sábado, 27 de setembro de 2008

0563) Um Tsunami de números (7.1.2005)



O saite “Cockeyed.com” preparou uma curiosa comparação gráfica entre o atentado ao World Trade Center e o tsunami que devastou os países da Ásia. Segundo os caras, a Indonésia perdeu 53 Torres, o Sri Lanka 16, a Índia cinco, e assim por diante. Estes números, claro, já estão defasados. A quantidade de vítimas aumenta a cada dia que passa. E eu discordo um pouco da base de cálculo, que toma uma média de 1.500 vítimas por Torre. Pelo que me consta o número final (oficial) de vítimas do 11 de setembro foi de 2.749, mais os 19 terroristas (bem abaixo dos 6.300 que eram a estimativa feita nos dias seguintes).

Alguns artigos na imprensa têm comparado o número de vítimas e a população de seu país de origem, e ao que parece um dos países mais atingidos foi a Suécia. As praias atingidas pelo tsunami (Indonésia, Tailândia, etc.) eram um dos lugares preferidos pelos turistas dos países nórdicos. Havia cerca de 20 mil turistas suecos na região. No momento, 3.500 deles estão desaparecidos, provavelmente mortos. É mais gente do que morreu em Nova York no 11 de setembro. A última tragédia a que o país pode comparar esta foi o naufrágio de um “ferryboat” em 1994, quando morreram mais de 800 pessoas, entre as quais 551 suecos.

Em todo caso, esta algaravia numérica é para mostrar que eu também, como grande parte da imprensa e da humanidade alfabetizada, estou me entregando a uma reação nervosa típica de nossa civilização. Chama-se a isto “Quantificar o Impensável”. Toda vez que uma coisa é traumatizante demais, a gente a transforma numa coluna de números, e começa a compará-la com colunas parecidas.

Na primeira página de A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera comenta que 350 mil africanos morreram numa guerra tribal qualquer, e que isto não deixou marca nenhuma na História do Mundo. Na primeira página de Buffo e Spallanzani, Rubem Fonseca sonha com Leon Tolstoi molhando a pena num tinteiro e lhe dizendo: “Para escrever Guerra e Paz, repeti este gesto 1 milhão e 800 mil vezes.” Os números talvez não sejam estes, porque estou citando de memória, mas é o que menos importa. É o ato de contar coisas que nos sossega o espírito. Dustin Hoffman, em Rain Man, vê uma caixa de fósforos se derramar no chão e diz: “37”.

Saber quantos (não importa o quê) tem essa curiosa função pacificadora. Não é apenas o prazer do Tio Patinhas contando suas moedas e se orgulhando da sua fortuna. Contamos os infortúnios também, pelo poder mágico do número e da possibilidade de confrontação de séries numéricas (“Morreu um Maracanã de gente!”). Em colunas anteriores (“O império do número”, 17.7.2003, “O delírio quantitativo”, 9.11.2003, e outras) comentei essa perversão benigna de nossa mente. Sofremos muitos males sob a Ditadura da Quantidade, mas ela também nos ajuda a suportar as brabeiras da vida. É como contar os carneirinhos que entram pela porta do Matadouro, e adormecer em paz.

0562) Quaderna e os reis bastardos (6.1.2005)



A Editora José Olympio está para lançar uma nova edição do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, que estava esgotado e fora de catálogo desde 1976. Muito oportuno, até porque o autor tem muito mais visibilidade hoje na imprensa do que tinha na época do primeiro lançamento. Ariano é um sujeito polêmico, que diz o que pensa, e só pensa o que quer. No tempo da ditadura militar, muita gente via nele um sujeito excêntrico, que queria restaurar a monarquia no Brasil – ou seja, não o distinguiam muito bem de organizações de Direita como a paulista TFP (“Tradição, Família e Propriedade”). Ariano deu mais de mil entrevistas esclarecendo que sua admiração pela monarquia era de ordem puramente literária e simbólica, mas não adiantou muito. Foi rotulado como monarquista, e como monarquista ficou.

Ainda bem que o livro sai agora, e algumas pessoas que falam mal de Ariano terão a chance de conhecer sua obra. O Romance da Pedra do Reino é (à maneira de Cervantes) uma homenagem e uma sátira. Cervantes usou o Dom Quixote para satirizar os romances de cavalaria e seus leitores, mas por baixo de seu texto existe uma corrente de ternura e de admiração pelo universo anacrônico em que habita a mente do fidalgo. Cervantes admira os cavaleiros, admira a literatura de cavalaria, mas ao mesmo tempo sente que aquele tempo passou e que aquela literatura é insuficiente e insatisfatória para os novos tempos: ninguém é mais tão ingênuo assim.

