sábado, 11 de outubro de 2008

0595) O charme de um dia nublado (13.2.2005)


(Bradley Schmehl, "Voice of the City")

Nada tenho contra o sol, contra esta cascata dourada de raios de fogo que parecem tornar o mundo inteiro mais colorido, mais vivo, mais vibrante de uma energia alegre e boa. Mas pergunto: por que motivo os Adoradores do Sol, essa multidão monoteísta que se acotovela nas praias e nas piscinas, é incapaz de reconhecer a beleza e a poesia de um dia nublado? O sol recorta contrastes lancinantes, fende o mundo com suas lâminas, e o deixa fatiado em placas de luz e de sombra. No dia nublado, a redoma de nuvens filtra e esbate esse brilho excessivo. O mundo fica tomado por uma luminosidade leitosa, espessa, macia. É uma luz que parece vir de todas as direções, que não projeta sombras, uma luz democrática e onipresente, a única capaz de mostrar o mundo como ele realmente é.

Nada tenho contra o Sol, repito. Admiro-o como admiro um leão, um tigre: ele lá e eu cá. Reconheço sua beleza e sua importância, mas francamente, não preciso da companhia dele o tempo todo. Tá liberado, companheiro! Vá aquecer os fiordes da Escandinávia, vá dourar os trigos da Suécia, vá bronzear Bjork. Eu por aqui vou indo muito bem, tomando banho-de-lua, como Celly Campello. O sol é um uísque-caubói duplo, e quem sou eu para negar seus méritos? Tem seus momentos, sem dúvida, mas para o correr normal dos meus dias prefiro um vinho suave, um crepúsculo roxo-lilás com nuvens e estrelas.

Gosto de “dias brancos” como os de Geraldo Azevedo & Renato Rocha, como gosto das “noites brancas” de Dostoiévsky. Gosto de ver a cidade trancada nesta caverna de claridade uniforme, ao abrigo daquela fogueira nuclear que nos cresta a retina e nos esturrica a pele. Gosto ainda mais do ar frio que geralmente sopra nesses dias, um friozinho gostoso que nos faz procurar o conforto de um casaco, e o calor aconchegante da companheira, porque tudo passa a ser pretexto para enlaçar-lhe a cintura, colar corpo com corpo, acelerar o sangue. É um ar fino, que clareia os pulmões; como se todos os Bancos do mundo tivessem desaparecido e deixado atrás de si apenas o ar condicionado, a única coisa que têm de bom.

Dêem-me dias brancos, dias nublados, dias propícios à meditação e à paz, ao cultivo das emoções tranqüilas e dos afetos prolongados, e à contemplação da Terra sem o clamor ensurdecedor das fornalhas do Sol. Dêem-me esses dias parecidos comigo, esses dias que vibram no meu diapasão contemplativo e sereno. Podem ficar com os outros – e isto me alegra duplamente, porque sei o quanto farei feliz a Humanidade, distribuindo-lhe dias ensolarados às mancheias. Mas guardarei para mim essas moedas de modesta prata, este céu com nuvens brancas de Chagall ou cinzentas de El Greco, este meio-dia no inverno da Serra da Borborema onde minha alma se formou, e onde aprendi que é possível haver no mundo beleza sem alarde, alegria sem frivolidade, e paz sem tédio.

0594) Arqueologia Midiática (12.2.2005)



Gosto de títulos bombásticos, e esse aí em cima me parece um bom começo de conversa. É essa a expressão que me vem à mente toda vez que estou precisando localizar imagens gravadas, porque a maior parte do meu arquivo de imagens está no formato VHS. Isto significa que tenho prateleiras e mais prateleiras de armários cheias de caixas de fitas. São camadas e mais camadas geológicas, com todo tipo de material, parte dele com milhões de anos de idade. Um sambaqui semiótico.

