segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

0653) O ambicioso (22.4.2005)




(John Crowley)

Muitos anos atrás, numa preguiçosa madrugada baiana, eu estava assistindo um programa de TV em que Ferreira Neto entrevistava Gilberto Gil. Citando algum trecho de uma canção do compositor, o jornalista perguntou-lhe se ele praticava o que pregava naqueles versos. Gil respondeu: “Olhe, rapaz... o artista escreve muito além do que ele é. Ele é como o alpinista, que lança sua corda lá no alto, para que ela se prenda em algum lugar e ele possa subir. O verso do poeta alcança os lugares onde o poeta não foi ainda, e ajuda o poeta a chegar lá”.

Esta definição de “ambição” me parece tão boa quanto qualquer outra, com a vantagem adicional de prescindir de julgamentos morais, que muitas vezes colorem erradamente nossa visão das coisas. Ambicionar é querer ir mais longe, fazer o que alguém tentou mas não conseguiu, ou tentar o que nem sequer foi tentado. Sem ambição ninguém escreve Os Lusíadas, ninguém grava o Sergeant Pepper´s, ninguém pinta o Perna de Pau. Sem ambição ninguém se elege presidente dos EUA, ninguém derruba o World Trade Center.

Dou este último exemplo para reforçar a idéia de que a ambição não é boa nem é má em si própria. Ela é um impulso de ousadia e de vontade-de-excesso que tanto pode levar Hitler a anexar a Áustria como pode levar Ronaldo Fenômeno a partir do grande círculo até a marca do pênalte, cercado por um enxame de zagueiros, e estufar a rede sem dó nem piedade. Porque também existe uma ambição-do-Bem, para usar esta simpática expressão tão em voga. A vontade de fazer muito. A necessidade de que Grandes Coisas aconteçam. O entusiasmo de nos sentirmos participando de Algo Importante e de saber que com uma palavra nossa, um gesto, uma decisão, este Algo Importante levantará vôo e sua presença começará a fazer bip-bip em todos os radares da História.

Em seu conto “Novelty”, John Crowley fala de um escritor pouco ambicioso, o qual um dia percebe “...que a diferença entre ele e Shakespeare não era propriamente talento – mas fibra, intrepidez. A capacidade de não se deixar amedrontar pelas suas maiores e mais poderosas inspirações, e de simplesmente sentar-se e pô-las no papel. E a terrível imobilidade que o acometia quando uma idéia realmente imensa e multifacetada subitamente tornava-se clara em sua mente, algo com as dimensões de um Rei Lear mas com a precisão de um soneto. Se pelo menos tais idéias não o assaltassem assim por inteiro, de uma só vez, enormes e perfeitas, deixando-o amedrontado e impotente diante da perspectiva de ter que articular aquilo tudo, cada palavra, cada cena, cada página!”

O artista desambicioso é um jogador que, diante do goleiro, procura um companheiro a quem passar a bola. Na vida só existem dois verbos: “ficar avaliando” e “arremessar-se”. O verdadeiro ambicioso é o que sabe cultivar estas duas virtudes tão consangüíneas: a paciência e a audácia.


0652) O estranho, o bizarro, o inesperado (21.4.2005)


(Charles Fort)

O que aconteceu no ano de 1919 para que ele se tornasse um “anno mirabilis” nos anais da História Secreta do Mundo? Se você não sabe que História é esta, caro leitor, fique tranqüilo, porque eu também não sei, mas tenho algumas pistas. A primeira delas é a existência, na Nova York daquela época, de um homenzinho atarracado, com um bigode frondoso que lhe dava a aparência de “uma foca tímida”, e óculos com aro de metal. Seu passatempo era freqüentar a Biblioteca Municipal e arquivar informações sobre fatos inacreditáveis que saíam em toda a imprensa: chuva de sapos, objetos voadores não identificados, anomalias magnéticas, meteoritos com inscrições, avistamentos de criaturas monstruosas...

O homem se chamava Charles Fort, e em 1919 publicou O Livro dos Danados, o primeiro de vários livros nos quais brandia estes fatos inclassificáveis e desafiava os cientistas a dar-lhes uma explicação convincente. Céticos empedernidos como Martin Gardner (Manias e Crendices em Nome da Ciência) descartam Fort como um mero colecionador de excentricidades, mas autores como Pauwels & Bergier (O despertar dos mágicos) o tratam como o profeta de uma nova mentalidade a que chamam de “Realismo Fantástico”.

