quarta-feira, 22 de julho de 2009

1169) Leia Fulano (12.12.2006)





(biblioteca da Universidade de Coimbra)

Esta é uma das frases mais úteis e mais perigosas que a gente escuta na vida, principalmente quando é jovem. 

A gente está discutindo um assunto qualquer e aí um sujeito mais velho e mais bem informado diz: “Ah, você nunca leu Fulano de Tal? Precisa ler. Tem tudo a ver com isso que você está dizendo”. 

Aluno relapso no colégio, sempre fui bom estudante fora dele, e quando ouvia algo assim corria para a biblioteca mais próxima. Claro que esse procedimento me trouxe revelações e decepções em igual medida. Recomendar autores é sempre um tiro no escuro. A gente nunca pode garantir que a reação química necessária vai acontecer – mas afinal, não custa nada.

Recomendações ao contrário (“Não leia!”) também têm peso, e às vezes podem nos trazer prejuízos. Quando eu tinha 21 anos, conversando sobre psicologia com meu guru João Bigode, ele se saiu com esta pérola: “Politicamente, Freud é o centro na psicologia, sendo que Reich é a esquerda e Jung a direita”. 

Não sei se João ainda assinaria embaixo desta fórmula tão audaciosa, mas ela despertou meu interesse por Wilhelm Reich, que aliás nunca consegui ler, devido ao seu estilo invulnerável. Foram precisos quase dez anos para que eu aceitasse abrir um livro de Jung, e depois que comecei não parei mais. Será que sou de direita?

O problema das recomendações é que elas são feitas na direção errada. Devemos recomendar aos amigos o extremo oposto do que eles são, para injetar um pouco de equilíbrio em suas vidas. 

Se você tem um amigo que é tímido e moralista, não lhe deve aconselhar Jacques Maritain, e sim Henry Miller. Se você conhece uma moça pragmática, dedicada aos aspectos políticos-ideológicos da vida, nada de Simone de Beauvoir; dê-lhe as contemplativas como Cecília Meireles ou Emily Dickinson. Ajuda a ampliar-nos os horizontes, a não afundar na mesmice.

“Leia Fulano de Tal!” Nunca vamos saber se aquilo vai ser útil ao nosso interlocutor. 

Tenho amigos que leram Charles Bukowski e levaram uma década para recompor o fígado e retomar uma vida normal. O contato precoce com os estruturalistas franceses é decerto responsável pela epidemia de opacidade que se alastrou na vida acadêmica brasileira nas últimas décadas. 

Alguns autores de estilo marcante grudam-se a nossa mente e é quase impossível livrar-nos deles: Fernando Pessoa e Clarice Lispector são dois exemplos notórios, que retornam para malassombrar as novas gerações, de dez em dez anos. Quando vejo alguém invadido por estes espíritos, recomendo doses maciças de Brecht e Hemingway.

Temos que escolher autores e livros baseados na confiança no poder terapêutico do Acaso, nos relâmpagos instintivos que nos sussurram palpites, e nas cadeias de associações de idéias que são a química profunda da Cultura. Portanto, não me peçam recomendações. O remédio que cura meus achaques pode lhes provocar crise alérgica. O acepipe que me deleita o paladar pode ser-lhes um bate-entope intragável.


1168) A arte de ler nuvens (10.12.2006)




A natureza da imagem cinematográfica é uma coisa engraçada. O que é aquilo? Uma superfície branca, boa de reflexo, chamada tela. Imagens semi-transparentes são projetadas ali para que as vejamos de uma certa distância. E essas imagens conseguem criar, assim como as camadas de tinta de uma pintura convencional, a ilusão de profundidade, de espaço, da presença de coisas. E da passagem do tempo.

O crítico Andrew Sarris resume assim o cinema: “A grande arte do cinema consiste em relacionar o que é mostrado com o que não é mostrado, e em definir essências a partir de superfícies”. 

Neste aspecto, o estudo do cinema não se distingue muito do estudo da fotografia. Ensaios de pessoas como Roland Barthes (A Câmara Clara) e Susan Sontag (Sobre Fotografia) mostram o quanto é possível a mente do sujeito viajar pelos quatro cantos do mundo e pelos labirintos da psicologia e da cultura tendo como ponto de partida apenas algumas manchas pretas e brancas sobre um pedaço de papel. Superfícies.

Ver cinema ou fotografia exige algo da argúcia de Sherlock Holmes. Holmes olha para um cliente desconhecido que acabou de entrar em seu apartamento e diz: “Boa tarde, Sr. Smith, o que o traz aqui? Nada sei sobre o sr., a não ser que é maçom, canhoto, ex-oficial da Marinha, viúvo, tem um casal de filhos, e que a janela do seu quarto dá para o nascente”. 

A meia página seguinte é dedicada a justificar estas observações a partir dos indícios de vestuário, aparência, pacotes que o Sr. Smith carrega, etc. Este espírito dedutivo está presente em parte no espectador de cinema, com o qual o diretor estabelece um diálogo de pistas e indicações.

Percebemos melhor esses processo quando o vemos diluído em clichê. Um sujeito apressado fala ao telefone. Sai, bate a porta. Zoom da câmara sobre um chaveiro esquecido sobre a mesa. O espectador entende que o cara bateu a porta por fora e não vai conseguir entrar. 

Recados narrativos são dados o tempo inteiro pelo filme, e o espectador, desde criança, vai aprendendo a somar dois mais dois.

Mas o que dizer dos recados não-narrativos, das imagens que o diretor filma porque o impressionam sem que ele saiba por quê? No cinemão industrial isso não é muito freqüente, porque os roteiros passam por uma bateria de gente que dá palpite, faz perguntas... Imagens duvidosas são sumariamente cortadas: “Se você não sabe por que ela está ali, como espera que o público adivinhe?” 

E no entanto filmar cinema devia ser algo como filmar nuvens em movimento, acompanhando o modo como elas de transformam , e tentar influir nessas transformações. Ver cinema seria uma arte parecida com a arte de ver nuvens, achá-las parecidas com uma letra, com um castelo, com uma barba. 

Como acontece com certos filmes de Raul Ruiz ou de David Lynch, que parecem uma coleção de imagens que o diretor trouxe para nos mostrar: “Eu achei isto aqui mas não sei o que é. O que você acha?”






1167) O poeta de cinco anos (9.12.2006)



Um garoto carioca entrou em 2003 para o “Livro Guiness dos Recordes” como o mais jovem escritor editado em todo o mundo. Seu nome é Matheus de Souza Barra Teixeira, mora no Rio de Janeiro, e sua façanha foi publicar o livro “A Ilha dos Dragões” aos cinco anos de idade, quando ainda não sabia ler nem escrever. O esperto Matheus contou a história em voz alta enquanto tomava banho. Sua mãe gravou tudo, pôs no papel e mandou para a editora.

Ah, ia me esquecendo: Matheus é bisneto da poetisa Cecília Meireles, e sua mãe, Vânia Barra, trabalha como agente literária. O que talvez explique tanto o talento quanto a publicação. No caso de Matheus, existe a consciência de uma linhagem familiar, a compreensível expectativa de que algo das habilidades da bisavó se manifestem na criança. E existe a convicção de que, no momento em que isto aconteça, a imprensa terá um ótimo “gancho” para noticiar o fato.

Não li o livro do menino e não estou aqui para botar defeito, até porque já vi histórias ótimas criadas de improviso por garotos dessa idade. O que não vejo com bons olhos é essa besteira de “entrar para o Guiness”. Pelo menos o menino o fez através de uma atividade interessante, e não com uma idiotice como “o cara que comeu mais repolhos pendurado de cabeça para baixo” ou “a mulher que repetiu a mesma palavra 100 mil vezes sem parar para dormir ou para comer”. O Guiness era de início um divertido registro de coisas fora do comum. Hoje em dia virou um manual de estímulo à insensatez quantitativa.

O caso de Matheus lembra a francesa Minou Drouet, que aos sete anos publicou um livro de versos. Os críticos se dividiram. Uns anunciavam que havia surgido “um Mozart da poesia”. Outros diziam que os poemas não eram escritos pela garota, e sim por sua mãe. Outros, por fim, diziam apenas que os poemas não eram bons. Jean Cocteau, com sua ironia peculiar, afirmou que “todas as crianças são gênios, menos Minou Drouet”.

Temos crianças-prodígio na música, como Mozart e tantos outros; também na matemática, como Gauss e tantos outros. E nenhum na literatura. Fiquei agora uns quinze minutos remexendo nas poeiras da memória em busca de uma criança que publicou um livro notável com menos de dez anos, e só me veio à cabeça Minou Drouet. Será que escrever um romance é mais difícil do que redescobrir sozinho as proposições geométricas de Euclides, como fez Pascal na infância? Talvez a matemática seja um sistema ordenado e infalível no qual basta aplicar as regras e ousar imaginar variações. Músicos e matemáticos têm, ao fim e ao cabo, o mesmo tipo de talento, que uns manifestam em forma de combinações sonoras e os outros em forma de cálculos abstratos. Mas um romance requer algo mais. Requer conhecimento em-360-graus da vida e do mundo, requer estrada, requer experiência, requer conhecimento de como as pessoas são e pensam – e isso uma criança não tem como compreender.

