquer movimento seu. Quando havia um elogio, era algo como ‘Está bem, esta vai servir’. O que ela escutava na maior parte do tempo era: ‘Vire os ombros para lá e se endireite... Abaixe a voz uma oitava, sem ciciar... Conte até seis e olhe para aquela lâmpada como se não pudesse viver sem ela... Fique assim, não se mexa, estamos ajustando as luzes”. Era assim que a predadora preferia ser tratada.

1380) A Idade da Ignorância (16.8.2007)





(C. P. Snow)

O jornal “The Observer” convidou três escritores, três cientistas e dois apresentadores de TV para responderem perguntas básicas sobre ciência. A intenção era dar um balanço de como andam os nossos conhecimentos gerais. 

As perguntas são relativamente simples, mas para meu enorme embaraço percebi que não sabia as respostas certas para a maioria delas. Aliás, não só eu. A maioria dos entrevistados também. 

As perguntas eram: Por que o sal se dissolve na água? Qual a idade da Terra? O que acontece quando você acende uma lâmpada? Um clone é o mesmo que um gêmeo? Por que o céu é azul? Qual é a Segunda Lei da Termodinâmica? Eu acertei duas, mas não direi quais.

O jornal propunha um debate – que já vem rolando há décadas – sobre a divisão do mundo ocidental em duas culturas, uma humanista e artística, e outra científica e tecnológica. Em geral, quem faz parte de uma ignora e desdenha a outra. 

Essa denúncia foi feita pelo britânico C. P. Snow em seu livro As Duas Culturas e a Revolução Científica (1959). Snow combatia a ignorância científica dos intelectuais britânicos de sua época.

Dizia ele: “Muitas vezes compareço a reuniões de pessoas que, pelos critérios tradicionais, são consideradas muito cultas, e que se espantam com a falta de cultura dos cientistas. Uma ou duas vezes, reagindo a provocações, eu lhes perguntei o que eles sabiam a respeito da Segunda Lei da Termodinâmica, ou a Lei da Entropia. A resposta sempre foi fria, e negativa. E na verdade eu estava perguntando o equivalente científico a: Vocês já leram alguma obra de Shakespeare?” 

Neste ponto, os grandes cientistas saem ganhando – todos eles demonstram uma grande amplitude de leituras e de apreciação artística (música, pintura, etc.).

A certa altura da vida, todo indivíduo bem sucedido social e financeiramente acha que o que sabe já dá pro gasto, e que não precisa aprender mais nada. E no entanto se saíssemos fazendo perguntas desse tipo por aí, teríamos um retrato patético do que são nossos “intelectuais”. 

Não me refiro a ir fazer esse tipo de pergunta no metrô ou na calçada. Bastaria fazê-las nas Academias literárias, nas redações de jornais, no Congresso Nacional, nos Conselhos Universitários. Cada um só sabe as coisas do seu ofício – e olhe lá!

No meu livro O que é ficção científica (1986) citei uma frase de Arthur C. Clarke: “Uma pessoa que conheça tudo sobre as comédias de Aristófanes e nada sobre a Segunda Lei da Termodinâmica é tão inculta quanto aquela que dominou a teoria quântica mas pensa que Van Gogh pintou a Capela Sistina”. 

Nosso conhecimento do mundo será sempre imperfeito e deformado. É ilusão pensar que alguém, em algum momento, já entendeu o que é o mundo. Aristóteles, Hegel, Einstein, Marx, Freud... cada um deles descreveu uma unha do pé do elefante, e olhe lá. Mas isto não é razão para que a gente esnobe quem procura estudar o elefante, nem para que a gente se recuse a admitir que o elefante existe.





quinta-feira, 19 de novembro de 2009

1379) “Pré-História do Futuro” (15.8.2007)




No confronto de idéias entre a Cidade e o Sertão há um mito poderoso: o da Aventura, que cada qual, curiosamente, reivindica para si. 

Para os urbanos, a Cidade é uma colmeia fervilhante de eventos extraordinários, e o Sertão é um ermo sonolento e cheio de mosquitos onde nada acontece. São muitos os celebradores da cidade, desde Baudelaire e Poe até Balzac e Chesterton. Para esses autores, na cidade existe uma aventura em cada esquina. Mesmo um sertanista convicto como Ariano Suassuna coloca na boca de Quaderna, aos 10 anos de idade, esta exclamação deslumbrada com a vida na cidade (mesmo que sendo a Vila de Taperoá): 

“Somente naquela minha primeira manhã na Vila eu já tinha entrado em contato com a rua do sexo, da embriaguez, do jogo e dos desmandos do pecado; com o teatro; com a miséria degradante do Alto; com o esgoto do crime, na Cadeia; e com o anúncio de uma guerra iminente a se travar entre as forças de meu Padrinho e as de Antonio Moraes – e Samuel ainda achava que ali na Vila não acontecia nada!”

Já a vida aventureira e solta, a cavalo, nas planícies, correndo atrás do gado ou enfrentando tiroteios é a base onde se construiu o faroeste americano. Perto disso, a vida engravatada e burocrática das cidades é uma cadeia. 

Isto me lembra um romance ficção científica do francês Stefan Wul, Pré-História do Futuro (“Niourk”, 1957), ambientado num mundo futuro pós-apocalipse nuclear, quando os oceanos secaram e as metrópoles como Nova York estão tomadas pelo mato. O herói é um rapaz marginalizado em sua tribo por ser negro. Eles vivem de caçar polvos e comer seus cérebros. 