Foi também em 1919 que um indivíduo chamado Robert L. Ripley deu início a uma das séries mais bem sucedidas na imprensa americana: Ripley’s Believe It or Not, coletânea semanal de curiosidades, coincidências espantosas, fatos bizarros da História, episódios inexplicáveis, recordes excêntricos. Conhecida no Brasil com o título Acredite... se Quiser, a série saiu dos jornais para os livros e a TV. A série antiga era apresentada pelo ator Jack Palance; a atual, apresentada por Dean Cain e Kelly Packard, é exibida aqui no Rio no Canal Multishow.

O mundo de Fort e de Ripley é o mundo das exceções, das anormalidades, de tudo que não está de acordo com os padrões estatísticos. A Ufologia e a Zoologia Fantástica (histórias de yetis, do monstro do Lago Ness, do Pé-Grande, etc.) não existiriam sem eles. É claro que num mercado tão gigantesco a picaretagem campeia: as fraudes, as falsificações, as invencionices, os logros para atrair a credulidade dos incautos. Mas nos interstícios dessa indústria da mentira vão se colhendo informações que de outra forma jamais chegariam ao conhecimento público. Pode ser uma perda de tempo, concordo, mas há maneiras mais bobas de perder o tempo do que olhando o que é noticiado nos saites do programa de Ripley (http://www.ripleys.com/welcome.html) ou da Sociedade Forteana (http://www.forteantimes.com/) ou ainda no saite de Sérgio Russo sobre Realismo Fantástico, com dezenas de links (http://www.dominiosfantasticos.hpg.ig.com.br/id21.htm). Mas se você é do time dos incrédulos, melhor ainda. O saite que passa-no-rodo essa história toda é o da revista Skeptical Inquirer (http://www.csicop.org/si/online.html).

0651) Fluminense 6x5 Volta Redonda (20.4.2005)



Entre os mandamentos que aprendi com o Budista Tibetano, há um que me consola nos domingos à noite: “Cada vitória, uma comemoração. Cada derrota, uma lição”. Tentarei portanto extrair algo de bom desta derrota que nem precisava ser minha, pois sou Flamengo. Mas torci contra o Fluminense por dever de ofício, e principalmente torci pelo Volta Redonda, pois torcerei sempre por qualquer time do interior contra qualquer time da capital, numa decisão de título. Mesmo que fosse contra o Fla, eu teria preferido a vitória do Voltaço.

A lição que extraio, infelizmente, é uma que eu já sabia desde que nasci: quase todo time que entra para empatar perde. Por que? É um dos mistérios do futebol. Vejam o presente caso. No primeiro jogo da decisão, o Fluminense botou 2x0 com cinco minutos de jogo. A torcida começou a gritar “é campeão”, e o time recuou para garantir o resultado. Diante disto o Voltaço avançou e virou o jogo para 4x2. Achou que estava bom, e aí foi sua vez de recuar. O Flu avançou de novo e marcou mais um gol no finzinho, gol que acabou sendo importante na contagem final.

No segundo jogo, o Voltaço entrou com 4x3 a seu favor (era uma decisão com soma de resultados). Já entrou recuado, portanto, na esperança de conseguir o sonho dourado de 99% dos técnicos e jogadores brasileiros, que é rebater bolas para a lateral durante 90 minutos, sem precisar fazer gol. No primeiro ataque, fez 1x0, ou seja, 5x3. O que fez então? Recuou mais ainda, enquanto era a vez de sua torcida gritar: “é campeão!”. O Fluminense empatou no finzinho do 1o. tempo (gol irregular, aliás), no segundo foi todo pra cima e merecidamente virou pra 3x1, o único placar que lhe interessava. Mas se o jogo durasse mais 10 minutos, tenho certeza de que o Flu ia recuar, o Volta ia avançar, faria 3x2, e ficaria com o título.