1166) As doenças do espírito (8.12.2006)


(Dogville)

Li em algum lugar que a Arte é um remédio contra os males do espírito, um bálsamo que corrige nossa visão do mundo e nos reconcilia com a harmonia do Universo. Talvez esta visão um tanto idealista, dos tempos da Antiguidade, tenha dado origem à idéia moderna de que cabe à obra de arte “mudar o mundo”, corrigir problemas sociais, etc. Praticamente todo o cinema engajado tem esta ansiedade: a de ser um remédio, propor uma solução, deflagrar um processo de cura. Os clássicos do cinema político partem todos desta intenção: La hora de los hornos de Solanas (1968), A batalha da Argélia de Gillo Pontecorvo (1966), La vie est à nous de Jean Renoir (1936), Deus e o diabo de Glauber (1964), Z de Costa-Gavras (1969), A chinesa de Godard (1967), The Day After de Nicholas Meyer (1983), Fahrenheit 9/11 de Michael Moore...

Na verdade, por mais que alguns destes filmes tentem ser uma resposta clara e nítida às questões políticas da época, existe neles muito mais um teor de diagnóstico do que propriamente de remédio. Por mais que o cinema político tente oferecer soluções, predomina nele aquela atitude de “não sei o que quero, mas sei o que não quero”. E na verdade é muito mais fácil mostrar os erros e as barbaridades do capitalismo selvagem e das ditaduras militares do que fazer uma proposta nítida, viável, de uma sociedade que substitua este sistema e que resolva de maneira satisfatória os problemas que ele não resolveu.

O filme político funciona muito mais como diagnóstico do que como remédio, e na verdade funciona mais como sintoma do que como diagnóstico. Claro que numa situação de crise todas as manifestações externas, sem exceção, valem como sintoma, mas temos de reconhecer que algumas obras, mais do que outras, fazem aflorar o espírito do tempo, no que este tem de melhor ou pior, de mais urgente e irreprimível, de mais característico daquele instante. Para a leitura sagaz e sherlockiana de um crítico marxista-estruturalista francês, um filme de Xuxa ou de Walt Disney é um sintoma político tão revelador quanto um filme de Godard; mas mesmo sem ir a este extremo de clarividência, vamos admitir que filmes marcantes são aqueles em que as questões cruciais de um momento vêem-se refletidas pela primeira vez, ou de uma maneira inédita, reveladora.

O filme político, aquele que tem uma agenda ideológica clara, pode ser um sintoma assim, mas não necessariamente, porque é um filme que já nasce numa atitude de defesa, de prever questionamentos e antecipar-se a eles com argumentos. Grande filmes políticos como sintomas de uma época geralmente são feitos por cineastas que estão mergulhados nas contradições dessa época, que agem como cúmplices dela, e ao mesmo tempo a denunciam. Não são uma cirurgia a laser, invasiva, curadora; são uma chapa de Raios-X. Um notável filme político atual é Dogville de Lars von Trier, em cartaz no Cine Banguê.

1165) O Mostrador de Sombras (7.12.2006)





Existe algo de inesgotavelmente fascinante no cinema fantástico em preto-e-branco feito entre as décadas de 1910 e 1920. Os teóricos do cinema antigo estavam certos quando diziam que o cinema em preto-e-branco era mais verdadeiro do que o cinema a cores. 

“Como?!”, perguntarão os Observacionistas, aquele que se limitam a constatar o imediato; “o mundo é colorido!” Para estes, o cinema preto-e-branco é menos realista porque é um Aquém, é algo que não conseguiu chegar a um ponto qualquer; ficou faltando. Eu poderia inventar um grupo oposto, os Megafísicos, para os quais o cinema mudo era um Mais Além, uma forma de ir direto à Essência das Coisas, desprezando (por uma bendita limitação técnica) características secundárias como o Som e a Cor.

O P&B é mais realista porque é mais completo: além de mostrar “o mundo de fora” transmite melhor o caráter meio onírico, meio alucinatório da experiência cinematográfica. 

Vi há pouco uma citação de D. G. Winston onde ele se refere a esta experiência como equivalente a pensamentos “que não surgem desde logo em nossa mente em forma de palavras, e que elas, portanto, não podem expressar adequadamente; pensamentos que é mais fácil para nós associar à cor, à composição e ao sentimento do que à sintaxe e à lógica”. Claro que onde ele diz “cor” podemos entender também as infinitas nuances de cinza do filme em P&B. 

Em todo caso, o crítico aponta para algo que acho importante: o caráter não-verbal da lógica cinematográfica, que muitas vezes deixamos de perceber porque a imensa maioria dos filmes que vemos é de natureza narrativa, e portanto atrelados à lógica verbal narrativa. Isso nos faz esquecer que as imagens podem se associar não pela lógica, mas pela combinação meio aleatória de tonalidades, de formas luminosas ou de movimentos. Uma narrativa abstrata feita com imagens figurativas, por assim dizer.

Já em 1916, o teórico Hugo Münsterberg dizia algo parecido: 

“O drama cinematográfico nos conta uma história humana suplantando as formas do mundo exterior, ou seja, espaço, tempo e causalidade, e ajustando os acontecimentos às formas do mundo interior, ou seja, atenção, memória, imaginação e emoção”. 

O diretor sente-se à vontade para romper com a lógica de espaço, tempo e causalidade, se isto servir à sua imaginação, ou para estabelecer uma relação de memória, e assim por diante.

A imagem cinematográfica fascinou estes teóricos dos primórdios do cinema pela fluidez com que se deixava manipular, seja no interior do quadro (pela luz, enquadramento, movimento dos atores ou da câmara, etc.) seja no próprio transcurso da sucessão de planos, através da montagem. 

Talvez somente hoje, com a extrema maleabilidade que a informação digital nos proporciona, estejamos vivendo um momento tão rico de possibilidades para a manipulação de imagens quanto o momento que foi vivido nos anos 1910-1920 por Griffith, Eisenstein, Dreyer, Fritz Lang e outros mestres do Primeiro Cinema.






sábado, 18 de julho de 2009

1164) Vende-se o Iraque (6.12.2006)




Em 2003, os EUA tiveram uma vitória militar surpreendentemente rápida sobre o Iraque. Ninguém, inclusive eu, achava que fosse ser fácil. Depois vi na TV a cabo uma entrevista feita antes da guerra com um ex-oficial iraquiano, adversário de Saddam Hussein, que aconselhava: “Façam uma operação rápida, vão direto até Bagdá. Se vocês entrarem em Bagdá, o regime cai, porque ninguém faz questão de sustentar Saddam”. O recém-defenestrado Donald Rumsfeld ouviu este conselho e o seguiu à risca. Deu certo, do ponto de vista militar. O problema dos EUA é que eles sabem como derrubar um regime, mas não como pacificar um país, assim como os nossos partidos políticos são ótimos para ganhar eleições mas não há um só que saiba governar.

A situação se deteriora cada vez mais, e todos os dias vaza para a imprensa americana mais um documento secreto mostrando a enormidade dos erros cometidos. Os EUA são como aqueles PMs que são chamados pelos vizinhos para apartar uma briga de casal, aí entram na casa, dão uma surra na esposa, outra surra no marido, arrebentam a mobília, roubam todo o dinheiro, jogam no lixo o que tinha na geladeira, e vão embora disparando tiros pra todo lado.

A culpa é tos soldados? Um artigo recente de Elizabeth Palmer, da Rede CBS, diz: “É impressionante o quanto os soldados norte-americanos são humanos, com um forte senso do que é certo e do que é errado, e como estão mal preparados para aplicar estes conceitos em situações como a do Iraque, porque lhes falta o conhecimento histórico, geográfico e cultural. A imensa maioria deles é de homens decentes presos numa armadilha, e que ainda não entenderam o que está acontecendo historicamente, culturalmente e até fisicamente. Eles também são reféns de uma situação terrível.”

Um documentário recente de Robert Greenwald, Iraque à venda (http://iraqforsale.org/) explora o mundo nebuloso e sórdido das companhias a quem são terceirizados serviços para os soldados no Iraque. Serviços caríssimos e de péssima qualidade, chegando a colocar em risco a saúde e a vida dos militares, como se já não bastasse a guerra civil que eles têm de policiar. Na seção “Facts and Research” do saite é possível consultar documentos e reportagens sobre esse comércio escuso. São companhias como a famosa Halliburton, à qual o vice-presidente Dick Cheney é ligado, além da Blackwater (que o saite define como “um exército privado, de aluguel”), além da L3 Titan e da CACI (que forneceram tradutores e interrogadores para a prisão de Abu Ghraib).

Acho que o leitor se lembra daquele velho provérbio sertanejo de que “do boi só se perde o grito”, porque todo o resto (carne, couro, chifre, o escambau) dá lucro. O Iraque é hoje o principal boi sendo esquartejado e vendido ainda vivo pelas companhias norte-americanas. E enquanto tiver uma “peínha” de couro para arrancar, os urubus não vão largar esse esqueleto.