O rapaz negro foge da tribo e vai parar em Niourk, a grande metrópole em ruínas. Ali ele encontra astronautas que vêm à Terra para pesquisas arqueológicas, fica amigo deles, e percebe que está passando por uma mutação que lhe dá super-inteligência e super-poderes. 

É uma longa história; no final, o rapaz negro abre mão de todos esses poderes e até da possibilidade de reviver a antiga civilização urbana e tecnológica; e volta aos pântanos do antigo Oceano Atlântico, junto a sua velha tribo, para caçar e viver – diz ele – “A única vida que vale a pena ser vivida”. A vida da aventura.

Estes julgamentos são visivelmente apaixonados, afetivos. A aventura está no lugar que amamos. 

Para cada obra que exalta e revela a aventura urbana, temos outra que explora o tédio urbano, a rotina, a falta de perspectiva, o massacre do espírito pela claustrofobia da selva de cimento. 

Para cada obra que exalta e revela a aventura sertaneja, encontramos outra que desmascara a solidão e o silêncio sem fim das campinas, os vilarejos imóveis onde tudo que se faz é espantar moscas, a cidadezinha qualquer do “Êta vida besta, meu Deus”. 

Se a única vida que vale a pena ser vivida é a da aventura, a aventura está em nós mesmos, está em quem sabe ir procurá-la, seja nos arranha-céus e nos morros, seja nas caatingas e nas vilas.






1378) O sertão e o mar (14.8.2007)




(Icapuí, Ceará)

Podemos dividir a intelectualidade brasileira em dois grandes partidos: os que preferem Machado de Assis e os que preferem José de Alencar.

Notem que o sujeito não precisa desgostar do outro autor, ele apenas prefere um, identifica-se com o mundo dele, a mentalidade dele.

Glauber Rocha, em sua fase terminal, foi um alencarista ferrenho. Sentava o malho no pobre do Machado naqueles seus artigos cheios de K, Y e Z.

Outro alencarista era Sílvio Romero – na verdade, este era menos um caso de alencarista do que de anti-machadista. Romero chamava as obras de Machado de “comédias de almanaque”, criticava seu pessimismo que só servia para iludir alguns simplórios que achavam aquilo uma maravilha.

Quem equacionou essa questão de maneira mais algébrica foi Ariano Suassuna em As Infâncias de Quaderna. No Folheto 63, “Os Cortiços da Cidade e os Guerreiros do Sertão”, ele diz, através do personagem Samuel (o defensor da cultura ibérica), que desde a vinda da Coroa portuguesa o Brasil se dividiu:

“De um lado, os urbanistas cosmopolitas e ocidentalistas, os quais, sob o chamado espírito de civilização, pretendem aproximar o Brasil das elites européias; do lado oposto, os sertanistas, que sob o espírito da conquista, pretendem – a meu ver erradamente – realizar o nacionalismo através de uma fusão grosseira da épica com um certo tradicional-populismo que no nosso caso tem sido o escárnio da Nação e da Tradição!” 

E Samuel conclui indicando os autores-símbolo das duas correntes: Machado e Euclides da Cunha.

A descrição de Ariano é feita através do seu adversário ideológico, porque todo mundo sabe que entre Euclides e Machado o autor da Pedra do Reino escolherá sempre Euclides.

O importante, contudo é essa divisão teórica entre os Urbanistas (que incluem de Machado até Rubem Fonseca) e os Sertanistas (de Alencar até Graciliano, Zé Lins, Rachel de Queiroz, etc.). Essas duas correntes exprimem, por exemplo, as duas colonizações do Nordeste: a que foi feita pelo litoral em nome dos governos, e a que foi feita pelo interior, subindo o Rio São Francisco, em nome dos desbravadores anônimos.

O Brasil tem essas duas camadas, sendo que hoje em dia a camada Urbanista, civilizatória, se sobrepõe (em termos de poder político e econômico, e em termos de visibilidade) à camada Sertanista.

Hoje, dois terços de nossa população vivem nas cidades. Mas grande parte desses dois terços migraram do “sertão” (tomado aqui em seu sentido mais amplo e simbólico). A civilização urbana parece ser nosso destino evolutivo, ou pelo menos é nesse rumo que o mundo tem se encaminhado até agora. Mas quando esse mundo Urbanista entra em crise, fica sem valores e à deriva, ou sente-se à falta de um tutano, de uma medula, é no “sertão” que vai procurá-los.

A Cidade é a nossa face pública, racionalista. O Sertão é o nosso Inconsciente profundo, de onde nascem nossas emoções e onde pulsa “a única vida que vale a pena ser vivida”, como dizia Stefan Wul em Pré-História do Futuro.








1377) O Bosque de Birnam (12.8.2007)



Macbeth é um nobre escocês que certa noite hospeda o rei em seu castelo. Quando o rei está dormindo, Macbeth entra no quarto, corta-lhe a garganta e assume o trono da Escócia, de espada em punho, olhando em redor com aquela cara de “Que foi que viu? Vai encarar?!” Como dizia Dom Pedro Dinis Quaderna, uma maneira muito européia e fidalga de tornar-se rei.

Preocupado, Macbeth vai se consultar com as feiticeiras locais, e elas lhe dizem que, entre outros sinais, ele só será derrubado do trono “quanto o bosque de Birnam chegar a Dunsinane”, que é o castelo onde ele mora. É um pouco como dizer – quando a Floresta da Tijuca chegar ao Palácio do Catete. Macbeth sente firmeza e começa a praticar os maiores despautérios, até que os outros nobres mobilizam as tropas e marcham contra seu castelo. Ao passarem por Birnam, eles, sem sequer saberem da profecia, cortam os galhos das árvores e os empunham, para disfarçar o número de seus soldados. Macbeth recebe o alarma, vai até a muralha de Dunsinane, e o que vê no horizonte? O bosque de Birnam marchando na direção do seu castelo.