Por que essa coisa suicida de recuar, de chamar o adversário para dentro de sua área, de pedir para conceder 20 escanteios num jogo, de pedir para ficar cercado durante 90 minutos, vendo a bola sobrevoar sua pequena área, sofrendo bombardeios, e torcendo para que o adversário erre? A única explicação para isto é que técnicos e jogadores sabem que é mais difícil atacar do que defender. É mais difícil construir do que destruir, fazer do que desmanchar. É mais difícil ser Governo do que ser Oposição, mais difícil ser artista do que ser crítico. No futebol, o erro é mais frequente do que o acerto. Para você fazer um gol é preciso acertar num espaço específico, super-defendido. Para evitar um gol, basta bater na bola em qualquer direção. Ouso imaginar que se neste jogo final o Flu tivesse feito 2x0 (placar que lhe daria o título), teria recuado, e o Volta Redonda, cujo time é coletivamente melhor, teria que ir para cima, “buscar o resultado”. Mesmo com o resultado atravessado aqui, cumprimento o Fluminense. Neste jogo final, fez o que todo time deveria fazer: perseguir o gol, o gol, o gol.

0650) O poeta Lúcio Lins (19.4.2005)




Há cerca de dois anos eu estava passando uns dias em João Pessoa, hospedado na casa de Gustavo Moura em Manaíra, quando o telefone tocou, eu atendi, e era o poeta Lúcio Lins. Ele tinha acabado de fazer uma cirurgia que lhe tirou um pulmão inteiro, se não me engano. Conversamos por algum tempo, e ele disse: “Pois é, poeta, a gente imagina que o que tem dentro da gente é só poesia, mas não é não”. Era o Lúcio de sempre, com seu humor cortante e aquela enorme capacidade de ironia neutralizadora que tanto ajuda um sujeito a sobreviver quando o placar está adverso. Dias depois fiz-lhe uma visita com Xisto Medeiros, e ficamos uma ou duas horas conversando na mesinha do jardim. Lúcio estava se recuperando aos poucos, fisicamente, e mantinha a cabeça erguida, o olhar para a frente.

Voltamos a conversar no Fenarte de 2003, e daí em diante não o vi mais, embora estivesse a par da homenagens que felizmente lhe foram prestadas em vida, inclusive a criação do Centro Cultural Lúcio Lins. Sábado passado, cheguei em casa de madrugada e havia à minha espera um email da lista “Essas Coisas” de Carlos Aranha, falando da morte do poeta. Não revi Lúcio nesta fase final da doença, o que por um lado lamento, por saber agora que não o reverei mais. E por outro lado a imagem que guardo é a do Lúcio agitado, inquieto, o pé tamborilando no chão, irreverente e compassivo, sempre trazendo na ponta da língua uma piada mordaz, e um subtexto de carinho. Estou sabendo que foi o mesmo até o fim, mesmo abatido pela devastação física. Não perdeu o humor, nem a lucidez serena diante do inevitável.

Tem sujeito que já nasce com a missão predestinada de ser poeta, como, sei lá, Chico Buarque ou Ivanildo Vila Nova. Outros recebem uma overdose precoce de poesia que chega quase a destruí-los; brilham com intensidade e depois fartam-se dela, como Rimbaud. Lúcio foi dos que fazem da poesia uma conquista gradual, amadurecida e aperfeiçoada com o passar dos anos. Até segunda ordem, Perdidos Astrolábios é seu melhor livro, ou pelo menos o mais depurado, mais lapidado. “O que ficar de mim / podem velar / é a vaidosa lágrima / se dizendo mar”.

A boemia foi a fornalha do alambique onde a poesia de Lúcio Lins foi sendo destilada ao longo da vida, e acreditem, esta metáfora não é gratuita. Nos seus poemas, toda vez que leio “mar” penso estar lendo “a Noite”, no sentido boêmio do termo. Quem nasce com coração boêmio vê assim as noites: imensas, traiçoeiras, sedutoras e navegáveis. Tempestades e calmarias; batalhas e portos aconchegantes. A noite para o boêmio é um zarpar, um içar ferros, um desfraldar velas, partir sem saber para onde, entregando-se aos acasos das ruas desertas palmilhadas a pé, dos bares que surgem como ilhas iluminadas por possibilidades de repouso e aventura. A vida nos levou a fazer a noite, e na noite cada um de nós encontrou uma vida diferente, destilada em beleza. Quem duvidar, é só reler.