1163) Leopoldo Lima (5.12.2006)



Conheci este livro na Bahia, nos anos 1970. Leopoldo Lima, de Ribeirão Preto (SP), é o que eu chamo de “artista fora-de-esquadro”, ou seja, um sujeito que não se encaixa em definições ou escolas. O pessoal que o admirava dizia ser um “maluco beleza” que fazia uns desenhos e xilogravuras estranhas, meio surrealistas. Diziam que o filho mais novo dele se chamava Ôi, ou melhor, esse era o nome provisório que lhe tinha sido dado até que ele crescesse e escolhesse um nome para si próprio. O livro tem como título: 729 o varal biográfico embananado, ou pelo menos é isto que está escrito na capa, junto ao nome do autor, tudo em caixa-baixa (letras minúsculas). O exemplar que tenho hoje (comprado no Sebo Cultural de Heriberto) tem uma dedicatória do autor, para um tal de “Célio”, com um desenho e a data de 1970. 729 é o número da casa onde o artista morava (ou mora) em Ribeirão Preto, como se percebe pelas numerosas fotos no início e no fim do livro.

Leopoldo Lima faz um tipo de xilogravura cheia de traços retos ou sinuosos onde nenhum trecho da imagem é deixado em branco; lembra muito o estilo de cortar do cordelista e gravador Abraão Batista. Algumas imagens são recorrentes: crianças escuras, magras, fantasmagóricas; casas labirínticas; árvores retorcidas. Algumas fotos do interior de sua casa dão a idéia de uma mente atormentada e criativa, mas ao mesmo tempo pensamos: “como é que uma família com crianças mora num lugar doido como este?”. Um quadro intitulado “eu e voce” mostra um infinito corredor de tábuas, e em primeiro plano um sapato de homem sobre um sapato de mulher.

O texto em si são 60 páginas de linhas corridas, sem pontuação, numa fonte em negrito e itálico (mas legível), sem dar muita atenção à presença do til e de outros acentos. É um monólogo interior mas sem pretensões literárias, e neste aspecto lembra um pouco outro livro excêntrico de outro autor fora-de-esquadro, o lendário José Américo II, ou Zé Américo da Camionete, que em 1976 publicou em Campina suas memórias sob o espantoso título de Uma vitória dentro de uma derrota que não tive. Esta derrota foi a vitória do meu livro. Leopoldo Lima enfileira memórias, divagações, comentários sobre seus quadros, filosofias de vida, tudo isto sem recorrer sequer a um misericordioso ponto-parágrafo. Lembra as Galáxias de Haroldo de Campos ou o Catatau de Leminski, com a diferença que estes dois tentavam fazer Literatura, e Leopoldo faz um jorro de lava fumegante brotando pelas comissuras da mente.

Diz ele à página 42: “com este negocio do pessoal passar as maos nos quadros fiz um de um homem bebado caiu sentado com os pes para a frente descalço e no lugar havia uma garrafa de bebida quebrada sangravalhe o pe entao coloquei um caco de vidro cortante onde machucou as pessoas passavam a mao para ver se era caco de vidro pois parecia muito e de fato era cortavam a mao e coloriam mais o quadro”. Cuidado com a Arte, ela morde.

1162) Quem nos ensinou a ler? (3.12.2006)




Perguntam-me com freqüência por que motivo a Paraíba tem uma tradição literária desproporcional ao seu tamanho ou à sua economia. Tudo que posso fazer são suposições em voz alta.

Penso que o Nordeste teve duas frentes de colonização: a do litoral e a do interior. A do litoral era a colonização oficial, feita de navio, de porto em porto, trazendo as autoridades do Brasil Colônia, do Brasil Reino, do Brasil Império, do Brasil República. A do interior se deu ao longo do Rio São Francisco, com bandeirantes, caçadores de índios, criadores de gado.

Beirando os numerosos rios dos sertões, os desbravadores criaram uma civilização rude, aguerrida, ascética, onde a presença do Estado (fosse em que século fosse) era nula.

Atrás deles, vinha a Igreja Católica, trazendo a alfabetização e a instrução. Esses pioneiros desconheciam a existência das Capitais. Nunca pediram nada a governo. Não vieram de navio, vieram por dentro, chupando imbu.

No Nordeste surgiram estas duas civilizações cujos primeiros choques políticos, econômicos e militares ocorreram no século 19, e cuja crise mais grave foi a Revolta de Princesa – e a Revolução de 30. Cearenses, baianos e pernambucanos talvez discordem, mas, paciência, esta coluna só tem 3 mil toques.

Canudos, Padre Cícero, Guerra de Doze, tudo isto são os grandes épicos do nosso faroeste da vida real, que não deve nada a John Ford ou Howard Hawks.

E por baixo disto tudo, silenciosamente, vinha o Livro.

Pensem, por exemplo, no que foi a explosão da Poesia Barroca em pleno sertão, com os poetas que criaram o Romanceiro Popular Nordestino a partir de 1850: Silvino Pirauá, Ugolino e Nicandro Nunes, Germano da Lagoa. Cantadores como Romano do Teixeira, capazes de compor décimas barrocas de improviso.

E os padres que fundavam colégios em lugares que só vieram ter prefeituras décadas depois. Colégios de onde meninos sertanejos saíam compondo sonetos e declinando em latim.

No livro Editora Globo, sobre esta casa editorial gaúcha, Elizabeth Torresini transcreve um documento de 1927 que diz:

“Há Estados também para os quais essa taxa de analphabetismo fica abaixo de 75,5%. É principal destes o Rio Grande do Sul, onde esse coeficiente é de 64,2% vindo depois Parahyba do Norte com 68,8%, e, depois, sucessivamente: Território do Acre e São Paulo com 70,2% cada um, Santa Catharina com 70,5, Pará 70,7, Mato Grosso 70,9, Paraná 71,8, Amazonas 73,4, Rio de Janeiro 75,3”. 

Foi neste Brasil desigual que surgiu o Romance Regionalista dos anos 1930.

Quando entramos em Campina, há uma placa orgulhosa da Pitu: “Esta é a terra de Clementino Procópio”. Outras cidades celebram seus filhos famosos, que saem na TV e figuram nas enciclopédias. Eu me orgulho do fato de minha cidade se orgulhar desse professor anônimo, que do Cajá em diante ninguém sabe quem foi. Campina deve a ele (e a todos que ele aqui simboliza) a grandeza que já teve um dia e que pode voltar a ter.






1161) Universos Comunicantes (2.12.2006)




Certamente há precursores mais remotos, mas ao que eu me lembre foi Balzac o primeiro romancista a tentar unificar todos os seus ciclos de romances como partes de uma única e gigantesca história. Li muito pouco da sua “Comédia Humana”, mas os livros do tradutor Paulo Rónai são ricos em referências a respeito desse trabalho incessante do autor, revisando livros antigos, substituindo e unificando nomes de personagens, para que um sujeito que é protagonista numa história tenha uma aparição breve como coadjuvante noutro livro de dez anos antes ou dez anos depois.

Todo autor gosta de, a certa altura, voltar atrás e dar uma mexidinha num livro antigo, para criar um portal, uma conexão entre ele e outro livro. Na reedição recente do Romance da Pedra do Reino, Ariano Suassuna resolveu assumir que dois figurantes de rápida aparição, os picarescos “Piolho” e “gordo Adauto” (que surgem no final do Folheto LXXVIII), são na verdade João Grilo e Chicó, a dupla do “Auto da Compadecida” – unificando, assim, as suas duas Taperoás.

Isaac Asimov também não resistiu. Nos anos 1980, ele já havia marcado sua presença no mundo da ficção científica com dois ciclos de histórias: o ciclo dos robôs, em que postulava a criação de robôs inteligentes e obedientes, e o ciclo da Fundação, onde ele contava a criação de duas Fundações científicas destinadas a preservar a ciência e salvar a galáxia de um ciclo de obscurantismo. Eram dois universos estanques, distantes no Tempo, sem relação entre si, mas Asimov, depois dos 60 anos, decidiu unificá-los. A dificuldade principal era o fato de que nas histórias da Fundação não existiam robôs, mas ele contornou o fato postulando a evolução dos robôs metálicos para andróides com aparência humana, de modo que muitos dos personagens “humanos” do futuro eram na realidade andróides.

Existe um movimento instintivo de nossa mente em busca dessa unidade, em busca da crença de que todas as histórias acontecem num universo só. Eu estava lendo uma crítica do filme House of Frankenstein de Erle C. Kenton (1944), onde se dá o famoso encontro entre o monstro de Frankenstein, o Conde Drácula e o Lobisomem. Estas tentativas de misturar vários universos são fascinantes pelas suas implicações de ordem psicanalítica e mitológica, embora em geral resultem em filmes grotescos. Mas o resenhador do filme observa a certa altura que a ressurreição de Drácula é contraditória, pois em Dracula’s Daughter de Lambert Hillyer (1936) o corpo do Conde havia sido cremado por sua filha.

Buscar continuidade entre esses produtos híbridos da cultura-de-massas é tão absurdo que deve corresponder a um instinto profundo de nossa mente, alguma coisa num nível neuronial. Para mim, o mais interessante é que essas histórias sejam estanques, e recomecem do zero a cada vez. Como os desenhos animados de South Park, em que o personagem Kenny morre em cada episódio e recomeça vivinho da silva no próximo, para morrer de novo.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

1160) A revelação estética (1.12.2006)




Os manuais de estética citam uma idéia de Platão segundo a qual a obra de Arte produz em nós um efeito de “reminiscência”. Para Platão, existe para além deste nosso mundo um mundo ideal das coisas perfeitas, e o que vemos aqui são apenas reflexos, variações rudimentares dessas Idéias. 