É vezo das profecias parecerem impossíveis e depois se concretizarem graças a um pulo-do-gato qualquer. Há um livro notável e pouco conhecido de Malba Tahan intitulado Sob o Olhar de Deus, que em sua primeira edição tinha o título “O Aviso da Morte”, mais descritivo do seu conteúdo. Célio Musafir, um escritor de sucesso, recebe uma noite a visita da Morte, que faz um pacto com ele: quando chegar a hora de levá-lo embora, lhe dará um aviso. Aliviado com esta promessa, Musafir passa a viajar, ter aventuras, fazer caçadas, escalar montanhas, etc., confiante de que a Morte cumprirá a palavra. Anos depois ela volta a lhe aparecer e diz que está na hora. Ele reclama que não recebeu aviso nenhum. E a Morte diz: “Meu amigo! E aquelas avalanches na montanha, e aquele tigre que quase o alcançou, e aquele seu barco que naufragou, etc. – isso não foi aviso suficiente de que eu estava chegando perto?!”

Compreensivelmente, ele diz que não entendeu assim. Quer um aviso claro, inconfundível; e a Morte diz: “Então tá bom. Escolha o aviso”. Ele pensa um pouco e diz: “Quero que o aviso seja esta cena: uma mulher de preto, sentada num piano, à luz de velas, tocando a Marcha Fúnebre de Chopin”. A Morte aceita: “Tá legal. Quando chegar sua hora, você verá exatamente isso”. E desaparece.

Musafir respira aliviado e pensa: “Bom, tudo que eu tenho a fazer daqui em diante é deixar de ir a concertos de piano”. E vai à janela, para fechá-la e ir dormir. Quando chega lá, vê do lado oposto da rua que na mansão em frente está havendo uma festa: pela janela ele vê a sala da mansão, e bem ali, no meio, adivinhem o quê. Ele vacila, cambaleia, leva a mão ao coração e (a frase final é uma citação de Dante) “caiu como um corpo morto cai”. Bem feito. Ele, um homem culto, leitor dos clássicos, deveria saber que o bosque de Birnam sempre chega a Dunsinane.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

1376) Música onomatopaica (11.8.2007)




Uma coisa que alguns leitores de poesia às vezes não percebem, e mesmo quando percebem não aceitam, é que a sonoridade das palavras faz parte da arte poética. É um fator a mais de beleza, é uma região onde o poeta pode exercer sua criatividade, e deve sempre ser levada em conta. Mesmo quando o poeta, como aqueles fotógrafos que se recusam a trabalhar com a cor, prefere abrir mão dela. É um direito do artista, claro. São opções estéticas desse tipo que, somando-se umas às outras, delineiam o perfil do artista. Mas nem por isso a sonoridade deixa de existir no mundo da poesia, ou a cor deixa de existir no mundo da fotografia. Estão aí, doidas para serem bem trabalhadas por quem goste delas e as entenda.

Um grande poema lido em voz alta independe do idioma para que se perceba sua textura sonora. Ouvir um bom ator lendo desde o verso cadenciado e as rimas exatas de Kipling até os ritmos mais complexos e as rimas mais sutis de Eliot é uma experiência estética parcial mas satisfatória, até para quem não sabe inglês. Se na poesia escrita é assim, o que dizer da letra de música? Essa, sim, é sonoridade em estado puro, saltando direto das cordas vocais de um para os tímpanos do outro.

Nem toda letra de música nasce da poesia escrita. Grande parte das letras de música nascem do cantarolar difuso, onomatopaico, com que os compositores acompanham o momento da criação musical ao instrumento. Todo mundo, quando está inventando uma melodia, recorre ao “lalari-lalá”, ao “tantarim-tarim-tantan”, ao “undererê, undererá”. São marcações sonoras que estão ali apenas “guardando o lugar” para versos que virão depois. Muitas vezes, essas sílabas aleatórias se impregnam de tal maneira na melodia que quando é depois a gente só consegue criar os versos seguindo as mesmas rimas, as mesmas finalizações.

E essas coisas acabam se transportando para a letra final. Lembrem do “Can-ganscans-gansculans” de Adoniran Barbosa, do “tchubidu-bidu” de Djavan, do “Wop-bop-abalooba-wob-bop-bem-boom” de Little Richard, do “Bumbum-paticundum-prugurundum” de Aloísio Machado e Beto Sem Braço, do “yeah, yeah, yeah” de Lennon e MacCartney... Sons assim acabam batizando os estilos musicais, daí nos EUA existirem estilos como o “doo-wop” (aqueles coros-a-quatro-vozes das baladas românticas estilo The Platters: “Only yoooou...”), o”cha-cha-cha” latino, e o nosso brasileiríssimo, onipresente e indefinível “chacundum”.

Música é som, e quando a poesia adentra o território da música não pode entrar muda e sair calada, apenas erguendo uma cartolina branca com versos escritos. Tem que abrir a boca, soltar o grito ou caprichar no sussurro, tem que produzir algum som e dizer a que veio. É compreensível que poetas e ouvintes pouco afeitos a isto recuem diante dessa obrigação. Nada contra. Mas tudo que se comunica através do som (e não da página escrita) tem que pagar seu tributo aos deuses da sonoridade. Se não, que graça tem?