Quando comecei a usar TV a cabo, há oito ou dez anos, me deslumbrei com as infinitas possibilidades de montar um arquivo “com todas as coisas que eu gostava”. Aí, danei-me a comprar fita virgem e a gravar tudo que aparecia. Na véspera eu pegava a revista, olhava a programação e assinalava o que tinha de bom. No dia seguinte ficava num pé e noutro, trabalhando no computador e controlando o video-cassete, pra ver se a gravação estava indo bem.

Vai daí que hoje tenho aqui, absolutamente inutilizáveis e inexibíveis, filmes policiais americanos, jogos do Flamengo, gols da rodada, reportagens sobre a Paraíba, especiais sobre Ciência ou ficção científica, entrevistas, talk-shows, “Globo Repórter” sobre assuntos que me interessavam, musicais, curtas de animação, retrospectivas de fim de ano. Tenho todos os jogos do Brasil na Copa de 94. Tenho pilhas de filmes daquelas coleções “Clássicos do Cinema”. Tenho fitas com copiões de filmes de amigos meus. Tenho pilhas, com metros de altura, de fitas VHS com material de pesquisa de que precisei para este ou aquele trabalho. E morro de pena de jogar isso no lixo.

Alguns vou ter que jogar, porque já estão cobertos pela glacê branca e mortífera do mofo, e aqui chegamos ao objetivo deste artigo. Manter registros históricos é essencial, mas só tem sentido quando podemos mantê-los mesmo, pra valer. De nada adianta ter uma biblioteca de antigos pergaminhos se não conseguimos salvá-los do mofo e dos cupins. Por outro lado, meu video-cassete está quebrado, e mesmo que eu queira ver uma fita dessas agora, não posso. E em breve não vão existir no Rio técnicos que consigam consertar um video-cassete. Vai virar uma profissão em desuso, como a de calígrafo-de-diploma.

Ao atravessar essas camadas geológicas de informações preciosas, e agora inacessíveis, sinto um abalo profundo numa das minhas convicções mais sinceras, a de que é preciso preservar a Informação e o Conhecimento. Eu já tenho mais informações do que posso acessar. É impossível registrar tudo. É impossível guardar tudo. E é impossível voltar a ver o que foi registrado. O problema de um arqueólogo da mídia é que ele vai fazer suas escavações na esperança de encontrar cacos de cerâmica, pontas de flechas, jóias, crânios, tabletes de argila com inscrições, moedas. Mas basta ele pegar uma fita mofada, com a caixa partida, para ele ver que o Passado não existe mais. Foi dissolvido pela Entropia. Virou areia.

0593) Os holofotes e os bastidores (11.2.2005)




São dois universos, e cada um tem sua flora e sua fauna. Mal comparando, são opostos e complementares como o Dia e a Noite. Há quem habite apenas um, e há quem transite entre os dois. 

Os termos que usei talvez sugiram em excesso o mundo do teatro, da música, do show, da política. Mas em todas as atividades humanas existem essa cara e essa coroa, essa vitrine onde se expõe e esse porão onde se trabalha.

Há quem prefira um, e quem prefira o outro. Eu, por natureza e temperamento, prefiro o porão e os bastidores. É onde se trabalha melhor, onde as coisas são feitas a sério, onde são criadas as obras que perduram. Tudo que conhecemos da arte da Grécia Antiga ou da Renascença foi produzido nos bastidores, na calada da noite, no recolhimento das oficinas e dos ateliês. 

Quando estou aqui, sentado no sofá do meu quarto-dos-livros, olho para estas estantes e penso que cada livro destes, cada uma destas páginas, só veio ao mundo porque teve uma noite em que o cara, em vez de sair com os amigos, ficou em casa escrevendo.

O parágrafo acima parece uma opção pública, uma profissão-de-fé ideológica em que eu tomo o partido de A contra B. Calma, leitor: me acompanhe e vamos em frente, porque o mundo não é tão simples. 