Platão tem muitos seguidores, principalmente entre os filósofos que acreditam em Deus; já os agnósticos tendem a ser aristotélicos. Mas mesmo seus admiradores têm dúvidas. 

Jorge Luís Borges, que com freqüência é platônico até a medula (ou, pelo menos, finge sê-lo como recurso ficcional), indaga-se às vezes se no mundo transcendental existe o Cachorro Ideal ou se lá também temos o Buldogue Ideal, o Pitbull Ideal, o Lulu-da-Pomerânia Ideal, o Vira-Latas Ideal...

Platonismo à parte, as grandes obras de Arte nos produzem de fato uma sensação de reconhecimento. Como se estivessem nos dizendo algo que a gente já percebia, mas não era capaz de dizer. Daí, talvez dizer-se que o poeta é o “porta-voz” do povo. A Idéia expressa pelo artista já existe, de certa forma, no consciente ou no inconsciente daqueles que entram em contato com sua obra. 

Não cabe aí, portanto, falar de “reminiscência” , mas de “revelação”. A obra de arte não nos faz recordar algo que nossa alma conheceu num mundo preternatural anterior ao nosso nascimento. Ela apenas nos revela modos de ver, de pensar e de sentir cujas condições básicas já trazíamos dentro de nós, mas de maneira incompleta. 

Temos o dicionário, por assim dizer, as palavras isoladas, mas não chegamos a compor a frase. Quem fez isto foi o artista.

Isto se casa de certa forma com uma velha lei do Materialismo Dialético. Marx e Engels diziam que cada época histórica só coloca para si própria os problemas que pode resolver. A crise e a solução da crise brotam juntas em cada momento da História. 

Dá-se o mesmo das obras de arte, com mais flexibilidade por ser ela uma realização individual. O artista percebe uma relação complexa entre formas de dizer e coisas a serem ditas. Quando seus contemporâneos são capazes de entender e valorizar as soluções estéticas que ele encontrou, ele alcança um sucesso comparável ao de Mozart em Viena em 1780 ou de Chico Buarque no Brasil em 1967. 

Quando ele resolve tais problemas mas não há muita gente capaz de entender o que ele fez, ele torna-se um “gênio póstumo”, cuja revelação estética, na mente do público, só se produz depois que ele está morto e enterrado. Ou nunca.

Uma obra de arte produz uma série de revelações. 

O artista tem a revelação “de como fazer”, aquele “eureka!” de quando a gente tem uma idéia luminosa. 

O público tem a revelação daquela obra específica, do que ela tem para lhe mostrar de novo sobre o mundo. 

E séculos depois o historiador da arte tem a revelação sobre aquele momento da história, em que uma grande idéia brilhou pela primeira vez, em que todo mundo começou a ouvir falar num tal de Beethoven, num tal de Michelangelo.







1159) Tempos interessantes (30.11.2006)




(Hendrik Van Loon)

Dizem que quando os chineses querem rogar uma praga a alguém dizem: “Tomara que você viva em tempos interessantes!”

São aqueles tempos em que não há monotonia nem pasmaceira, aqueles tempos em que tudo pode acontecer, em que (para usar minha expressão favorita) o campo probabilístico fica mais intenso e por toda parte começam a brotar “o estranho, o bizarro, o inesperado”.

E tudo é uma questão de gosto. Há quem prefira a placidez contemplativa da rotina, dos dias que se sucedem todos iguais. E há quem goste do tumulto, de viver perigosamente no olho do furacão.

Numa carta ao escritor Van Wyck Brooks, em 1938, Hendrik Van Loon (cujo nome não é desconhecido dos leitores de Monteiro Lobato, que baseou nele alguns de seus livros) tentou consolar o colega, preocupado com os tempos negros que estavam vivendo durante os anos da Grande Depressão nos EUA:

“Os tempos sempre foram assim. Nós nascemos num período intermediário, 1880-1914, e é fácil nos iludirmos pensando que essa foi uma época normal. Não foi. Foi uma pausa para respirar, curta e agradável. Agora, estamos de volta à normalidade das coisas”.

Interpretar histórias individuais a partir do chamado “momento histórico” é sempre arriscado. Ninguém vive numa torre-de-marfim, claro, mas a verdade é que os altos e baixos de nossa vida pessoal nem sempre (ou quase nunca) coincidem com os altos e baixos da vida política e econômica do país.

Para não nos afastarmos muito da Grande Depressão dos EUA, basta lembrar que os anos 1930 foram um período de ouro do cinema de Hollywood, assim como da “pulp fiction” vendida em bancas de jornal. Por quê? Porque em tempos de depressão econômica o divertimento barato é um dos bens mais preciosos.

A América inteira estava passando fome, populações inteiras viravam retirantes carregando suas tralhas amarradas em cima de velhas fubicas, sacolejando em estradas poeirentas. Milhares de acampamentos de refugiados sem-terra espalhavam-se pelo país. E para quem trabalhava com cinema, ou escrevia ficção-científica ou histórias policiais, foi “The Golden Age”.

Tivemos algo parecido aqui: entre 1964 e 1968, na primeira fase da ditadura militar (a fase mais moderada, antes da radicalização produzida pelo AI-5 em dezembro de 68), tivemos uma fase de intensa criatividade e politização no teatro, na música, no cinema, etc. Quem visse de fora pensaria que o Brasil estava vivendo um surto de democracia inédito.

Eram tempos interessantes, apesar do clima de terror e paranóia (qualquer sujeito envolvido com cultura, jornalismo, arte, etc. sabia que bastaria a denúncia falsa de um desafeto para que ele fosse preso como simpatizante do terrorismo e tratado de acordo).

Ingleses que viveram em Londres durante os bombardeios alemães na II Guerra lembram-se dessa época como “o tempo mais feliz da minha vida”. A possibilidade da morte e a certeza de estarem lutando por uma boa causa tornava a Guerra um tempo interessante.







1158) Ninguém é universal (29.11.2006)




(Orhan Pamuk)

Comentei há algum tempo essa mania de dizerem que a literatura de Machado de Assis é universal, enquanto a de autores como Zé Lins do Rêgo não é. 

O que querem dizer com este “universal”? Que ela exprime sentimentos ou idéias que não são apenas do Rio de Janeiro onde Machado vivia, mas podem ser compreendidos por toda a Humanidade? 

Sem desmerecer Machado, não creio que a literatura dele fosse unanimidade entre camponeses africanos ou servo-croatas (cultos, alfabetizados, etc.). Não digo que a compreensão e a fruição profunda dessa literatura fossem impossíveis a essas pessoas. Afirmo apenas que não são unânimes, infalíveis, obrigatórias. Ninguém é “universal”. Ninguém.

Maldo eu que essa pretensão a universalismo vem daqueles para quem “o universo é a minha aldeia”. O recém-ganhador do Prêmio Nobel, o escritor turco Orhan Pamuk, queixou-se disto há pouco numa entrevista ao “Globo”: 

“As pessoas consideram muitas das coisas escritas pelos europeus como universais, mas às vezes são apenas ocidentais. (...) Se você é um escritor turco e escreve sobre o amor, as pessoas dizem que é sobre o amor na Turquia. Se Proust escreve sobre o amor, ele está escrevendo sobre o amor universal. Esse tratamento realmente me irrita, mas talvez, agora, esteja mudando”. 

O imenso etnocentrismo denunciado aqui por Pamuk é a cara da cultura ocidental, e não vem de agora, vem do Renascimento, do descobrimento da América, dos imperialismos culturais europeus, cujo espaço foi ocupado no século 20 pelo imperialismo cultural norte-americano e agora pelo multinacional-corporativo.

Globalização é, em parte, isto: afirmar que o que é nosso é universal, e o que é do vizinho ao lado é meramente regional e exótico. 

Não existe cultura “universal”, existe cultura imposta militarmente e economicamente. 

Falamos um idioma filho do latim, não porque o latim seja universal, mas porque foi imposto à força das armas. Arranhamos inglês hoje em dia porque ele é imposto pelo mundo das finanças, da indústria cultural e das telecomunicações.

Chamamos de universal aqui que parece conosco, e se temos poder de imposição suficiente, conseguiremos convencer o mundo de que estamos certos. 

Bruce Sterling, um escritor de ficção científica capaz de escrever sobre qualquer questão política e tecnológica de qualquer região do mundo, ironiza a literatura “universal” praticada nos EUA dizendo que ela não passa de romances sobre professores de meia-idade bebericando vinho e pensando em trair a esposa. 

Não está muito longe do “universalismo” de Machado, que era, na minha modesta opinião, um escritor regional cujo universo ia do Andaraí a Botafogo. Seria mau escritor, por isto? De jeito nenhum. É o que nossa literatura produziu de melhor, e suas façanhas literárias são ainda mais notáveis quando consideramos a quantidade de leite que ele conseguiu extrair dessa minúscula pedra temática sobre a qual preferiu debruçar-se.