No Romance da Pedra do Reino, Ariano trata de modo parecido a monarquia. É uma instituição gloriosa e anacrônica, conforme a vemos através dos olhos de Dom Pedro Dinis Quaderna, que, um pouco à maneira do Tartarin de Tarascon, de Daudet, é ao mesmo tempo um quixote e um sancho-pança. É um pretenso fidalgo deslumbrado pela grandeza cavalariana e pelas regalias sociais dos aristocratas, e um pícaro, um espertalhão cheio de truques e negociatas, disposto a qualquer manobra para satisfazer sua ingênua sede de fama literária e prestígio social. Diz Quaderna, no Folheto 53:

“Pode dizer, Excelência! Eu absolutamente não me incomodo mais de ser filho-da-puta! Ou melhor, de ser neto-da-puta, porque minha Mãe, coitada, é que era filha-da-puta, filha bastarda do Barão do Cariri e portanto irmã por vias travessas de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto. Antes, eu ficava danado da vida quando alguém falava nessa filho-da-putice nossa. Mas lá um dia, numa discussão, Samuel declarou que isso de bastardia não tem a menor importância nessas coisas de fidalguia e linhagens reais, tanto assim que os Braganças, descendentes de Dom João I e Nuno Álvares Pereira, são várias vezes bastardos e netos de padre! Depois daí, fiquei descansado e perdi a vergonha!”

A nobreza real sonhada por Quaderna é forjada de vilipêndios, traições e adultérios; de delírios de grandeza e carnificinas entre mafiosos. É a tragédia shakespeariana de sempre, com gibão de couro e peixeira na cinta.

0561) Queremos filmes iraquianos (5.1.2005)



O New Statesman resenhou recentemente um livro de Atom Egoyan e Ian Balfour, Subtitles: on the foreigness of film, onde são discutidas questões sobre dublagem e legendagem de filmes estrangeiros. Existem países onde a legendagem é prática corrente (como sempre foi o caso aqui no Brasil), deixando-se a dublagem para os filmes infantis, ou para cópias especiais de filmes de sucesso. Em outros, todo filme é dublado. Um dos maiores sustos que tive na vida foi entrar num cinema na Espanha para assistir o primeiro Batman e descobrir que o mesmo era dublado. Era estranho passar a noite inteira ouvindo falar em “Hombre Murciélago”.

O autor do artigo cita a certa altura a crítica norte-americana B. Ruby Rich, que, defendendo a importação de filmes não-americanos para os EUA, diz: “É mais difícil matar pessoas quando você é capaz de ouvi-las falando. É mais difícil bombardear um país quando você já viu suas cidades em filmes aos quais se afeiçoou.” Eu, que sou um sujeito cheio de preconceitos, posso atestar a verdade desse argumento. Durante muitos anos detestei solenemente o Irã. Na minha mente, era uma porção de mesquitas repletas de aiatolás vociferantes e de assassinos fundamentalistas revirando o mundo à caça de Salman Rushdie. Foi preciso que filmes iranianos começassem a passar aqui no Rio de Janeiro para eu me tocar que o Irã não é muito diferente da Paraíba. É um país de gente comum, sacrificada, alegre, tentando viver suas vidas da melhor maneira possível. Tem suas excentricidades religiosas, mas quem somos nós, que vivemos à sombra de Frei Damião e do Padre Cícero, para estranhar as devoções alheias?

Nunca vi um filme iraquiano, mas, por associação de idéias, acabo imaginando (v. “O Iraque é aqui”, 23 de dezembro) que a diferença entre Iraque e Irã é mais ou menos como a diferença entre Alagoas e Sergipe. Para ser sincero, não acho que o brasileiro médio precise ver filmes iraquianos para se convencer de que aquele povo é parecido com o nosso. Quem deveria passar por esta higiene mental era o público norte-americano, para quem todas estas guerras são benéficas, mesmo que matem metade da população do país, porque a metade sobrevivente terá enfim a possibilidade de lanchar num MacDonald´s e de ver filmes de Julia Roberts.

Dizem que, nas antigas execuções por decapitação ou fuzilamento, a tradição de cobrir o rosto do condenado com um capuz provinha do receio de que se os carrascos cruzassem os olhos com os dele poderiam acabar se comovendo com sua expressão de súplica ou de terror. A gente mata com mais facilidade alguém com quem não tem uma relação próxima. Um carrasco (ou um Fuzileiro Naval) pode dizer a si próprio que é apenas um funcionário público, está apenas cumprindo uma ordem judicial, que não há nada de pessoal naquilo, e que não conhece aquele cara que está ajoelhado diante dele, com a cabeça apoiada no cepo, esperando o machado.

