sexta-feira, 10 de outubro de 2008

0590) O gênio selvagem (8.2.2005)




Ramanujan foi um matemático indiano que morreu aos 32 anos e é considerado uma espécie de “gênio selvagem” dentro da Matemática. Era um auto-didata, e tinha uma intuição impressionante que de certa forma compensava sua falta de educação formal. 

Trabalhando num escritório e estudando nas horas vagas, ele certo dia se desesperou e enviou três cartas para matemáticos ingleses, pedindo uma chance para aprofundar seus estudos. Duas das cartas foram devolvidas sem abrir. A terceira foi lida por G. H. Hardy, que resolveu apostar no jovem indiano e o trouxe para a Inglaterra. 

Na Índia, Ramanujan já era uma figura conhecida entre os matemáticos, embora tido como excêntrico. Ele parecia ser aquele tipo do sujeito capaz de passar semanas inteiras pensando e escrevendo, dando pouca atenção às chamadas coisas práticas da vida. Foi para a Universidade de Cambridge, ficou lá durante vários anos e tornou-se famoso, mas não se adaptou ao clima da Inglaterra. 

Além do mais, a I Guerra Mundial trazia graves problemas de alimentação para todos. Ele já recebia grandes honrarias universitárias, mas não estava fisicamente bem. Retornou para a Índia em 1919, e morreu em 1920. 

Ele é um desses casos em que uma mente humana parece extraordinariamente aparelhada para um certo tipo de trabalho criativo, em detrimento de todo o resto. Produzia idéias sem cessar, algumas delas muito originais, mas isto nem sempre é uma virtude. Ao responder a primeira carta que recebeu de Ramanujan, G. H. Hardy lhe disse: 

“Fiquei extremamente interessado pela sua carta e pelos seus teoremas. Mas você deve entender que, para que eu possa fazer uma avaliação adequada do que você fez, preciso ver as provas de algumas de suas afirmações. Seus resultados, de um modo geral, podem ser divididos em três grupos: 1) resultados que já eram conhecidos pelos matemáticos, ou que podiam ser deduzidos de teoremas já existentes; 2) resultados que, até onde posso avaliar, são novos e interessantes, mas apenas pela sua curiosidade ou dificuldade aparente, e não por serem importantes; 3) resultados que parecem ser novos e importantes”. 

A descrição de Hardy deixa claro que Ramanujan trabalhava sem parar em todas as direções, e não tinha muita noção das descobertas prévias da Matemática européia, o que o fez redescobrir por conta própria idéias de Gauss e outros (diz-se que o próprio Gauss, quando criança, redescobriu todo o trabalho geométrico de Euclides). 

Parece que a habilidade matemática se estabelece muito cedo na mente humana, e quando se desenvolve não há quem se segure. Quando escreveu para Hardy, o indiano disse: “Sou um homem que vive meio morto de fome, e para preservar meu cérebro preciso de alimento; esta é minha preocupação maior.” Modesto e introvertido, nunca teve plena consciência de ser genial ou famoso. Tudo que queria era pensar e escrever, mas nasceu (talvez) no país errado, na época errada.





0589) Strawberry Fields Forever (6.2.2005)




A imprensa noticia que o orfanato Strawberry Field (sem “S”), em Liverpool, está para fechar. As políticas de adoção têm se intensificado na Inglaterra, e os orfanatos estão ficando obsoletos. 

Strawberry Field deve ter tido um papel social importante, mas a justificação cósmica de sua existência foi sem dúvida servir de inspiração para uma das mais misteriosas canções da música popular. 

Música não é para ser simplesmente bonita (“Michelle”, por exemplo, é muito mais bonita). Música é para ser um permanente mistério, uma fonte incessante de significados, algo que toda vez que a gente escuta tem a sensação de que novas idéias e novas sensações borbulham e brotam dali, o tempo todo, sem parar.

SFF foi gravada em novembro e dezembro de 1966, depois de dois meses de folga dos Beatles após a gravação de Revolver. Ao retomar o trabalho em estúdio, esta canção foi a primeira coisa a ser gravada para o próximo álbum, Sergeant Pepper´s (acabou não saindo nele, por razões que não vêm ao caso agora). 

A maior parte das análises sobre SFF se concentra nas suas trucagens sonoras (fita ao contrário, cortes, mudança de velocidade, etc.). Ian MacDonald, o melhor analisador das canções dos Beatles (Revolution in the Head), chama nossa atenção para outros detalhes. 

A letra desconexa, fraturada, enigmática, reflete o esforço de Lennon, então com 26 anos, para juntar os cacos de uma personalidade massacrada pelo sucesso (os Beatles encerraram sua carreira de shows três meses antes desta gravação), pela crise conjugal (ele conhecera Yoko Ono poucas semanas antes) e pelo LSD (que ele experimentava desde o ano anterior).

Diz MacDonald: 

“(Nesse período) Lennon parece ter perdido e recuperado sua voz artística, experimentando uma fase passageira de falta de articulação criativa, que se reflete no teor infantil e hesitante da letra. A melodia, também, mostra Lennon em seus momentos mais sonambúlicos, movendo-se inseguro por entre pensamentos e fragmentos de música, como um indivíduo momentaneamente cego que avança às apalpadelas, buscando algo familiar.”