1157) O drible do elástico (28.11.2006)



Semana passada Ronaldinho Gaúcho voltou a aprontar das suas, fazendo contra o Villarreal um gol de bicicleta (o último da goleada de 4x0 do Barcelona) que o estádio aplaudiu de pé. Como disse o redator do “Mundo Deportivo”, ninguém pode arredar o pé do estádio num jogo do Barcelona quando ainda faltam 2 minutos para terminar, como era o caso. A qualquer momento, pode ocorrer o que ocorreu: um gol para se contar aos netos. A imprensa já gastou tinta bastante com este gol, mas eu queria falar era de outra jogada que o Gaúcho fez pouco antes, um drible-do-elástico no zagueiro, que só não foi perfeito porque na conclusão a bola saiu alguns centímetros pela linha de fundo, invalidando o cruzamento perfeito que ele fez para os atacantes.

Quando eu era garoto, não existia esse negócio de drible-do-elástico, ou se existia não era cultivado no Presidente Vargas nem no Plínio Lemos. Acho que é coisa recente. O primeiro que vi em alto estilo foi um que Romário deu em Amaral num Flamengo x Corinthians no Morumbi, há alguns anos, escapando rente à linha de fundo, tirando o zagueiro da jogada e marcando um gol quase sem ângulo. O lance foi reprisado centenas de vezes pela TV nos dias seguintes, por todos os ângulos, em todas as velocidades.

O drible-do-elástico consiste basicamente (descrever essas coisas com palavras é tão inútil quanto descrever a melodia inicial do Concerto #1 de Tchaikóvski, mas, bora lá) em armar o bote diante do zagueiro, indicar que vai projetar o corpo num arrancada instantânea, e com o lado exterior do pé direito empurrar a bola com força para a direita, e partir atrás dela. O zagueiro julga que esse é o movimento final e, com meio segundo de atraso, projeta-se nessa direção. Quando isto acontece, a gente conclui o movimento de empurrar a bola com uma brusca torção do tornozelo direito para o lado esquerdo, fazendo o bico do pé tocar a bola e inverter o movimento que ela executava, projetando-a para a esquerda e mudando de direção de repente – o que não é difícil para quem já estava com esta intenção, difícil é para o zagueiro que é pêgo de surpresa. O modo como a bola inverte de repente a trajetória dá a impressão de que ela foi puxada com um elástico.

Aos 15 anos eu li Viagem em Torno de Pelé, de Mário Filho, onde a certa altura ele enumera jogadas que Pelé tinha introduzido no futebol. Fazer tabelinha com os zagueiros, p. ex., chutando a bola de encontro às suas canelas para pegar de novo mais à frente. Pela primeira vez eu me dei conta de que no futebol, como na arte, a gente recebe um repertório de coisas inventadas, que é preciso aprender, mas tem também a liberdade de inventar coisas novas. Perdi muitas noites desenhando mentalmente gols mirabolantes. Nunca os fiz, pois sou um perna de pau. Mas conheço um neguinho dentuço que provavelmente aos 15 anos ficava fazendo “story-board” de jogadas e de gols e de tabelas. Feliz de quem realiza em público o que criou sozinho.

1156) Robert Altman (26.11.2006)



Morreu Altman, que nos anos 1970 era “o diretor de M*A*S*H*”, aquela comédia de humor negro sobre cirurgiões americanos na guerra (num Vietnam indiretamente sugerido), amputando membros e costurando soldados esfrangalhados enquanto faziam piadas politicamente incorretas e azaravam as enfermeiras. Foi sucesso, virou série de TV, e projetou dois ótimos atores, Elliott Gould (que subiu e depois sumiu) e Donald Sutherland, que ainda toca bem a bola no meio de campo, embora hoje tenha virado “o pai de Kiefer”, aquele ator de “24 Horas”.

O sucesso de M*A*S*H* deu a Altman cacife suficiente para uma série de filmes personalistas, nem sempre muito bons, mas todos mostrando uma mente inquieta, um olhar crítico e ácido sobre a sociedade americana, além de uma capacidade de trabalhar em diferentes gêneros, assimilando o que eles têm de essencial e usando-o para encorpar uma linguagem própria. Altman fez faroeste (McCabe and Mrs. Miller), comédia amalucada (Voar é com os Pássaros), mistério policial britânico (Assassinato em Gosford Park), pseudo-documentário musical (Nashville), policial “noir” (The Long Goodbye), ficção científica (Quinteto), adaptação de quadrinhos (Popeye)...

Um dos meus filmes preferidos de Altman é o obscuro Imagens (1972), a história de uma mulher que luta contra a esquizofrenia enquanto tenta montar um imenso quebra-cabeças na mesa da sala e faz joguetes emocionais com o marido e dois namorados (sendo um deles um fantasma). É um belo filme, e pesquisando agora na Web fiquei sabendo que foi mal sucedido nas bilheterias e o estúdio (Metro/Universal) incinerou o negativo (ainda assim, há cópias em DVD). Altman foi um valoroso inimigo da ideologia industrialesca de Hollywood, e disto resultou um de seus melhores filmes, O Jogador, com Tim Robbins no centro de uma rosácea de personagens e enredos que mostram de forma satírica e amarga “as entranhas da Besta”. Outro dos meus preferidos é Short Cuts, em que o diretor pega dezenas de contos curtos de Raymond Carver e os interliga numa única história em que todos aqueles personagens se conhecem ou se conectam casualmente.

Era uma das especialidades de Altman: uma história com 20 ou 30 personagens importantes, a cada um dos quais ele dava atenção concentrada, extraindo o máximo dos atores e embranquecendo os cabelos dos roteiristas (embora ele próprio participasse da maioria dos roteiros que filmava). Altman talvez fique mais lembrado pela sua furiosa luta por autonomia ideológica e estética do que pelas reais e sólidas contribuições que deu à arte de contar histórias, de proporcionar performances inesquecíveis a atores medíocres, de contemplar à distância um romance ou peça de teatro e sempre encontrar um caminho cinematográfico para produzir na tela, sem copiar o original, um impacto semelhante ao do original. Era um animal com cinema correndo nas veias, típico do que o cinema americano tem de melhor.

1155) A Síndrome de Bonnet (25.11.2006)


("Darby O'Gill")

A Síndrome de Charles Bonnet (a sigla em inglês é CBS, e nada tem a ver com a rede de TV norte-americana) é uma rara anomalia visual em que as pessoas vêem objetos ou seres que não estão ali. Não se trata de uma alucinação, porque nas alucinações o senso de realidade da “vítima” fica prejudicado: ela tem dúvidas sobre a realidade ou não do que está vendo, e às vezes acredita piamente nas supostas aparições. Na Síndrome de Bonnet, a pessoa fica assustada, desorientada e preocupada com o que pode estar lhe acontecendo, mas como regra geral não lhe passa pela cabeça, nem por um momento, que aquelas coisas estejam de fato ali. É um erro do sistema visual, não um delírio da mente.

Há pessoas que vêem gnomos, há pessoas que vêm gente ou animais passando pelo meio da sala, há pessoas que vêem apenas padrões geométricos de linhas e formas. Não se sabe exatamente por que isto acontece, mas está ligado ao modo como o cérebro processa os estímulos que recebe através do nervo ótico e os organiza numa imagem coerente. E este processo não é simples. Por exemplo: as imagens que vemos são todas de cabeça para baixo, porque é assim que elas se formam numa câmara escura (como uma máquina fotográfica tradicional). Bebês vêem as coisas de cabeça para baixo, e só com um longo treinamento, através do tato, do andar, etc., aprendem a remontar essa imagem de modo a corresponder com a real posição das coisas.

Fico pensando se muito do que existe na literatura não será o produto indireto de visões deste tipo. A Síndrome de Bonnet ocorre em pessoas com problemas clínicos de visão, e acontece com mais freqüência em momentos de repouso, quando a pessoa está num ambiente familiar. Uma hipótese sugere que problemas de visão podem fazer o cérebro produzir imagens por conta própria, de modo meio descoordenado, para preencher regiões visuais que não estão captando bem a luz. Um amigo meu, médico, me contou uma vez que teve um problema neurológico que o impedia de ver tudo que havia no lado superior esquerdo de seu campo visual. Via tudo escuro? Não, diz ele: simplesmente aquele lado não existia, não era registrado pelo cérebro. Em casos parecidos, a Síndrome de Bonnet pode colocar ali gnomos, alienígenas, vacas pastando, janelas inexistentes.

Alucinações visuais e auditivas são recorrentes em pessoas submetidas a experiência de privação sensorial. Colocadas num quarto escuro e com isolamento sonoro, as pessoas daí a pouco começam a “ver” e “ouvir” coisas. Isto me lembra uma idéia recorrente na obra de Colin Wilson, a de que a consciência é um ato intencional. Não recebemos passivamente as idéias que pensamos: pensamos o que queremos pensar. A percepção sensorial (o que vemos, ouvimos, etc.) pode ser passiva, mas o ato de interpretá-las e organizá-las mentalmente é resultado da vontade. Em momentos de desequilíbrio, a mente produz seu próprio alimento. Os sonhos e a Síndrome de Bonnet podem ser dois lados de um mesmo processo.