1375) O efeito da Coca-Cola (10.8.2007)



Encontrei este texto no saite “No Mínimo”. Não boto a mão no fogo pela verdade científica, mas me pareceu vagamente plausível. Não sei o autor nem a origem do texto, “estou vendendo pelo preço de fatura”. O texto descreve o que acontece no seu organismo quando você bebe uma lata de Coca-Cola.

“NOS PRIMEIROS 10 MINUTOS: 10 colheres de chá de açúcar batem no seu corpo, 100% do recomendado diariamente. Você não vomita imediatamente pelo doce extremo porque o ácido fosfórico corta o gosto. 20 MINUTOS: O nível de açúcar em seu sangue estoura, forçando um jorro de insulina. O fígado responde transformando todo o açúcar que recebe em gordura. (É muito neste momento particular.) 40 MINUTOS: Absorção da cafeína está completa. Suas pupilas dilatam, a pressão sangüínea sobe, o fígado responde bombeando mais açúcar na corrente. Os receptores de adenosina no cérebro são bloqueados para evitar tonteiras.

“45 MINUTOS: O corpo aumenta a produção de dopamina, estimulando os centros de prazer do corpo. (Fisicamente, funciona igualzinho com heroína.). 60 MINUTOS: O ácido fosfórico empurra cálcio, magnésio e zinco para o intestino grosso, aumentando o metabolismo. As altas doses de açúcar e outros adoçantes aumentam a excreção de cálcio na urina. 60 MINUTOS: As propriedades diuréticas da cafeína entram em ação. (Você urina.) Agora é garantido que porá para fora cálcio, magnésio e zinco dos quais seus ossos precisariam. 60 MINUTOS: Conforme a onda abaixa você sofrerá um choque de açúcar. Ficará irritadiço. Você já terá posto para fora tudo o que estava na Coca, mas não sem antes ter posto para fora junto coisas das quais seu organismo precisaria.”

Rapaz... É um negócio arrepiante. É como se alguém descrevesse todo o trajeto de uma petição de aposentadoria no INSS. Para efeito de contraste, vai aqui um comentário de um leitor do saite que se assina “Rico”:

“É um exagero (...). Se em 20 minutos seu figado já converteu toda a a glicose em gordura, como o aumento da pressão pode bombear mais glicose, se você já está com a glicemia baixa novamente? O figado só converte a glicose em gordura se você já estiver com a glicemia alta, se não, você metaboliza-a em energia (seu cérebro é sedento de glicose). Como o ácido fosfórico empurra cálcio e zinco para o cólon? Ele precipita cálcio, mas você precisaria ingerir muito ácido fosfórico para prejudicar a absorção de cálcio. E em qualquer refeição você absorve muito ácido fosfórico, que é abundante nos seres vivos. O aumento da diurese feito pela cafeína não significa aumento de perda de íons, mas apenas de água. O aumento da dopamina ocorre nomalmente quando temos uma sensação prazerosa, etc etc…. Uma bobajada sem base bioquímica ou fisiológica.A única coisa certa é que a Coca e qualquer refrigerante tem MUITO açúcar, portanto evite, dê preferência a sucos naturais; mas de vez em quando não vai matar ninguém.”

Para vocês verem o quanto é difícil optar entre duas teorias científicas.

1374) Onomatopéias (9.8.2007)



(Roy Lichtenstein)

Podemos aprender muito sobre a formação das línguas estudando as onomatopéias, aquelas palavras que procuram reproduzir um som. “Bang” é uma onomatopéia inglesa que reproduz um tiro de arma de fogo, e é uma palavra reconhecível internacionalmente. Nossa nordestiníssima “Pêi” não tem a mesma fama, mas tem a mesma eficácia. Pense numa expressão eloqüente como “Pêi-bufo”. Existe maneira mais descritiva e mais sonora de dizer “tiro e queda”?

Vejam agora a palavra “pipôco” (que os cearenses, p. ex., dizem “papôco”). É uma onomatopéia? Eu creio que sim, porque ela reproduz uma coisa que acontece com freqüência: uma pequena detonação seguida de outra muito mais forte. É o martelinho da espingarda estalando a espoleta (“pi”), e depois o tiro propriamente dito (“pôu”). Algum lexicógrafo virginiano virá me perguntar por que então a palavra não é “pipôu” apenas. E eu responderei que assim seria, se quem inventasse as palavras fossem os lexicógrafos. Mas não é. Essas palavras são uma criação coletiva e aleatória do Povo, e em tais processos a gente só deve tentar explicar as coisas até um certo ponto. Depois, nem Freud explica.

Eu mesmo considero que algumas onomatopéias são erradas. Vejam a palavra “tchibum”, o ruído de alguém mergulhando nágua de certa altura. Está errada. Era para ser algo como “bum-tchi”, porque na verdade ouvimos primeiro a queda pesada do corpo, e depois o espalhar da água que foi jogada ao ar, voltando a cair na superfície. Em casos assim, O Povo me desculpe, mas O Povo errou. Por outro lado, a palavra “atchim” para exprimir um espirro está certíssima: primeiro o ar sendo aspirado para encher os pulmões, e depois a descarga.

Na canção “Filomena e Fedegoso” cantado por Jackson do Pandeiro tem um verso, falando da roupa comprada pelo matuto no Rio de Janeiro: “Ele diz que comprou no magazim... Pois sim! Como vai, seu vuco-vuco?”. Explicar isso a quem não é nordestino é um drama. Primeiro temos que dizer que “vuco-vuco” é onomatopéia de um movimento implacável e contínuo como o de um serrote serrando uma tábua. Depois, por extensão, qualquer agitação que não pára. Depois, por nova extensão, o mercadinho popular (os atuais camelódromos) onde se vendem produtos baratos e por isto vivem numa agitação febril e permanente, que nunca pára. E por fim tem que explicar que esse “como vai” é uma ironia, cumprimentando a roupa: “Como vai, seu vuco-vuco?” (E eu calculo que dirigir-se a algo inanimado, personificando-o, já é uma parenta da onomatopéia: a “prosopopéia”).