Basta-me parar a caneta por alguns minutos e fazer um balanço autobiográfico para constatar que não, que o que me atraiu mesmo, a vida toda, foram as luzes da ribalta, o auê dos camarins, a badalação dos bares, a curiosidade da imprensa, o cio desnorteado das tietes. 

Por mais que a gente opte por escrever à meia-noite na água-furtada à luz de uma vela, não é aí que se esgota o processo, e sim no retintim de coquetéis no lançamento, e na espera ansiosa da primeira resenha num jornal.

Coço a cabeça, tentando resolver esta grave contradição filosófica (“se A é diferente de B, não se pode ser A e B ao mesmo tempo”). Meu recurso é abandonar de vez esse bitolamento aristotélico e recorrer ao Taoísmo, ao símbolo visual do Yin-Yang. 

O círculo onde uma gota preta e uma gota branca se entrelaçam, cada qual tendo em seu núcleo um circulozinho da cor oposta. São assim as coisas do mundo, tudo está entrelaçado ao seu oposto, tudo, no momento em que mais se expande e amadurece, expande e amadurece também um grãozinho minúsculo de seu próprio contrário, de seu próprio reverso.

Tudo que foi produzido nos bastidores gregos e renascentistas foi feito para os holofotes, para as vitrines e as platéias, para o deleite de uma corte e o deslumbramento respeitoso da Multidão. 

Foram épocas em que tudo deu certo. Épocas em que as pessoas que faziam a Vanguarda entenderam que para fazer Grande Arte podiam se valer também do Mercado, e as pessoas que faziam o Mercado entenderam que podiam perfeitamente investir na Vanguarda e sair ganhando com isto. Cada qual via no outro um sócio, e não um adversário. O que realizaram juntos se cristalizou em Tradição.





0592) Viva a Ecologia Musical (10.2.2005)


(Mário de Andrade, por Di Cavalcanti)

Uma das profissões que eu mais admiro é a de etno-musicólogo, esses sujeitos que saem de mundo afora, registrando manifestações musicais de comunidades obscuras, e encontrando formas de música que ninguém sabia que existiam. Por exemplo: qualquer dinamarquês ou suíço que desembarque na Paraíba e dê de cara com Zabé da Loca. O problema com a etnomusicologia é que vendo o nome assim ninguém deduz o que é, pode até pensar que tem a ver com pesquisa de vulcões. Sugiro então a criação do termo ECOLOGIA MUSICAL, cujo significado é mais intuitivo, e tem a grande vantagem de poder entrar sob a rubrica “ecologia”, que anda na moda, para conseguir verbas das multinacionais e dos órgãos do Governo.

O melhor trabalho de Ecologia Musical deste começo de ano é o CD duplo Responde a Roda Outra Vez, um projeto de Carlos Sandroni, patrocinado pela Petrobrás. A pesquisa procurou reconstituir o trajeto de uma missão cultural enviada ao Nordeste em 1938 por Mário de Andrade, então Chefe do Departamento de Cultura de São Paulo. O resultado dessa Missão são 33 horas de gravações, mais fotos, filmes, etc., hoje disponíveis no Centro Cultural São Paulo, na Rua Vergueiro. A equipe de Sandroni visitou grande parte das cidades onde a Missão de 1938 fez suas gravações, e chegou mesmo a reencontrar pessoas que tinham participado da primeira gravação. É emocionante pensar que houve uma mulher gravada pela Missão de 1938, aos 20 anos, e que voltou a cantar neste disco, aos 86.

Pretendo falar de novo no disco depois que ouvir direito (são 57 faixas, minha gente), mas cabem aqui alguns comentários sobre essa história de Ecologia Musical. Sou totalmente a favor do esforço de preservar plantas, árvores, flores raras, assim como bichos de todo tipo, sejam insetos amazônicos, peixes do Pantanal ou micos da Mata Atlântica. Nada contra, mas esse espírito protecionista poderia ser alargado para incluir, além da Natureza, o mundo da Cultura. A Cultura, produto do Homem, é um subproduto da Natureza. Um Rembrandt vale tanto quanto um gato.