1154) O soco de Anselmo (24.11.2006)



Há 25 anos, em novembro de 1981, o Flamengo conquistou a Taça Libertadores das Américas, e partiu ainda quente desta conquista para decidir o título de Campeão do Mundo no Japão, onde aplicamos um modesto 3x0 no Liverpool, placar que bem poderia ter sido o dobro. Mas é da decisão da Libertadores que quero falar. Há um herói dessa conquista que é mais lembrado do que o craque Zico, o técnico Carpeggiani, o goleiro Raul, o artilheiro Nunes. Sim, amigos, estou me referindo a Anselmo. Todo torcedor do Flamengo sabe quem é este obscuro atacante, que nunca fez nenhum gol memorável, nunca foi titular absoluto, e que passou à História simplesmente como “o cara que deu o murro em Mário Soto”.

O Flamengo decidiu aquela Libertadores contra o Cobreloa, do Chile. Venceu o primeiro jogo no Maracanã por 2x1. O segundo jogo foi em Santiago, e lembrem-se que o Chile estava no auge da ditadura de Pinochet. Violência militar e tortura mantinham o país sob pressão. O Cobreloa era um time sem tradição, fundado em 1977, e representava a região das minas de cobre chilenas. Havia muito dinheiro envolvido e o time queria ganhar o título na marra. O jogo em Santiago foi um dos mais violentos da história, e dois jogadores do Flamengo ficaram inutilizados para o jogo seguinte (Lico com um corte profundo na orelha, e Adílio com um ferimento no olho). O Cobreloa ganhou por 1x0, e o jogador Mario Soto liderou o massacre físico contra o Flamengo. Reza a lenda que ele agredia os jogadores brasileiros durante o jogo com uma pedra no punho fechado.

O jogo decisivo foi em Montevidéu, campo neutro. O Flamengo fez 2x0 e no último minuto Carpeggiani tirou Nunes e colocou Anselmo em campo, com uma instrução: “Vai lá e dá um soco nele”. Anselmo foi para perto de Mario Soto e, na primeira bola que veio, quebrou a cara do chileno com um murro, foi expulso, e o jogo acabou.

Hoje quarentão, vivendo em Portugal, Anselmo diz: “A mim coube o trabalho sujo, e não serve como exemplo. Poderia ser lembrado como artilheiro dos juniores. Sempre fui do bem e acabei conhecido como maluco e brigão. Depois, no hotel, ao telefonar para casa, crente que era o tal, levei a maior bronca do meu pai. Hoje, minha mãe diz que fiquei conhecido pelas mãos e não pelos pés”.

Este episódio exprime uma contradição insolúvel do futebol e da vida. Todos nós temos discursos humanistas e politicamente corretos em favor do espírito esportivo e do sentimento cristão. Mas quem sofre uma agressão covarde não esquece. Futebol é arte, balé, xadrez, mas é um jogo viril e abrutalhado em que façanhas como a de Anselmo refletem o alto grau de testosterona e de agressividade primitiva que nos leva a correr atrás da bola. Nosso lado civilizado homenageia aqueles que descartam a vingança física e se contentam com dar o troco na bola e no placar. Mas dentro de cada fã do futebol existe um brutamontes-mirim que não resiste à poesia de um murro bem dado.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

1153) O Rock e a Bossa Nova (23.11.2006)



A revista Beijo foi uma daquelas inúmeras revistas alternativas que, nos tempos da ditadura, brotavam por todos os lados, mais rapidamente do que a Censura conseguia matá-las por asfixia. A cada uma que morria surgiam duas. Curiosamente, depois que a ditadura militar foi substituída pela Democracia Eletrônica de Marketing e pela Ditadura do Consumo Conspícuo, essas revistas deixaram de existir. Não são mais contra, sonhavam para o futuro isto que está aí? Como saber?

Na revista Beijo li nos anos 1970 um artigo cujo autor não recordo, mas a quem tiro o chapéu. Todas as vezes que estou com amigos conversando sobre rock, surge de novo um velho argumento: nós, velhinhos transviados, não temos o direito de criticar as bobagens ditas e feitas pelo rock brasileiro. Porque no nosso tempo era a Jovem Guarda, e existe coisa mais banal do que letra, harmonia, melodia, ritmo, arranjo e interpretação vocal da Jovem Guarda? Para estes argumentantes, o rock brasileiro teve seus primeiros vagidos quase inaudíveis com o iê-iê-iê de Celly Campello, o “Broto Legal”, e seus contemporâneos Sérgio Murilo, Tony Campello, Sônia Delfino, Ronnie Cord... Eram musiquinhas inconseqüentes, das quais a mais “juventude transviada” eram as que diziam coisas como “Entrei na Rua Augusta a 120 por hora / botei a turma toda do passeio pra fora...” Esses eram os bad-boys da época.

Depois, claro, veio a Jovem Guarda de Roberto & Erasmo, Wanderléa, Renato e Seus Blue Caps, Jerry Adriani, Golden Boys... Nos anos 1970 houve um hiato em que os nomes roqueiros eram escassos. Contavam-se nos dedos, mas eram todos de peso: O Terço, A Bolha, Raul Seixas, Rita Lee. E por fim, nos anos 1980, começou o que chamamos na imprensa de BRock, com Blitz, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Titãs, Barão Vermelho e todo o resto.

Pois bem. A teoria do articulista da Beijo, pelo que lembro, já desmontava por antecipação (a revista era de 1972, por aí) toda esta árvore genealógica. Para ele, o equivalente brasileiro ao rock americano era a bossa-nova, e não a Jovem Guarda. Por que? Ora, o rock era um processo de apropriação de um tipo de música negra (o blues e seus derivados) por músicos brancos que o eletrificaram, o pasteurizaram (retirando a maior parte de seus subentendidos sexuais), deram-lhe uma fisionomia mais “família” e conseguiram projetá-lo para o sucesso. Claro que depois, com o bloco na rua, a brava gente bronzeada pegou de volta o que era seu e o rock voltou a ser politizado, sexualizado, agressivo.

A Bossa Nova fez o mesmo com o samba. Pegou uma música negra, da favela, e a transportou para um cenário de jovens de classe média urbana, destilando ao máximo e resumindo ao mínimo sua essência percussiva (a batida de João Gilberto), branqueando-a socialmente, poeticamente, mercadologicamente. A mesma dinâmica de apropriação que houve com o rock nos EUA.

1152) Internetês triunfante (22.11.2006)



Se o mundo fosse lógico não tinha a menor graça. Vejam adolescentes “chateando” pela Internet, por exemplo. Diferentemente do papel, que custa dinheiro e induz à economia material, a Internet oferece espaço quase ilimitado em seus blogs, forums, salas de chat, o que quiser. E existe alguém com mais tempo disponível do que adolescente? No entanto, eles inventaram esta curiosa linguagem cifrada que teoricamente vem para poupar tempo e espaço. Escrevem assim: “Por vc eu faço qq coisa, kkkkkk” E quem lê entende intuitivamente esse tipo de abreviação.

Falei abreviação, mas, mais uma vez, a lógica não predomina. Eles escrevem “kasa”, “koisa”, o que não abrevia coisa alguma. Infiro eu que o uso do K, nesses casos, vem de ser ele um substituto sintético para o “qu”, em “kero”, “kem”, etc. E por contaminação acaba virando hábito e se espalhando para onde não é preciso. Quem usa email ou frequenta blogs se acostuma a entender que “tb”, quer dizer “também”, “pq” quer dizer “porque”, etc. (assim como nós, senhores sóbrios e circunspectos, sabemos que “etc” quer dizer “et coetera”).

O canal Telecine da Net inventou agora um recurso que acho irritante: filmes legendados nesse estilo. Imagino que seja para “atrair o público jovem”. É uma dessas idéias pseudo-brilhantes que executivos de empresa têm, quando estão por trás da escrivaninha, olhando a praia do alto de seu trigésimo andar. E na Nova Zelândia a NZQA (New Zealand Qualification Authority) concordou em considerar correto o uso dessa grafia em trabalhos escolares, “desde que conduza ao entendimento claro do que está sendo expresso”. Está dando a maior celeuma, porque tem educador que não se conforma. Afinal, o que é certo: Aceitar uma forma de expressão que apenas substitui uma grafia por uma forma sintética dela, ou exigir que os jovens escrevam igual a todo mundo?

Os próprios blogueiros ficam desconfiados diante de tamanho liberalismo. Um tal de Phil Stevens escreveu em seu blog: “NZQA, u must b jokin, or r u smoking sumthug?” (em bom português, “6 tão brincando, ou 6 tão fumando qq koisa?”). E de fato, parece o gesto de desespero do pai ou da mãe que desiste e exclama: “Tá bom, tá bom, coloca esse diabo desse piercing, mas pára de me encher!” Sabe que perdeu, aí recua e entrega os pontos.

Eu acho que qualquer novo processo vale, se vier para enriquecer a língua, não para empobrecê-la. Para nos dar um meio de expressão a mais, e não para cancelar os anteriores. Para estimular nossa inteligência, e não nossa preguiça. Gosto de gíria, gosto de jargões profissionais, gosto de neologismos e palavras inventadas, gosto de escrever “vc”, “tb”, e tudo o mais. Mas “sou da tribo e conheço os cabôcos”. Se liberar, essa galera preguiçosa e mimada de hoje vai regredir ao Uga-Uga, linguagem primordial em que estas quatro sílabas servem para exprimir todo o vocabulário dos Lusíadas.