Quando Mestre Fuba compôs o “Hino das Muriçocas do Miramar”, usou a palavra “trelelê”, que eu, pelo menos, desconhecia. Talvez fosse uma gíria comum em João Pessoa, mas eu nunca tinha escutado. E aí eu estava com alguns amigos cariocas escutando a música, e um deles me perguntou: “O que é um trelelê?” E eu dei a única resposta que me pareceu cabível: “É um zum-zum-zum zunindo”. Se ele não entendeu, não posso fazer nada.

1373) O apocalipse evangélico (8.8.2007)




Um novo gênero literário está surgindo nos EUA: a ficção científica apocalíptico-evangélica. São livros que têm feito muito sucesso e foram adaptados para o cinema. O nome da série (já com mais de 12 títulos), tirado do primeiro romance, é Left Behind (“Deixados para Trás”). Sua premissa é o fenômeno religioso chamado “the Rapture”, que pode ser traduzido como “rapto”, “arrebatamento”, “abdução”: de um momento para outro, todos os verdadeiros cristãos desaparecem da Terra, levados para o Paraíso, e aqueles que são “deixados para trás” têm que enfrentar um mundo que regride ao caos e à selvageria como num romance de terror de Stephen King, para se redimirem através das boas ações e da fé.

A base dessa crença está em várias passagens bíblicas, como na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, cap. 4, versículos 15-16: “Porque o mesmo Senhor com mandato e voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus, descerá do céu: e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós os que vivemos, os que ficamos aqui, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens a receber a Cristo nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor”.

Chamei ao gênero de FC, mas não porque haja uma base científica para essa crença, que é puramente uma questão de fé ao-pé-da-letra no texto bíblico. Mas os temas apocalípticos em geral têm sido terreno literário da FC: guerra nuclear, crise ambiental, invasão alienígena, cataclismos tectônicos... Diferentes receitas de fim-do-mundo foram experimentadas pela FC, de modo que esse apocalipse evangélico guarda pelo menos uma relação de parentesco colateral. O New York Times saudou o romance (de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins) como uma mistura de Tom Clancy, amor romântico, referências bíblicas e macetes “high-tech”.

O mais engraçado é que a série foi transformada num video-game. “Video-game religioso?”, perguntarão alguns. “Que bom! Até que enfim!” Mas eis a descrição do game (intitulado Left Behind: Eternal Forces), feita pelo jornalista Jonathan Hutson: “Imagine que você é um soldado num grupo para-militar cujo propósito é reconstruir a América numa teocracia cristã, e estabelecer no mundo a visão do domínio de Cristo sobre todos os aspectos da vida. Você recebe armamentos de última geração, e instruções para combater os infiéis nas ruas de Nova York. Sua missão é religiosa e militar: converter ou matar os católicos, os judeus, os muçulmanos, os budistas, os homossexuais, e qualquer pessoa que defenda a separação entre a Igreja e o Estado, especialmente os cristãos moderados. Sua missão é travar uma guerra física e espiritual, e todos os que resistirem devem ser combatidos de forma radical”. Interessante esta curiosa mistura de fundamentalismo pós-11-de-setembro, jogos de guerra, comércio, apocalipse e FC militarista. Não é por nada não, mas se era preciso um sinal de que o fim do mundo está perto, então não precisa mais.


1372) O peso fantástico (7.8.2007)


Um dos atributos mais inquietantes e mais raramente usados na narrativa fantástica é o peso de um objeto ou de uma criatura. Coisas excessivamente pesadas ou excessivamente leves nos produzem uma sensação do estranho, do sinistro, do “uncanny”. 

Lembro-me da antiga lenda a respeito de São Cristóvão, um gigante de bom coração que vivia à beira de um rio, transportando pessoas de um lado para o outro. Um dia aparece um menino que pede para ser carregado. Cristóvão o coloca nas costas mas quando começa a caminhar sente que o peso do menino aumenta extraordinariamente a cada passo dado. No meio do rio, ele já não agüenta mais, é como se o garoto pesasse toneladas. Ele se assusta, pergunta a que se deve aquilo, e o garoto responde que é Jesus Cristo, e que pesa daquela forma porque carrega consigo os pecados da humanidade. 

É uma bela lenda, que admite também o seu reverso, porque já ouvi dizer que o ataúde de um criminoso ou de um suicida costuma ser pesadíssimo, como se estivesse carregado de pedras: é o peso da culpa, do pecado não-expiado. 

O peso sobrenatural foi explorado por Ariano Suassuna num episódio no Folheto 33 do Romance da Pedra do Reino, “O estranho caso do cavaleiro diabólico”. O cantador Lino Pedra Verde está indo para o roçado quando vê no descampado, a certa distância, um Cavaleiro sobrenatural de cuja boca aberta saem sete línguas em forma de serpentes. O Cavaleiro se encaminha em sua direção, e Lino percebe que o seu peso é tal que o chão começa a pender em sua direção: pedras começam a rolar, e é como se todo o chão do planeta se inclinasse na direção do lado onde está o Cavaleiro, devido ao seu peso. 