Não se trata de pegar um cântico folclórico e colocá-lo num Museu, embora isso possa ter sua utilidade. No mundo da cultura popular (os folguedos, os cantos, os autos, as danças dramáticas, as danças de roda) os adultos jovens criam, os velhos (que são eles mesmos, meio século depois) passam adiante. Existe uma criação quase permanente, mas ela só existe em cima da repetição ritual do que foi aprendido. Quando você não registra e não passa adiante, impede a criação futura. Para usar uma metáfora agrícola, bem ao gosto do pessoal que mexe com isto, o Passado fertiliza o Presente para o Futuro poder brotar. Assim, quando a gente defende a preservação da Nau Catarineta, dos Teatros de Mamulengos, dos Cantos de Farinhada, e coisa e tal, não é por saudosismo do passado-que-já-se-foi, ou por estar com pena dos velhinhos. É para que a criança de hoje possa também criar, quando crescer.

0591) Quero ficar em teu corpo (9.2.2005)



A escritora novaiorquina Shelley Jackson lançou um projeto de Literatura Conceitual intitulado “Skin” (pele). Quem chamou de Literatura Conceitual não foi ela, fui eu, e se o termo não existe, solicito à Academia Brasileira de Letras que recorte este artigo e o consigne em seus compêndios, garantindo-me a paternidade do rótulo. Assim como na Arte Conceitual não se trata de saber pintar ou esculpir, mas de ter uma idéia abstrata e saber articular materiais concretos que a exponham, na Literatura não se trata de saber escrever bem, mas de criar um texto ao qual acontece alguma coisa, e essa coisa que acontece é mais significativa do que aquilo que o texto diz.

“Skin” é um conto com 2.095 palavras, e cada uma delas será entregue a um voluntário, que se apresentará à autora e assinará um contrato. Concluídas as formalidades, o voluntário deverá tatuar a palavra em qualquer parte do corpo, e enviar uma foto à autora, como comprovante. A partir daí, esta pessoa passará a ser considerada aquela Palavra específica (e não um simples “portador” da palavra). Mesmo que a tatuagem venha a ser apagada, ou destruída de algum modo, isso não pode reverter essa condição. (Há uma série de outras condições, que não vêm ao caso. Quem quiser participar, escreva para: shelley@drizzle.com, ou olhe em: http://ineradicablestain.com/skin.html).

O texto completo do conto será conhecido apenas pela autora e pelos 2.095 participantes, os quais se comprometem, por contrato, a jamais revelar o seu teor. Participantes poderão, se quiserem, entrar em contato uns com os outros e revelar quais as Palavras em que se tornaram. A história jamais será publicada, mas existe a possibilidade de que seja publicado um livro a respeito do projeto, com fotos de alguns participantes (mas não fotos das Palavras tatuadas), material de imprensa, artigos, etc. Diz o regulamento: “Somente a morte das Palavras poderá eliminá-las do texto. À medida que as Palavras forem falecendo, a História irá mudando; quando morrer a última Palavra, a História também morrerá. A Autora fará o possível para comparecer ao funeral de suas Palavras”. Em setembro de 2004, havia 1.780 pessoas inscritas, faltando 315 para fechar o projeto.

Uma questão: é possível considerar como obra literária um texto que nós, aqui “de fora”, não poderemos ler em sua totalidade? Duas mil e poucas pessoas lerão o texto, sob juramento de segredo. Este público é suficiente? Outra questão: este procedimento se assemelha menos ao da criação e fruição de uma obra de arte do que às formalidades de admissão numa fraternidade ou sociedade secreta. Há um segredo conhecido apenas por um número fixo de participantes. Há uma cerimônia iniciatória e a imposição de uma “marca” física no novo membro. Há o pacto de silêncio. Pode parecer besteira, mas eu ainda acho mais interessante do que mandar um milheiro de tijolos pra Bienal.