1151) O anel de Moebius (21.11.2006)




O anel de Moebius é uma faixa de material maleável (papel, pano, plástico flexível, etc.) que ganha curiosas propriedades quando é cortada e colada de um modo específico. 

Prepare uma faixa assim que tenha mais ou menos o formato de uma régua, ou seja, uns 30 centímetros de comprimento por 2 ou 3 de altura. Segure a extremidade A, e torça a faixa no sentido do comprimento, fazendo com que ela dê uma meia-volta sobre si mesma; e em seguida cola as duas extremidades. 

Observe que, como a fita foi torcida, no momento de ser colada à outra ponta o que era a quina superior vai ficar colada à quina inferior, e vice-versa. Isto é um Anel (ou Faixa) de Moebius. 

O nome é uma homenagem ao matemático que soube entender as implicações dessa idéia, porque para mim é óbvio que milhares de pessoas já tinham feito isso por mera distração, sem perceber o que tinham criado. Moebius percebeu que tinha criado uma superfície ao mesmo tempo uni- e bi-dimensional. 

Quando damos aquela “torcidazinha” na faixa e colamos as duas pontas fazemos que que os dois lados, ou duas faces da superfície se tornem uma só. Se começarmos a colorir um dos lados, daí a pouco entraremos colorindo pelo outro. Se um besouro começar a caminhar numa das faces, daí a pouco estará caminhando pela face oposta. 

Há uma gravura de M. C. Escher, “Formigas”, que é uma variação desta idéia. Veja no Google Imagens: “escher ants”. 

Para além das suas propriedades matemáticas, o Anel de Moebius fornece uma interessante metáfora visual para um certo tipo de literatura fantástica. Chamemos à área em que a faixa é torcida sobre si mesma A Torção; e chamemos ao ponto onde as extremidades são coladas A Juntura. 

Numerosas histórias fantásticas apresentam equivalentes a estas duas propriedades topológicas. (Topologia é a parte da Geometria que estuda as relações e propriedades dos espaços e das superfícies) Em muitas narrativas fantásticas a história começa de uma maneira aparentemente banal e cotidiana, e vai progredindo na direção do fantástico de um modo tão sutil que o leitor não percebe; ou então o leitor percebe (porque não é bobo, e sabe que está lendo uma história fantástica) mas os personagens não. Eles pensam que tudo continua normal, só tem algumas coisas que não estão bem explicadas, e aí de repente... Bang! 

Há um choque, uma crise, uma revelação, um clímax qualquer em que os personagens percebem que algo impossível aconteceu. Este clímax equivale à Juntura num Anel de Moebius, e só quando ele é atingido o personagem (ou o leitor) percebe ter havido uma Torção. 

Um clichê do fantástico é quando o sujeito tem um sonho e ao acordar percebe que está segurando um objeto com que sonhara, ou percebe que seu corpo traz uma marca física produzida durante o sonho. Nesse momento, dá-se a Juntura, o contato entre o possível e o impossível, entre duas superfícies que não podiam coexistir num mesmo plano, que é uma das marcas do Fantástico.



(M. C. Escher, "Formigas")




1150) São muitas emoções (19.11.2006)



Dizem os estrategistas da cultura de massas que na TV não se deve falar de idéias, e sim de emoções. Não pergunte o que a pessoa pensou quando fez o gol, ganhou o prêmio, ou teve o bebê. O entrevistado vai achar que se espera dele uma grande frase, uma síntese do significado daquele momento, e vai embatucar. E se dissser uma grande frase o público não vai entender, porque é burro. (A burrice do público é o Primeiro Postulado da Geometria Televisiva.) Melhor perguntar: “Qual foi a sua emoção, etc., etc.” Isto, qualquer idiota responde, e qualquer público entende a resposta, até porque na maioria dos casos ele vai na linha do “Ah, foi uma emoção muito forte, eu nem tenho palavras para descrever...”

Talvez seja porque a maioria das pessoas vive uma vida contida, previsível, sufocada. A maioria das emoções fortes que experimenta é diante da TV ou na sala de cinema. E tais emoções são uma versão “diet” do estado alterado de consciência produzido pelas drogas. É uma expansão ou intensificação momentânea da mente, um novo olhar sobre a realidade, uma sensação mais forte de estar vivo, de existir. Tudo isto é efeito de substâncias jogadas na corrente sanguínea por algumas glândulas de secreção interna. Desculpem a descrição meio rude, mas o que diabo é emoção, se não for isto?

Pode ser também porque algumas emoções são domesticáveis, e estabelecemos com elas uma convivência sob controle. Basta ver homens e mulheres numa locadora, escolhendo DVDs. Homens pegam filme de ação e violência, filme de terror, filme de aventura. Mulheres pegam filmes de amor ou filmes de relações familiares. Cada um cultiva o terreno emocional onde sabe que será convocado diariamente a atuar, onde seu desempenho precisa estar à altura. Precisam conhecer extensos cardápios de situações, dissecá-las, evitar surpresas. Ao agir assim, o que o indivíduo busca não é a emoção rara ou exótica, não é a ampliação de repertório. Ele(ela) está buscando a reiteração de estímulos já codificados, a confirmação de expectativas, a busca de nuances e sutilezas num universo de sensações já cartografadas. Tanto o brucutu que vê filme de Chuck Norris quanto a balzaqueana solteira que assiste Sex and the City estão em pleno Curso de Doutorado em suas respectivas áreas.

Repórteres são instruídos a perguntar sempre sobre as emoções. Comerciais de TV apelam mais a elas do que às retinas. Qualquer chamada de programa anuncia: “E não percam amanhã à noite as emoções do programa tal e tal”. A TV sabe que usar palavras como “mente”, “idéia”, “pensamento”, é o mesmo que mostrar cruz a vampiro ou falar de corda em casa de enforcado. As pessoas não vêem TV para pensar. Vêem pelo inegável prazer de acoplar sua mente a um discurso vívido e envolvente, que nunca se detém, e que as faz girar num carrossel mental durante algumas horas, em que não precisam fazer esforço algum além do de experimentar as emoções que lhes são impostas.

domingo, 5 de julho de 2009

1149) A Besta Loura novamente (18.11.2006)


(Aleister Crowley e Barbara Bush)

A melhor coisa das Teorias da Conspiração é que nelas, ao contrário da vida real, tudo faz sentido. Tudo se encaixa, tudo acaba se fechando num desenho tão harmonioso que cada revelação nos faz exclamar: “Arrá!... Então era por isso!”. Aqueles que acreditam ser George W. Bush “a Besta Loura Calibã”, para usar um termo proposto por Ariano Suassuna na Pedra do Reino, acabam de receber uma caixa de munição pesada. No blog de um tal de Joseph Cannon foi levantada uma lebre que não tem mais tamanho: o presidente Bush seria neto de Aleister Crowley, o mestre da Magia Negra que foi chamado “a Besta do Apocalipse”. Crowley foi um desses charlatães pseudo-demoníacos que exercem fascinação sobre gente sem rumo, como foi o caso de Raul Seixas e Paulo Coelho, dois brasileiros ingênuos que foram por algum tempo seus admiradores. (Hoje, Paulo Coelho quer ouvir falar de tudo, menos de Crowley).

A história é longa, e sugiro ler os detalhes em: http://cannonfire.blogspot.com/2006/04/george-w-bush-barbara-bush-and.html. Crowley (1875-1947), ocultista famoso, fundou vários grupos dedicados à prática da Magia, onde se praticavam ritos sexuais. Era um sujeito egocêntrico, intelectualmente brilhante, capaz de dar os maiores golpes financeiros e de conquistar qualquer mulher (ou homem) por quem se sentisse atraído. À sua volta viviam poetas e socialites, gente com dinheiro, desocupada, e doida para ser cobaia da Magia Sexual.


Uma delas era Pauline Pierce, americana que por volta de 1924 deixou os filhos pequenos nos EUA para juntar-se à “entourage” de Crowley. Pauline era casada com Marvin Pierce, presidente da McCall Corporation, que entre outras coisas publicava as revistas McCall’s e Redbook. Pauline conviveu na Europa vários meses com sua amiga Nellie O’Hara, o amante dela, Frank Harris (autor do clássico erótico Minha Vida, Meus Amores) e Crowley. Em outubro de 1924, Pauline voltou para os EUA. Em junho de 1925, deu à luz sua terceira criança, uma menina que recebeu o nome de Barbara. A qual, muitos anos depois, se tornaria a esposa de George Bush, e mãe do atual presidente George W. Bush.

Vejam bem: estou vendendo pelo preço de fatura. Pelo que sei, tudo isto pode ter sido inventado pelo dono do blog. Consultei o capítulo dedicado a Crowley por Colin Wilson em O Oculto (Ed. Francisco Alves), mas este não menciona Pauline Pierce. Tanto Crowley quanto a família Bush, contudo, são personagens públicos, de vida bem documentada, e quem duvidar pode ir atrás e checar os nomes e as datas. A questão levantada por Cannon é de que existe a possibilidade de que Barbara, mãe de George W. Bush, não seja filha de Marvin Pierce, e sim um fruto das experiências de magia sexual que Pauline teria praticado com Crowley. O blog de Cannon compara uma foto de Crowley com uma foto de Barbara Bush, uma mulher severa, de cabelos brancos, que parece um general vestido de “drag queen”. Cá pra nós, parecem irmãos.