Mesmo quando há uma explicação científica para isto, a estranheza permanece. É o que se dá no conto de Jorge Luís Borges “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, em que o narrador começa a perceber que o mundo está sendo invadido por objetos pertencentes a um universo paralelo ao nosso. Um desses objetos é “um cone reluzente, do diâmetro de um dado”. Diz o narrador: 

“Em vão um menino tentou recolher esse cone. Apenas um homem mal conseguiu levantá-lo. Peguei-o na palma da mão por alguns minutos: lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o cone, persistiu a pressão. Também me lembro do preciso círculo que me gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e ao mesmo tempo pesadíssimo deixava a impressão desagradável de asco e medo”. 

A impressão de asco é mais uma reação fisiológica do que moral. Objetos muito pesados ou muito leves distorcem nossa apreensão instintiva de massas, volumes, etc., e entrar em contato com eles é como estar no convés de um navio que oscila. Temos uma sensação de náusea ou de enjôo, porque nosso cerebelo ou nosso labirinto (sei lá qual é o órgão que controla isto) perde o referencial. 

Qualquer distorção na nossa percepção do espaço e do tempo tem uma conseqüência parecida, fazendo nossa fé na realidade cair verticalmente.





domingo, 15 de novembro de 2009

1371) Michelangelo Antonioni (5.8.2007)



Mal nos acostumávamos à perda de Ingmar Bergman, chega no dia seguinte a notícia da morte, aos 94 anos, de Michelangelo Antonioni. E o mundo vai ficando cada vez mais vazio, mais despovoado, ao perder justamente dois dos cineastas que mais nos ensinaram o que é a incomunicabilidade entre os seres humanos e o quando é vasta nossa solidão dentro de nós mesmos. Bergman e Antonioni eram de uma época em que escritores e cineastas discutiam questões filosóficas, e o público ia ao cinema para se inteirar destas discussões. Com o verdadeiro massacre anti-intelectual que vigora na cultura-de-massas de hoje, suas obras estão virando peças de museu. O cinema cultiva a violência gratuita e a permissividade sexual. E no meio do alarido e da “balada” as pessoas (pasmem) estão cada vez mais solitárias, mais bergmanianas, mais antonionescas. Bem feito.

Antonioni tornou-se famoso por uma trilogia de filmes introspectivos e plasticamente perfeitos, com fotografias P&B maravilhosas: A aventura, A noite e O eclipse. Meu filme preferido é o que ele dirigiu a seguir na Londres pop e roqueira: Blow Up – Depois daquele beijo, inspirado num conto de Julio Cortázar. Fez nos EUA Zabriskie Point (que pouca gente gostou) e depois um belo filme a cores, Deserto Vermelho. Fez outra obra-prima incontestável: O Passageiro – Profissão repórter, com Jack Nicholson. Depois disso perdi de vista sua obra, que foi mal distribuída no Brasil e não despertou muita atenção. Para mim, seu nome está associado a estes filmes – e mais a O Grito, seu primeiro filme importante, que vi no Cine Babilônia, história de um operário que é traído pela mulher e sai vagando pela Itália, desconsolado, até voltar para casa e suicidar-se.

Antonioni era chamado “o cineasta da incomunicabilidade”. Seus filmes têm longas cenas, impecavelmente iluminadas e enquadradas, em que os personagens conversam como se não escutassem um ao outro (as pessoas fazem isso o tempo todo, sem perceber, e quando vêem no cinema não entendem, pensam que é um defeito do filme). Quando estudei cinema, um professor meu falava o tempo todo no “cinema arquitetônico” de Antonioni: um cinema onde o ambiente, os espaços, as paredes, as colunas, os portais, têm uma importância tão grande quanto as pessoas. Se Bergman tornava mais real um simples objeto, nos filmes do italiano a câmara em movimento nos conduzia fisicamente através de um ambiente onde nos sentíamos mais presentes do que aqueles casais sem rumo que vagavam por ali: Mastroianni, Jeanne Moreau, Alain Delon, Monica Vitti.

Antonioni teve um derrame e perdeu a fala; mesmo assim continuou dirigindo filmes. Parece uma situação de um filme seu, ou melhor, não parece, pois ele jamais recorreria a uma situação tão melodramática para expressar a idéia de que “é conversando que a gente se desentende”, princípio básico de seu cinema, onde o próprio cinema é a única linguagem que nos atinge na medula do ser.

1370) O futebol no Iraque (4.8.2007)



Domingo passado, a seleção de futebol do Iraque ganhou pela primeira vez na História a Copa da Ásia, ao derrotar por 1x0 a Arábia Saudita, num jogo realizado em campo neutro, na Indonésia. É um dos grandes acontecimentos futebolísticos do ano. Todos nós acompanhamos pela imprensa a situação de caos e de carnificina que vive o país iraquiano, com massacres quase diários através de carros-bombas, seqüestros e execuções sumárias, atentados, etc. O país está se fazendo em pedaços, e o pior de tudo é que nem sequer são os invasores norte-americanos que promovem as matanças, são os próprios iraquianos que vão na goela uns dos outros.

O Iraque é um arranjo geopolítico criado pelas potências européias para ocupar aquela região do Oriente, riquíssima em petróleo e em relíquias históricas. A população consiste mais ou menos em 45% de árabes xiitas, 30% de árabes sunitas e 25% de curdos. Todos se odeiam, e não é de hoje. Durante a ditadura sunita de Saddam Hussein, ele perseguia os adversários, reprimia-os, e impedia que estes retaliassem. Quando os americanos derrubaram Saddam, foi como soltar no quintal três pitbulls que se detestam.