0560) Ou escreve ou endoidece (4.1.2005)



Peguei no ótimo saite literário The Elegant Variation uma pequena lista de instruções para escritores profissionais. Faço esta especificação pelo fato de que os escritores amadores não precisam de instruções, uma vez que só escrevem quando sentem-se inspirados. Os profissionais, no entanto, são obrigados a escrever todos os dias, tenham idéias ou não, vontade ou não. 

Vai daí que a Internet fervilha de páginas de conselhos, táticas e métodos para fazer com que estes pobres coitados cumpram seus prazos e não passem vergonha.

Ainda acho que o método mais eficaz é o que chamo “Método Garcia Márquez”, por ser o adotado pelo nobre escritor colombiano. Dizia o velho Gabo que só conseguira produzir todos aqueles livros porque tinha com sua mulher um acordo. Todos os dias, a uma determinada hora, ela o trancava pelo lado de fora numa saleta onde havia apenas uma mesa, uma máquina de escrever, papel em branco e (creio) uma moringa dágua e um copo. 

Ali ele tinha que passar seis horas por dia, escrevesse ou não. Depois de uma hora de tédio, sem fazer nada, o desespero era tão grande que ele sentava à máquina e acabava escrevendo.

Não é muito diverso o método que achei preconizado na lista, só que esta vem com mais detalhes, que julguei muito úteis. O leitor que confira, e me diga depois.

“Duas horas por dia. Nada de TV, de Internet, de livros, de telefone. Ou escreve, ou endoidece. Escrever cartas não conta. Ler não conta. Pesquisar não conta. Revisar o que foi escrito na véspera não conta. Só há duas opções: escrever texto novo, ou ficar olhando o monitor. 

"Algumas vezes, você vai ter um surto de inspiração e escrever sem parar durante três horas. Isto não lhe dá o direito de no dia seguinte reduzir o prazo para uma hora. São duas horas por dia, não importa o quanto tenha feito na véspera. Não adianta pedir para lavar o banheiro, consertar o vazamento, limpar a caixa-de-areia do gato. Não há desculpas. Você tem que usar aquelas duas horas para escrever.”

Tão pouco, não é mesmo? Creio que foi Rémy de Gourmont quem disse que toda sua obra foi produzida durante algumas horas de trabalho logo depois do despertar: “Trabalhava algumas horas, e o resto do dia era dedicado a viver.” 

Que cronograma esperto! Os indivíduos noturnos, como eu, depositam todas as suas esperanças neste apagar-das-luzes do dia, após a meia-noite. O dia inteiro foi passado em compasso de espera, pesquisando na Internet, respondendo emails, lendo. A hora da onça beber água é depois da meia-noite: aí o cabra diz a que veio. 

É pena, porque muitas vezes o dia foi tenso ou cansativo, e somente quando o relógio nos mostra 4 ou 5 da manhã, e não escrevemos nada ainda, é que temos de jogar a toalha e admitir que aquele foi um dia perdido. 

Duas horas! Dêem-me duas horas de trabalho vibrante e ininterrupto, todos os dias, e eu botarei no bolso Garcia Márquez, Rémy de Gourmont e todos esses pés-de-chinelo.




0559) Amílcar Quintella Jr. (2.1.2005)




Ofereço um milhão de dólares a quem me conseguir informações a respeito desse autor de um dos mais curiosos poemas épicos da literatura brasileira. 

Amílcar Quintella Jr. publicou em janeiro de 1957, pela Editora Iva (São Paulo) o livro A Atlântida – Poema épico de confraternização universal, com 360 páginas e doze Cantos, dos quais o mais longo é o Canto IX (154 estrofes) e o mais curto o Canto VIII (64 estrofes). 

As estrofes são as famosas “oitavas camonianas” de que é composto Os Lusíadas, com oito versos rimando ABABABCC. O livro tem prefácio do seu editor, Elói Braga Jr., e de H. de Brito Viana.

O poema é de especial interesse para nós, paraibanos. Ele descreve a vida dos habitantes da Atlântida, a destruição de seu continente, e a sua fuga em barcos através do Oceano. Eles chegam ao litoral de uma região chamada “Beracil”, onde, num local por nome “Pará-Hibã” encontram um riacho que denominam de “Im-gá”, e em seu leito um rochedo onde decidem gravar inscrições contando sua história. 

Cedo a palavra ao Poeta (Canto XII, estrofes 20 e 21):

O rochedo que vedes sobre o rio, 
por tudo e em tudo nos será sagrado: 
assemelha fantástico navio, 
em meio às mansas águas ancorado. 
Para o porvir, ao tempo em desafio, 
há de levar, por vossas mãos lavrado, 
a mensagem da nossa trajetória, 
e a das contínuas épocas de glória.