1148) Mais jargão da FC (17.11.2006)


(Planet Stories, julho 1952)

Falei aqui há pouco tempo sobre as belezas literárias da ficção científica, o modo como a FC expande e enriquece nossa maneira de ver as coisas através da simples escolha de palavras, e da criação verbal de imagens ou situações que não ocorreriam espontaneamente a nossa imaginação. Existe na FC uma forma peculiar de poesia que nasce do conhecimento científico do autor somado à sua habilidade em compor uma frase que ao mesmo tempo nos evoca algo familiar e desnorteia nossos pontos de referência por nos fazer considerar dimensões muito além das que estamos acostumados a conceber.

Neuromancer, o grande romance cyberpunk de William Gibson, começa com uma frase que ficou famosa: “O céu sobre o porto era da cor de uma tela de TV ligada num canal fora do ar”. É o diapasão ideal para que o leitor entre no tom de um texto onde se misturam irrealidade, tecnologia e desenraizamento. Um conto de Greg Egan, “Learning to Be Me”, tem como tema uma tecnologia futura em que uma espécie de “disco rígido” é implantado na mente das pessoas, gravando todas as suas memórias, para que sua personalidade possa um dia ser transplantada para um novo corpo. O conto começa assim: “Eu tinha seis anos quando meus pais me disseram que dentro do meu cérebro havia uma pequena jóia escura, aprendendo a ser quem eu sou”.

Um dos melhores contos do brasileiro Fausto Cunha, “61 Cygni”, conta como uma prostituta percorre as ruas de madrugada e encontra-se com um cliente estranho, que a leva para um local escuro e aí se transforma numa criatura indizível que a ataca. Enquanto morre, transfixada de dor, ela ainda tem tempo de pensar que “eles” talvez desconheçam a dor e não saibam o mal que estão lhe fazendo. Mas aí ela ouve uma voz em sua mente dizer: “Sabemos, sim. Sabemos TUDO”. E o último parágrafo do conto diz: “O raio mergulhou no espaço, rumo à planície incandescente onde os Seres de Cristal estão imóveis à espera. Estão imóveis, e têm a forma de uma rosácea”. Meu amigo! Se isto não for grande literatura, então é melhor eu mudar de ramo, porque não entendi nada.

Claro que nem tudo na FC tem este nível. Li há pouco num saite esta citação de um conto de um tal de Kenyon Holmes intitulado “The Man Who Rode the Saucer”, ou seja, “O Homem que Pilotava o Disco”. Ao descrever os alienígenas de sua história, ele se sai com esta pérola: “Não eram marcianos... nem venusianos. Eram de regiões muito mais longínquas. De uma Galáxia vizinha, com seu próprio sol e seus próprios planetas; vinham de uma estrela que, pelas melhores estimativas de Creigh, devia estar situada na órbita de Antares, o seu sol”. Para quem tenha um mínimo de conhecimento de astronomia, este trecho é Zé Limeira puro, é o Samba do Crioulo Doido, é o lado mais caricatural e mais divertido da “space opera” dos “pulp magazines”. Porque nem só de Grande Arte vive um leitor. Se não existisse o Íbis, não compreenderíamos o que faz o Barcelona.

1147) Os aloprados (16.11.2006)


Sigmund Freud dizia (ou, se não disse, disseram que ele tinha dito) que não há escolha inocente de palavras: tudo é proposital. Neste ponto ele está de acordo com qualquer teoria poética, e o que faz é transferir para a fala instintiva, corrente, cotidiana, o mesmo grau de planejamento, intencionalidade e escolha que governa a fala poética. Poeta passa meia hora escolhendo uma dúzia de adjetivos. O mau poeta coloca os doze; o bom poeta corta onze e deixa apenas o menos previsível, ou nem este. Mas cada palavra é retirada do dicionário ou da memória como quem retira uma lâmina da gavetinha do laboratório, para examiná-la à luz e contra a luz, de um lado, do outro, à lupa, ao microscópio. E depois dá-se por satisfeito: “Tudo bem, é esta mesma”.

Quando estourou o escândalo mais recente do governo Lula, o do “dossiê”, o presidente reclamou em público que aquilo tinha sido obra de “uns aloprados” do Partido. Pergunto eu, lacanianamente: por que “aloprados”? Por que não – digamos – “malucos”, “idiotas”, “irresponsáveis”, ou algo mais? Por que exatamente essa palavra?

A primeira vez que eu ouvi essa palavra foi no título do filme O Professor Aloprado de Jerry Lewis (não vi a refilmagem estrelada por Eddie Murphy). Neste filme, Lewis faz o papel do professor Kelp, um sujeito dentuço, “nerd”, desajeitado, sem traquejo social, que é ridicularizado pelos alunos e esnobado pela mocinha loura que ama em segredo. Mexendo no seu laboratório, ele inventa uma droga poderosíssima com a qual se transforma em Buddy Love, um cara auto-suficiente, galã, bonitão, conquistador irresistível, que se torna, desde que aparece pela primeira vez, a sensação do “campus”. Todos os alunos querem se parecer com ele, todas as garotas querem... querem... “Afinal, o que querem as mulheres?”, perguntava o Dr. Freud. Seja lá o que fôr, todas queriam com Buddy Love. Depois dos obrigatórios mal-entendidos e suspenses, Buddy Love vê-se diante de uma platéia enorme no momento em que o efeito da droga vai passando, e ali ele se retransforma no Professor Kelp, diante de todos. A lourinha, claro, descobre nesse instante que gosta mais dele desse jeito, e tudo acaba bem.

“Aloprado”, então, significa isto. Significa alguém que por muitos anos se sentiu barrado no baile, excluído da festa. Ficava olhando pela janela, vendo todo mundo se divertir à tripa-forra, e ele lá fora, no sereno, saboreando a felicidade alheia por telepatia. Um sujeito de bom coração, doido para se transformar noutro cara – um cara sem escrúpulos mas bem sucedido, frio e calculista mas vestindo ternos impecáveis, arrogante mas excelente cantor e pianista, sacaneador de mulheres mas (mistérios do coração!) tendo as mulheres todas aos seus pés. “Aloprado” significa: alguém que sempre teve fama e pose de bonzinho e sempre se deu mal, e de repente começou a achar que a melhor maneira de se dar bem era fazer o que os outros faziam.

1146) O jargão da FC (15.11.2006)




(Astounding SF, novembro 1953)

A ficção científica é como o xadrez, a música sinfônica ou a química orgânica. Para quem não domina seus conceitos, é um caos sem sentido. Para quem os aprendeu, é uma fonte inesgotável de beleza, conhecimento e evolução mental. 

O uso inesperado de palavras comuns e a invenção de novas palavras é um dos recursos mais fascinantes desse tipo de literatura. Há um exemplo clássico, muito citado pelos críticos, de uma história de Robert Heinlein ambientada no futuro onde a certa altura o autor diz, assim como quem não quer nada: “The door dilated”. A porta se dilatou. A porta se expandiu, se alargou. 

O autor implica que no futuro as portas serão aberturas que se dilatarão, como pupilas, para que as pessoas passem por elas, em vez de consistirem em abertura vedadas por painéis que giram em ângulo sobre dobradiças. As portas poderão ser (e os cenógrafos dos filmes de FC adotaram isto rapidamente) como diafragmas de máquinas fotográficas.

Uma frase discutida há pouco na New York Review of SF é bem típica das circunvoluções barrocas a que a FC pode chegar, para deleite dos aficionados e perplexidade dos leigos. Críticos ficaram debatendo os méritos ou os excessos de uma frase de Charles Stross num livro recente: 

“An unoptimized instance of H. Sapiens maintains state coherence for only two to three gigaseconds before it succumbs to necrosis”. Mais ou menos: “Um exemplar não-otimizado de Homo Sapiens mantém coerência de estado por apenas dois ou três gigassegundos antes de sucumbir à necrose”. 

Um gigassegundo (um bilhão de segundos) dá aproximadamente 31,7 anos. Duas ou três vezes isto é uma média de tempo de vida bem razoável para um corpo humano não-otimizado, ou seja, sem receber os implementos, próteses, aditivos bio-moleculares ou outros fatores com que a civilização futura possa aumentar nossa longevidade. Sem isso, é claro que entre os 62 e os 93 anos um ser humano sucumbe à necrose.

O que há de interessante nesta frase é que nela o jargão científico – que infelizmente provoca tanta rejeição na maioria dos leitores – tem uma dupla função: informativa e poética. “Poética” com o sentido bem específico de “intensificação de efeito”. 

Este resumo do destino biológico do ser humano é como aqueles documentários em que, por meio da câmara acelerada, vemos a terra se abrir, uma folhinha verde brotar, em alguns segundos uma arvorezinha tenra esticar-se para o alto, com um caule que vai aos poucos engrossando e se escurecendo, abrindo galhos fortes e ramos mais finos em todas as direções, cobrindo-se de folhas que rapidamente caem e são substituídas por outras, até que os galhos secam, o tronco mirra, apodrece e se desfaz. 

Um século inteiro de vida em poucos segundos. Essa capacidade de sintetizar o tempo cósmico e a existência humana em poucas frases, que foi uma especialidade de Augusto dos Anjos, é um dos muitos e raros prazeres que encontramos na ficção científica.