A seleção de futebol inclui jogadores dos três grupos. O país inteiro torceu por ela. Ela representa as principais etnias e religiões do país; é um pouco como aquela seleção francesa campeã em 1998, onde havia gente de origem francesa, belga, suíça, argelina, africana, etc. Um quebra-cabeças onde todo o mosaico cultural francês estava representado. Pois os iraquianos derrotaram na semi-final a Coréia do Sul, nos pênaltis, após um empate de 0x0. No domingo, venceram a Arábia Saudita e a festa tomou conta do país inteiro.

Quer dizer – a festa, e a matança. Já no jogo da semifinal, durante as comemorações, dois carros-bombas explodiram em praças repletas de torcedores em festa, matando mais de 50 pessoas. Como se não bastasse isto, os iraquianos, como outros povos árabes, têm o costume de comemorar as ocasiões festivas disparando para o alto tiros de armas de fogo. Pelo menos duas pessoas morreram atingidas por balas disparadas para o alto e que voltaram a cair sobre a multidão.

Pode ser desumano o que vou dizer, mas essas notícias me entristeceram muito mais do que as que vejo toda semana, quando os carros-bomba simplesmente matam gente em fila de emprego ou gente fazendo a feira num mercado. Eu lamento essas mortes, mas me conformo um pouco. Mas quando vi as notícias sobre as mortes de torcedores que comemoravam a vitória da seleção, a dor foi grande. Talvez porque a seleção, uma imagem utópica da convivência pacífica entre aqueles grupos, tenha sido ofendida no meio de sua maior festa. Talvez porque o técnico do Iraque seja um brasileiro, e isso de certa forma deixe os iraquianos um pouco mais próximos de nós. A morte de quem parece com a gente, digamos a verdade, sempre nos comove mais do que a morte do diferente, a morte do distante.

1369) Ingmar Bergman (3.8.2007)




O mundo está ficando mais deserto. Quando morre uma pessoa como o cineasta sueco Ingmar Bergman, a sensação que eu tenho é de olhar em volta e não estar vendo ninguém. Como se todos os personagens criados por ele ficassem transparentes, quase invisíveis, num estalar dos dedos. 

Bergman nunca foi o meu cineasta favorito, mas no tempo em que eu abri os olhos para o Cinema de Arte ele pontificava absoluto, incontestável, unânime. Mesmo os que não gostavam de sua temática sombria reconheciam o primor de sua linguagem. 

Fazia um cinema denso, sofrido, existencial, maduro. Paulo Francis disse certa vez: “A diferença entre Godard e Bergman é que Godard leu a orelha do livro, e Bergman leu o livro”.

O filme típico de Bergman é a história tormentosa da relação afetiva entre pessoas maduras. Aqui entram A Hora do Amor, Cenas de um Casamento, Persona, Gritos e Sussurros, filmes introvertidos, magnificamente fotografados. 

Como dizia Francis, Bergman sabe como ninguém dar concretude às pequenas coisas: uma xícara, uma janela, uma mão. Há vários títulos seus que nunca vi, talvez seja este o momento de conhecê-los: O Silêncio, Sorrisos de uma Noite de Amor, Noites de Circo, Fanny e Alexander. É uma obra imensa, mas hoje felizmente acessível em DVD.

Tenho uma queda especial pelos seus filmes que envolvem elementos fantásticos. 

O Sétimo Selo é uma fábula medieval sobre um mundo devastado pela peste, a qual no fim arrebanha a todos, menos um casal de saltimbancos. A imagem final, dos seis mortos dançando de mãos dadas na colina, conduzidos pela Morte, é uma das mais belas do cinema. 

O Rosto é a história de um mágico que visita um castelo e revoluciona as vidas de todos com seu ilusionismo. 

A Hora do Lobo fala dos fantasmas e dos pesadelos de um artista, tão intensos que sua esposa acaba por vê-los. 

Também gosto (ao contrário da maioria dos críticos) das suas obscuras e incômodas alegorias políticas como Vergonha, um filme sobre a sordidez moral imposta pela guerra, e O Ovo da Serpente, uma mistura de 1984 com O Show de Truman, em que um casal é submetido à revelia a cruéis experiências psicológicas.

Bergman costumava trabalhar com os mesmos atores, os mesmos técnicos (como o diretor de fotografia Sven Nykvist, um dos melhores do cinema), os mesmos enredos. Não era um cineasta fácil, e hoje não sei se é um cineasta para ver e rever obsessivamente aos vinte anos, como fazíamos. Pelo impacto massacrante de suas imagens e pela imensa verdade psicológica transmitida por seus atores, ficávamos com a impressão de que a vida real era aquilo e nenhuma outra coisa. 

Ficávamos achando que tínhamos de pensar como os personagens de Bergman, sentir como eles, experimentar a vida como eles. Não era só imaturidade emocional ou postura colonizada diante do cinema europeu. Era porque um prato na mesa, num filme de Bergman, parecia mais real do que o cinema onde estávamos.






sábado, 14 de novembro de 2009

1368) Fora de quadro (2.8.2007)



No filme Tempo de Guerra (Les Carabiniers), de Jean-Luc Godard, há uma cena em que um rapaz matuto, que se alistou no exército para combater, vê um cinema pela primeira vez. Ele senta na platéia, e logo aparece na tela a famosa imagem do trem vindo na direção da câmara. Como as platéias do Cinematógrafo Lumière de 1895, ele se apavora, cobre a cabeça com as mãos, encolhe-se na cadeira. Logo em seguida aparece a cena de um banheiro onde uma mulher enrolada numa toalha se prepara para o banho, bota a banheira para encher, etc. Quando a mulher começa a tirar a toalha, caminha para um dos lados, saindo do campo de visão da câmara. Animadíssimo, o rapaz sai pulando por cima das filas de cadeiras e, chegando junto da tela, cola o rosto ao pano, espiando na direção em que a mulher sumiu.