Nele, nossos artistas mostrarão 
as três primeiras levas, esculpidas; 
depois as dez seguintes gravarão, 
pelo vosso Profeta conduzidas: 
Neste quadro rupense ficarão, 
para ser algum dia revividas; 
e o mundo saiba tudo o que fizestes, 
e que jamais na luta esmorecestes.

A teoria de Quintella sobre as inscrições na Pedra do Ingá é fascinante, mas mais fascinante é a dimensão gigantesca da obra poética em que a expressou. O poema tem momentos de vívida descrição, fartura de rimas e de imagens, e em tudo e por tudo pode ser considerado um bom poema épico. 

Quem foi Amílcar Quintella Jr.? A bibliografia que aparece no volume enumera o livro de poemas A Capela da Estrada (1933), a comédia dramática Cair das Nuvens, uma versão poética da Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, com o título Poema do Trabalho (1952), e alguns “romances radiofônicos”. 

A Biblioteca Nacional, do Rio, possui exemplar de A Atlântida, além de uma adaptação do próprio autor em forma de “roteiro cinematográfico” (79 páginas datilografadas), que lembra mais uma peça de teatro do que um roteiro, por constar apenas de diálogos, sem indicações técnicas ou decupagem.

Descobri este livro há cerca de dez anos, quando pesquisava a história da ficção científica no Brasil, e ele continua a ser um mistério. O poema é dedicado “A Assis Chateaubriand, cuja atuação jornalística tem ligado o Brasil a mais países do que muitos tratados internacionais.” Quintella teria sido um jornalista dos Associados que pretendeu homenagear o patrão através de seu Estado natal?









0558) Some strange music (1.1.2005)



Sou um fotógrafo sem câmera. Numa época saturada de arte conceitual, quem pode me negar o direito de tirar retratos puramente mentais das coisas que vejo à minha volta? Lá vou eu batendo pernas pela cidade, e quando vejo alguma cena interessante não preciso de mais do que alguns segundos para dar uma paradinha, prestar atenção com bem muita força, e depois seguir em meu caminho rumo ao Banco, que fecha daqui a cinco minutos. Pronto: a foto está tirada. O problema é que ainda não resolvi a questão de como criar um “fixador” mental, porque daí a poucos minutos ela volta a se dissolver em moléculas de esquecimento e entropia.

Dias atrás entrei no metrô e, quando o trem partiu, olhei em volta. Num banco próximo, havia um casal de adolescentes. Ambos vestiam o habitual coquetel de incongruências dos jovens de hoje, onde as roupas são cuidadosamente escolhidas para não combinar entre si. Estavam de mãos dadas, e dos ouvidos de ambos pendiam os fios dos fones de dois “walkmen”, o dela dentro da bolsa de pano bordado, o dele fazendo peso no bolso de cima da jaqueta de camuflagem do exército. A moça tinha uma expressão zen, beatífica, olhos entrecerrados, rosto ligeiramente voltado para cima: devia estar escutando as transcendências célticas de Loreena McKennitt ou os móbiles sonoros do Massive Attack. A cabeça dele, no entanto, mexia-se de um lado para o outro, ritmadamente, feito uma lagartixa com soluços, e não me perguntem que banda punk que ele devia estar escutando, pois não faço idéia dessas coisas.

Como diriam os cantores sertanejos: “É o amô-ô-ô!” Cada um mergulhado em seu universo íntimo, em suas próprias sonoridades e fantasias, mas ali, juntos, mãozinha na mãozinha. Para você estar ao lado de outra pessoa não precisa necessariamente estar compartilhando a totalidade de suas experiências. E aqui tiro um chapéu que nunca usei para Akio Morita, o presidente da Sony a quem devemos a invenção do walkman, esta preciosa engenhoca que nos permite escutar música personalizada sem a necessidade de nos isolarmos para isto. Vejo muitos críticos do mundo de hoje (todos eles, como eu, nascidos no mundo de ontem) dizerem que o walkman afasta as pessoas. Pois naquele vagão de metrô carioca tirei uma foto mental da prova em contrário. O walkman permite estarmos juntos ouvindo músicas separadas. Quantas donas-de-casa, mundo afora, não vivem forçadas a escutar o que lhes é imposto por maridos pagodeiros ou filhos heavy-metal?

Julio Cortázar, em Rayuela compara um casal a duas árvores lado a lado, capazes de entrelaçar suas folhagens, mas com os troncos erguendo “duas paralelas inconciliáveis”. Esta é uma metáfora vetorial, cujo sentido depende da ordem da leitura. Sou mais otimista do que Cortázar, inverto a direção, e digo que todo casal consiste, de fato, em duas linhas paralelas, podem estar mil quilômetros distantes, mas desde que estejam de dedos entrelaçados podem ouvir o que lhes dá na telha.