Foram 55 horas de estúdio ao todo, e o rock, para o bem ou para o mal, nunca mais foi o mesmo. 

"Strawbeey Field Forever", mesmo com todo seu vanguardismo e suas experiências eletrônicas, é uma canção mais carregada de emoção crua, à flor da pele, do que músicas aparentemente mais “emocionais” como “Girl” ou “This Boy”. 

MacDonald observa, com conhecimento de causa: 

“O verdadeiro tema do psicodelismo inglês não era nem o Amor nem as Drogas, mas a nostalgia pela visão inocente de quando se é criança.” 

A mente do “Eu” desta canção é como uma folha seca esvoaçando entre o real e o irreal, em versos (que todo mundo transcreve diferentes) como: 

“Always, no sometimes, think it´s me, 
but you know I know when it´s a dream... 
I think I know I mean a ´yes´, but it´s all wrong, 
that is, I think I disagree.” 

Não tentem traduzir, nem entender; só tem sentido na música.







0588) O oitavo pecado capital (5.2.2005)




O Todo-Poderoso raramente me consulta antes de tomar uma decisão. 

Vejam por exemplo os Sete Pecados Capitais. O número sete é um número troncho, anti-estético, cuja fama se deve apenas aos contos-de-fadas. Muito melhor o número Oito, um número simétrico, aberto em todas as direções, e que traz em si o gérmen de uma poderosa Mandala. Muito mais adequado a quem tem como logotipo uma Cruz. 

Para completar a conta, eu teria que sugerir um Oitavo Pecado, o que me apresso a fazer agora.

O Oitavo Pecado Capital, para mim, chama-se: a Falta de Curiosidade. À primeira vista parece menos perigoso do que a Inveja ou a Ira, e parece ter causado muito menos guerras e crimes do que estes dois. Mas a Falta de Curiosidade é responsável por um inimigo solerte que ataca a Humanidade pelos flancos: a Perda do Sentido. 

Quantas vezes ficamos sabendo de pessoas que tentaram o suicídio porque sua a vida “não tinha mais sentido”? Quantos crimes absurdos são cometidos no mundo por indivíduos que não se interessam pelo mundo, não se interessam por outras pessoas, não se interessam sequer por si mesmas, e por isso tornam-se “serial killers”? 

A Falta de Curiosidade pelo mundo faz dos Estados Unidos, hoje, o país mais perigoso do mundo, um bicho que é uma mistura de tartaruga com cascavel, que prefere passar a vida entocado dentro de sua carapaça protetora, e que só sai dali quando se sente ameaçado, para retaliar às cegas.

Vejam a nossa vida cotidiana. O mundo hoje é uma agressão sensorial permanente. A mídia-ambiente (ver “A Mídia Ambiente”, 17.6.2003) nos envolve por todos os lados, é uma floresta amazônica de imagens, slogans, ruídos, out-doors, jingles, adesivos, cartazes, vitrines, comerciais, spams, pop-ups, tudo como se fossem milhões de insetos querendo entrar ao mesmo tempo pelos sete buracos de nossa cabeça. 

Tudo nos é oferecido, ou melhor, tudo nos é imposto como escolha. Andando na rua, vendo TV, navegando na Net ou empunhando o celular, não precisamos ir atrás do mundo, o mundo jorra suas mensagens sobre nós, feito uma sangria desatada. A cada cem recados do Mundo, escolhemos um para dar atenção por meio minuto, e os restantes se dissipam, sendo imediatamente substituídos por outros.

Vai daí que... perdemos a Curiosidade. Não procuramos, não corremos atrás, não precisamos querer nada, basta-nos cravar o X na múltipla escolha que nos é oferecida sem cessar. 

Fujam disso, coleguinhas. É um pecado, é um perigo. Nascemos para ter interesse pelo mundo, nascemos para “correr atrás”. É natural do ser humano querer saber, querer saber mais, querer conhecer, querer ir até o fim. Não ter curiosidade pelo mundo, pelas pessoas, por tudo que aconteceu no Passado remoto ou que poderá acontecer no remoto Futuro, é um defeito grave. 

É um Pecado, e quem o comete irá expiá-lo no inferno da Falta de Sentido, no Lago Gelado dos Sem-Amor, onde nada importa, nada interessa, nada vale a pena.







0587) O quase-poema moderno (4.2.2005)




Os grandes criadores estabelecem um patamar de qualidade e de exigência muito alto para si mesmos, e acham natural exigi-lo de todos nós, meros mortais que tentamos bem ou mal pintar nossos quadros, dirigir nossos filmes ou compor nossas musiquinhas. 

É o caso de João Cabral quando teoriza sobre poesia. Seu olhar crítico é um furacão que, se passasse por aqui todo ano, não deixaria muita coisa de pé. Em sua análise intitulada “Da Função Moderna da Poesia”, Cabral assim descreve o chamado poema moderno: 

“... esse híbrido de monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar.”