Como qualquer cena de um filme de Godard, esta tem uma importante mensagem semiótica e um profundo sentido metafísico. (Para sermos justos, é preciso reconhecer que quando o sujeito tem vocação semiótica e metafísica nem precisa de Godard, ele enxerga isso até num filme de Xuxa ou num comercial de pneu.) Em primeiro lugar, por que rimos do rapaz? Porque somos espertos, somos sabidos, temos consciência de que o que está fora do quadro cinematográfico tem existência implícita mas não pode, nem precisa, ser enxergado. Sabemos que há uma continuidade lógica entre o mundo da imagem e o mundo fora dela: uma mulher que sai envolta numa toalha não retorna metamorfoseada em libélula ou em cangaceiro. Fora do quadro, as coisas continuam sendo elas mesmas. Mas não têm imagem. A moldura retangular está ali para isto mesmo, para delimitar a área onde tudo precisa ter imagem.

Em segundo lugar, lembremos nosso espanto, na infância, quando percebemos que os personagens de um filme nunca precisavam – por exemplo – ir ao banheiro. Pareciam imunes a esta dimensão plebéia. Isto nos levou a descobrir que não somente o espaço, mas o tempo daquela Terra Plana era diferente do nosso. Assim como havia uma porção de espaços subentendidos, era lícito supor que acontecimentos não vistos tinham se passado.

E por fim... Talvez o nosso mundo aqui, de quatro dimensões, funcione do mesmo jeito. Nós, os filósofos e cientistas, somos os matutos teimosos que correm para junto da tela querendo ver a Natureza nua, querendo ver os super-cordéis vibrantes do espaço-tempo, querendo ver a purpurina dos quarks agitando-se nos campos de força. Queremos olhar para fora do quadro da matéria, das quatro dimensões, da seta unidirecional do Tempo. Platão, Aristóteles, Aquino, Hegel... E Einstein, Bohr, Heisenberg, Hawking, Feynman... Todos eles são matutos teimosos, recusando-se a admitir que o mundo acaba nisso que vemos. O que nos move é o impulso de saber, de ir às últimas deduções, de desvendar, de descobrir, de ver a mulher tirando a toalha. Existe coisa mais estimulante para o intelecto do que uma mulher tirando a toalha?

1367) A pirâmide olímpica (1.8.2007)



O esporte olímpico consagrou a imagem do pódio para os três melhores colocados: ouro, prata e bronze. Em torno dessa comemoração, existem duas atitudes diferentes. Uma é a dos atletas que repetem sem cessar, como cansamos de ver nesse Pan do Rio: “Estou muito feliz com este bronze...”, “Esta prata para mim vale ouro...”, e assim por diante. A outra é a dos torcedores que torcem o nariz para as medalhas de prata e achincalham os ganhadores do bronze: “Essa aí não vale nem uma tampa de garrafa”.

Por um lado eu compreendo. A prata é aquele prêmio que se conquista com uma derrota. Quem ganha a prata, teoricamente, era o sujeito que estava tentando ganhar o ouro, foi para a final, teve chance – e não conseguiu. É compreensível, até certo ponto, que o torcedor o veja como um derrotado. E que alguns medalhistas de prata tenham no pódio aquela expressão meio vaga, meio taciturna, de quem só está ali porque o regulamento obriga, mas se pudesse já tinha trocado de roupa e voltado direto pro hotel, para trancar a porta do quarto e apagar a luz. Quanto ao bronze, é o prêmio dos que “bateram na trave”, não conseguiram nem sequer ir à final.

O pódio com seus dois degraus é apenas o topo minúsculo de uma pirâmide gigantesca. Abaixo daquele segundo degrau, onde estão a prata e o bronze, está outro com quatro lugares, e depois um com oito, outro com dezesseis, outro com trinta e dois, e assim por diante, em progressão geométrica. Essa pirâmide é formada pelos atletas que disputaram as competições classificatórias e eliminatórias que um medalhista atravessa ao longo de anos e anos para poder alcançar os índices que lhe permitiram ir ao Pan, à Olimpíada ou ao Mundial da sua categoria. Se pudéssemos reunir em carne e osso todos os atletas que participaram dessas disputas, teríamos uma pirâmide-de-degraus da altura da Pirâmide de Quéops, e talvez precisássemos de um binóculo para ver lá no topo, miudinhos, os três medalhistas.

Como todo subdesenvolvido, como todo mundo que tem pouco, o torcedor brasileiro é Desejo puro. No futebol, ganhar uma Copa do Mundo já não nos basta: é preciso ganhar de goleada, e ridicularizando o adversário, dando olé, dando toquezinho. Quando simplesmente ganhamos mas não damos baile, como em 1994, os exigentes fazem cara feia. Essa mesma mentalidade, de quem tem tão pouco que só se contenta com tudo, é a que nos faz esnobar as pratas e os bronzes conseguidos por nossos atletas.

O atleta que ganha um bronze pode considerar que naquele momento, naquela modalidade, só existem dois caras melhores do que ele, e existem centenas ou milhares que ele deixou para trás, direta e indiretamente. Ser o terceiro num grupo de mil não é brincadeira. E não é uma derrota, mesmo que o derradeiro jogo tenha sido perdido. As medalhas são atribuídas em função do resultado da última disputa, mas quem sobe ao pódio está no ponto final de uma escalada cujo percurso se perde de vista.