Sobreviveu, poeta? Eu também, mas foi por pouco. Cabral era um engenheiro exigente, desses que você solta ele no meio de qualquer rua de qualquer cidade, e para onde se vira ele só vê coisa errada. Seu nível de exigência é alto. 

Sua decepção com o “poema moderno” é compreensível. Eu sou o primeiro a botar a carapuça e admitir que a descrição acima corresponde a 90% da minha obra publicada. A solução é apelar para a vocação diplomática do Poeta e tentar chegar a um acordo de cavalheiros que aceite sua crítica, mas nos libere para continuar escrevendo.

Eu diria que comparar João Cabral comigo e com outros coleguinhas é como comparar Ayrton Senna e um sujeito que vai de carro pro trabalho. Um é um artista da pilotagem, um cara que define, para sempre, os rumos futuros desta arte. Outro é um cidadão que usa esta arte para resolver os problemas do seu dia-a-dia. 

Todo mundo tem o direito de dirigir, e o dever de dirigir o melhor possível, mas ninguém está se obrigando a imitar as proezas de Senna. No momento em que ele entrar numa corrida, no entanto, no momento em que ele for para uma pista de kart ou para um “pega” clandestino, aí ele está entrando no terreno do outro. Aí ele tem a obrigação de ter como parâmetros os parâmetros de Senna. Ele nunca vai conseguir, talvez, mas ele passou a correr em outra raia, na raia em que Senna corria, e aí a coisa muda de figura. Ele está competindo com o que Senna fez.

O mesmo se dá na poesia. O poema moderno, ou quase-moderno, liberou milhões de pessoas para escrever poesia. Fazemos e distribuímos poemas com os amigos, os colegas, a namorada; colocamos nos blogs, nos murais. 

Esses poemas são expressão individual nossa, são a respiração lírica de nossa pessoa. Ninguém pode nos negar este direito, ninguém pode proibi-los porque “não são bons poemas”. 

Mas no momento em que pisamos nas páginas das revistas, dos suplementos literários, no momento em que publicamos um livro... aí estamos pisando na raia de João Cabral. E é nessa raia que a crítica dele deve servir de alerta -- e de estímulo.







0586) O Eu poético (3.2.2005)




Quando lemos um poema na primeira pessoa, nossa primeira tendência é pensar que o poeta está sendo autobiográfico, confessional.

Acreditar que Pablo Neruda estava de fato na maior dor-de-cotovelo quando escreveu: “Posso escrever os versos mais tristes esta noite...”

Acreditar que Augusto dos Anjos remoía o sofrimento da morte do pai, quando escreveu: “Podre, meu pai... A mão que enchi de beijos / toda roída de bichos, como os queijos...”

Acreditar que Vinicius de Morais estava possuído por alguma paixão terna e luminosa quando principiou um soneto com; “De tudo, ao meu amor serei atento / antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto...”

São sentimentos expressos com tal espontaneidade e em frases tão consistentes que não há como não crer neles. E mais: são sentimentos que, em retrospecto, batem com o que sabemos da vida e da personalidade de quem os escreveu. Aquilo ali é autobiográfico, sou capaz de apostar.

O Eu lírico, no entanto, é muito mais mutante e surpreendente do que imaginamos. O que devemos pensar quando o mesmo Neruda nos diz: “Mesmo assim seria delicioso assustar um notário com um lírio cortado, e matar uma freira com um soco no ouvido”? Um episódio autobiográfico? Um sentimento real? Um sentimento imaginário?

E quando Vinícius diz: “Na mais medonha das trevas / acabei de despertar / soterrado sob um túmulo...” Um pesadelo? Uma fantasia mórbida?

O “Eu” que conta o poema pertence ao Poeta, mas é um Eu postiço de que ele pode lançar mão, quando quiser, para fazer brotar de dentro de si um sentimento. É muito parecido com o Eu do ator, quando encarna um personagem. Um ator que chora no palco está chorando de verdade, mas chora por uma tristeza que não é sua, embora a sinta.

Não é preciso estar apaixonado para escrever o mais belo poema de amor. Aliás, em geral a paixão verdadeira menos ajuda do que atrapalha, porque o sujeito tende a pensar mais nas pernas da mulher amada do que nos pés do verso que rabisca.

A verdade do Eu poético poucas vezes é autobiográfica, e nem sempre é emocionalmente autêntica. Poemas de imensa crueldade já foram escritos por indivíduos que tinham bom coração, mas se deixaram arrebatar por uma idéia mais forte que seus escrúpulos.

Alguns textos exprimem esse distanciamento necessário à escrita. Um deles é o poema de Drummond “Procura da Poesia” (“Não faças versos sobre acontecimentos...”). Fernando Pessoa escreveu fragmentadamente sobre isto, em suas idéias estéticas; há um texto intitulado “O problema da sinceridade do poeta” onde ele afirma: “O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir.” E nem Camões lhe escapa.

E por fim há dois textos em prosa de João Cabral que melhor do que qualquer outro dissecam esta questão: “Poesia e composição” e “Da função moderna da poesia”, que todo poeta devia ler uma vez por ano, como quem vai ao clínico geral.